Educação, alteridade e conhecimento: a diversidade cultural como construção histórica

Matheus Moreira da Silva

Doutorando em Educação em Ciências e Matemática (PPGECM/UFG), membro do Matema: Grupo de Pesquisa e Formação em Educação Matemática

Washington Marcos Camilo

Mestrando em Educação em Ciências e Matemática (PPGECM/UFG)

José Pedro Machado Ribeiro

Doutor em Educação (FE/USP), líder do Matema: Grupo de Pesquisa e Formação em Educação Matemática, professor da licenciatura em Matemática (UFG), da licenciatura em Educação Intercultural (UFG) e da Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (UFG)

Márlon Herbert Flora Barbosa Soares

Doutor em Ciências (UFSCar). líder do grupo de pesquisa Laboratório de Educação Química, Ciências e Atividades Lúdicas

A disciplina Conhecimento e Diversidade Cultural: organização do planejamento educacional

As atividades desenvolvidas na disciplina Conhecimento e Diversidade Cultural, do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática, durante as aulas do primeiro semestre de 2019, juntamente com doze alunos(as), foram devidamente planejadas para que houvesse espaços e exposições de dúvidas, questionamentos, conteúdos, orientações e acompanhamentos prévios de leituras sugeridas – e complementares –, discussões da bibliografia disponível na ementa, realização de trabalhos individuais e em grupos, diário de campo, fórum de discussões on-line (em  todos os momentos), criação e apresentação de um vídeo (curta) e atividade de campo, conforme descrito abaixo:

  • 1º Encontro (19/03/2019) – Realização de uma atividade sensorial que envolveu 5 espaços distintos: O primeiro espaço sensorial consistia na exibição do filme Baraka com todos os alunos juntos. O segundo espaço sensorial se pautava na leitura individual de um texto de Boaventura de Sousa Santos. No terceiro espaço sensorial, os alunos ouviram um áudio com recortes de várias músicas de diversas religiões. O quarto espaço sensorial foi assistir a um videoclipe musical que mostrava a união interpessoal. No quinto espaço sensorial era pedido que fizessem desenhos que retratavam a experiência vivida nos espaços sensoriais. A participação nos espaços aconteceu da seguinte forma: durante o filme, cada aluno era convidado a passar aos outros espaços sensoriais, um de cada vez. Ao terminar o espaço sensorial, se dirigiam para o espaço seguinte e outro aluno iniciaria o espaço agora desocupado. Ao final do quinto espaço, o aluno retorna para o primeiro espaço e continua assistindo o filme até que todos concluam o ciclo. Após todos os alunos passarem pelos diferentes espaços sensoriais, o professor reuniu os presentes em uma mesa redonda para que cada um se apresentasse e fizesse seu comentário sobre a vivência nos diferentes espaços sensoriais, expressando suas expectativas com a disciplina e com a experiência vivenciada nos espaços sensoriais.
  • 2º Encontro (26/03/2019) – Apresentação da proposta da disciplina pelo viés avaliativo. Em seguida, foi realizada a leitura e discussão do texto Para além do pensamento abissal, de Boaventura de Sousa Santos.
  • 3º Encontro (02/04/2019) – Debate crítico e reflexivo tendo como referência o texto Para além do pensamento abissal, de Boaventura de Sousa Santos. Em seguida, foi exibido um documentário sobre a diversidade, evidenciando diversos aspectos do cotidiano.
  • 4º Encontro (09/04/2019) – Exposição de um slide de produção de um documentário audiovisual. Em seguida, foi exibido um vídeo (palestra) do professor Mario Sérgio Cortella, cuja temática representava as fronteiras da escola e a diversidade.
  • 5º Encontro (16/04/2019) – Debate e leitura acerca do livro A escola e o conhecimento e do vídeo de Mario Sérgio Cortella.
  • 6º Encontro (23/04/2019) – Apresentação e debate da mesa-redonda 1, frente às temáticas: Globalização, Ubuntu e religiosidade africana; Moçambique e Divisão dos Estados Africanos. Por fim, a leitura do mito – A kora dos griots.
  • 7º Encontro (30/04/2019) – Apresentação e debate da mesa-redonda 2, frente às temáticas: China, Oriente Médio e Maori. Por fim, a leitura dos textos – Lenda chinesa: a criação do mundo e História da criação maori.
  • 8º Encontro (07/05/2019) – Apresentação e debate da mesa-redonda 3, frente às temáticas: Espanha e Rússia. Por fim, a leitura da mitologia russa Rusalka.
  • 9º Encontro (14/05/2019) – Atividade extraclasse. Produção audiovisual dos discentes.
  • 10º Encontro (21/05/2019) – Apresentação e debate da mesa-redonda 4, frente às temáticas: Incas e Maias/Astecas. Por fim, foi realizado um debate acerca das propostas parciais das produções audiovisuais.
  • 11º Encontro (28/05/2019) – Apresentação e debate da mesa-redonda 5, frente às temáticas: Indígenas nos Estados Unidos da América, Esquimós e Malcom X.
  • 12º Encontro (04/06/2019) – Debate crítico e reflexivo tomando como referência os minitextos (recortes) de Freire, D'Ambrosio e Morin. Em seguida, houve uma apresentação sobre a temática Povos Indígenas e Etnomatemática, via slide.
  • 13º Encontro (11/06/2019) – Apresentação e discussão das produções audiovisuais dos discentes. Em seguida, houve debate crítico e reflexivo sobre as temáticas abordadas nas produções e intervenções no fórum de discussões on-line por parte dos estudantes.
  • 14º Encontro (18/06/2019) – Realização de uma atividade de xilogravura. Esse momento foi crucial para que cada aluno(a) representasse, pela sua xilogravura, seu atual sentimento/compreensão acerca do tema Conhecimento e Diversidade Cultural. Em seguida, os(as) estudantes produziram um texto para explicar sua xilogravura produzida em sala de aula, seguida de discussões acerca das produções.
  • 15º e 16º Encontros (25/06/2019) – Atividade de Campo. Essa atividade foi desenvolvida na cidade de Ceres/GO, na qual foram vivenciadas experiências e momentos únicos pela cidade e pelo assentamento.

A diversidade cultural para além do preconceito: romper muros e criar pontes por intermédio da luta política e social

Devemos construir e conduzir o fazer pedagógico de maneira que atenda às necessidades do nosso aluno, dando oportunidade ao educando de ser crítico social consciente de suas ações e escolhas sociais (Estudante 4, 2019, s/p).

Trabalhar a disciplina Conhecimento e Diversidade Cultural para os estudantes do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da UFG remete ao lugar de fala que a interculturalidade assume no contexto da educação quando da pós-graduação, a superação de posições epistemológicas preconceituosas e sobre a diversidade cultural existente. “Animo-me com as leituras e discussões realizadas no âmbito da disciplina por reconhecer que estamos em um processo de (re)construção e ressignificação de nossas práticas docentes e do multiculturalismo” (Estudante 7, 2019, s/p).

Para superar essa visão do multiculturalismo, Molina (2008) propõe a Interculturalidade para estabelecer um corte (rompimento) na perspectiva monotópica do conhecimento ocidental. Esse fato significa trazer os conhecimentos e vozes silenciadas pela colonialidade do ser, poder e saber.

Para a sociedade ocidental dominante, embebida por uma visão europeia, representada pelo sujeito dito “universal”, materializado no homem branco, cisgênero, heterossexual, masculinizado e cristão, a multiplicidade cultural quanto à existência de uma grande variedade de culturas e grupos antrópicos, foi e é vista como grupos isolados, com culturas periféricas e marginalizadas. Para Laraia (2002), o termo “cultura” é um dos temas centrais mais discutidos nos últimos 100 anos pelos antropólogos; o assunto tem se demonstrado inesgotável. O desenvolvimento desse termo é útil para a compreensão do paradoxo da vasta diversidade cultural da humanidade. É complexo: inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.

Para Taukane (2003), esses grupos são caracterizados, perante o corpo social envolvente (a ser envolvido), como desfavorecidos, marcados por discriminações, exclusões sociais, preconceitos, violência e escravidão.

No Brasil, existem diversos povos com representações culturais distintas, línguas e saberes próprios – uma gama de multiplicidade. Deparamo-nos com povos que oprimem, desde 1500, com a invasão e apropriação dos portugueses ao Brasil, muitas vezes romantizando a ação colonialista das expansões marítimas, deixando de levar em conta o processo de dominação e violência e as consequências imbricadas a este processo que ainda hoje estruturam a sociedade.

Os ditos “majoritários” ou “universais” utilizam ideologias que buscam romper a diversidade cultural e estabelecem uma cultura maior, na qual, os grupos sociais, possuem os mesmos valores, hábitos, costumes e as mesmas tradições.

É fundamental conhecer a nossa história, e as outras histórias, enquanto sujeitos oprimidos e marginalizados para entender e nos apropriar da nossa luta. Discordo quando é mencionado aqui que é da natureza humana não pensar no coletivo, a coletividade foi a base para a perpetuação da espécie humana, a lógica de mundo mudou com o advento da agricultura e da acumulação de propriedades (Estudante 10, 2019, s/p, grifos do autor).

Costumes, conhecimentos, crenças, mitos, culturas, relações de contato e línguas dos povos culturalmente “diferentes” são frequentemente afetadas pela sociedade ocidental dominante que é tida como ‘detentora do conhecimento’ ou da ‘verdade’ e que coloca tudo aquilo que não está no corpus da sua ciência como ‘exterior’, ‘sem método’ ou ‘não válido’.

São poucas as populações que não sofreram influências que, em grande parte, foram estabelecidas por relações de contatos interétnicos com ações que visam a lucrar com a exploração cultural. “Um lado da linha sempre vai tentar manter ou expandir o seu lado, utilizando da exploração e da violência, de acordo com os seus próprios interesses. Sejam eles políticos e/ou financeiros” (Estudante 6, 2019, s/p, grifos do autor).

Mediante esse raciocínio, surge o propósito de entender essas questões, tanto em nosso contexto formativo, quanto no da sociedade envolvente, além da evolução dos processos culturais, a construção e implementação de uma formação social e docente superior. “Num período obscuro em que vivemos, de um levante da extrema direita enquanto tendência mundial, é de grande importância que espaços como este sejam construídos, apresentados e discutidos e que, mais importante que estes espaços, é levar esta reflexão para além dos muros da Universidade” (Estudante 3, 2019, s/p, grifos do autor).

Desse modo, é possível prosseguir com o respeito à “diferença, à interação e ao domínio cultural que permeia a nossa sociedade. A desconstrução dos pensamentos e modelos se torna necessária e imprescindível para a construção de uma interação e visão cultural que respeite, valorize e agregue valores” (Estudante 3, 2019, s/p, grifos do autor).

Nossa sociedade é representada por diversos grupos, línguas, mitos, culturas, crenças, tradições, saberes e fazeres. Esses aspectos nos remetem aos pensamentos de Silva (2018, p. 19),

cada cultura realizando suas representações, pautadas nos seus estilos de vida construindo junto ao seu contexto histórico, carregadas de comportamentos, conhecimentos, preconceitos, ideias, valores, sistemas produtivos e modos próprios de geração, organização intelectual e social e difusão de conhecimentos, partilha socialmente entre os seus o ‘olhar cultural’ coletivo, dirigido rumo ao outro, étnica e culturalmente diferente.

A cultura não se constitui isoladamente, e sim coletivamente, e cada coletividade tem seu próprio modo de socializar seus membros. Essa aproximação com a perspectiva cultural faz-se necessária para sustentar as relações étnico-raciais existentes em todo mundo. As discussões em relação à Interculturalidade, à educação e a diversidade cultural, são decorrentes dos pensamentos e acontecimentos que ocorrem na Interculturalidade, possibilita uma interação das culturas em pé de igualdade, partindo do conhecimento e da valorização mútua, desvendando os condicionantes ideológicos e socioeconômicos que modulam tais relações.

As minorias étnicas, os grupos de pessoas que possuem tradições afrodescendentes, indígenas, quilombolas, entre outros, participaram de ou vivenciaram várias lutas políticas, culturais, jurídicas e econômicas. Nosso país é plurilíngue, multicultural e pluriétnico, no entanto, embora tenham se elaborado, nos últimos anos, políticas afirmativas da diferença e da identidade étnico-racial, ainda encontramos significativa resistência da maioria dos governantes no aprofundamento de reconhecer tais políticas. De acordo com Barbieri (2014, p. 15), isso ocorre devido ao fato de que

a sociedade brasileira não se enxerga multicultural e pluriétnica, e o projeto de desenvolvimento que os governos têm assumido não dá lugar a outro modelo que não o da sociedade de consumo. Ao mesmo tempo em que lhes nega o direito de manter seu modo da vida, enxerga-os através de uma lente utilitarista e etnocêntrica, que parece só admitir o direito à existência dos outros se esses servirem a algo para nós.

Nessa conjuntura, entremeados ao debate, corroboramos com as ideias de Torres (2016, p. 76), de que “essa concepção parte da identificação e esclarecimento das práticas transdisciplinares de coloniais”.

A transdisciplinaridade propõe, nesse âmbito, a suspensão e orientação de atitudes e métodos por meio da decolonização como projeto e prática atitudinal, devendo estar atenta aos desafios provenientes das comunidades inseridas no conceito de anthropos e, ao mesmo tempo, buscar a superação dos limites disciplinares e preconceituosos que são impostos ao longo dos séculos, ainda que se trate de um planejamento em processo árduo e inconcluso. Quando falamos de interculturalidade neste capítulo, ela é entendida não como um meio que reconhece o valor intrínseco de cada cultura e defende o respeito recíproco entre várias culturas, mas que propõe enfrentar os conflitos oriundos desse relacionamento, como também suas riquezas (UFG, 2010).

É nesse cenário, como processo colonizador, tecnológico e globalizado, que as relações interculturais foram construídas pelo mundo a partir de movimentos violentos e antidialógicos. Negar o raciocínio, a reflexão, o pensamento crítico são a base dos regimes autoritários e totalitários.

Essa postura “favorece a mentira, a omissão da realidade e incorporação de uma nova realidade autoritária. É importante conhecer os mecanismos de dominação do colonizador e lutar contra eles. As consequências são conhecidas: fome, desigualdade social, violência e injustiça” (Estudante 3, 2019, s/p).

Dessa forma, é possível perceber a concepção antropológica que compreende a diferença do conhecimento como hierarquia. Para D’Ambrosio (2000), há uma dicotomia entre o dito “veneno” e o “antídoto” no entorno da globalização e do capitalismo ao longo do processo histórico. Para D'Ambrosio (2000) “esse veneno é entendido como uma forma eficaz de manter um grupo ou cultura inferiorizada – enfraquecer suas raízes. Remove a historicidade do dominado. Essa é a estratégia mais eficiente para efetivar a conquista” (p. 5). Para ele, o antídoto é a estratégia mais promissora para a educação/formação – nas sociedades que estão inseridos em transição da subordinação para a autonomia. É restaurar a dignidade de seus indivíduos ou grupos, reconhecendo e respeitando suas raízes culturais e históricas.

O processo de globalização é decorrente do pensamento ocidental dominante, da modernidade, também estruturado pelo pensamento abissal. Esse pensamento atua mediante as linhas abissais que delimitam e separam o mundo humano do subumano – concepções e ideologias preestabelecidas. No tocante ao pensamento abissal, ele reside num sistema de distinções, em “linhas” visíveis e invisíveis que separam a realidade social em dois universos distintos: o “poder dominante” e os “subalternos”.

Apesar da riqueza de conhecimentos tradicionais, da complexidade da organização social, das distintas formas de conhecer, sentir e vivenciar o mundo, os indígenas, pela posição que se encontram ‘do outro lado da linha’, apenas possuem conhecimentos que, de acordo com a sociedade dominante, são irrelevantes ou incompreensíveis (Ramos, 2017, p. 60).

Uma característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da copresença dos dois lados desta linha. Para Castro-Gómez (2005), de um lado, está a cultura do Ocidente como parte ativa, criadora e dominadora, e, do outro, estão as demais culturas “receptoras”. Essa característica, oriunda do conhecimento europeu, é discutida por Santos (2006) quando debate sobre a Ecologia de Saberes.

O conhecimento eurocêntrico está incorporado de tal forma que se considera normal a ciência determinar o que é certo e o que é errado. Tal fato está tão impregnado nas pessoas que chega a ser considerado uma situação normal. Romper com as linhas abissais implica numa desconstrução e numa reconstrução na forma de ver, ser e conhecer o mundo (Estudante 5, 2019, s/p).

Os estudos de Santos sobre a Ecologia de Saberes designam uma filosofia do conhecimento que parte da heterogeneidade e da globalização contra qualquer forma de supremacia e que contribuem para fortalecer um saber primordial “como é o caso dos saberes religiosos de matriz africana” (2006, p. 72).

Por essa perspectiva, a Ecologia de Saberes – pensamento pós-abissal –, parte do princípio da exclusão social e cultural e da noção de que, enquanto houver essa restrição não será possível uma alternativa pós-capitalista progressista e transformadora.

Dessa maneira, são cruciais as contestações entre o conhecimento aprendido e o esquecido, desenvolvido, desprendido e oculto. Enquanto essas linhas invisíveis continuarem a ser erguidas no contexto da diversidade cultural, haverá luta pelos direitos da não exploração e discriminação perante o colonizador.

Para que as lutas da diversidade possam ter resultado, é importante identificar e esclarecer as bases de uma prática transdisciplinar decolonial. Nesse contexto, para Torres (2016, p. 4), essa prática propõe, portanto, a “orientação e suspensão de métodos a partir da decolonização como projeto e como atitude”. Quer dizer, degenerar o poder, o ser e o saber constitui parte da consciência decolonial que se alimenta do encontro entre as diversas áreas, manifestando-se numa faceta limítrofe e fronteiriça; algo que vai ao encontro da proposta da Interculturalidade Crítica, estruturada por reflexão e articulação que considere a hermenêutica dos múltiplos saberes existentes e das verdades científicas.

Uma vez que a Interculturalidade abre caminhos para diálogos de diversas formas de saberes e fazeres mediante a Ecologia de Saberes, apostamos nas estruturas que desvelam o papel da diversidade cultural, que passam a fazer parte do meio que os circunscrevem. Associado aos pressupostos supracitados, salientamos o diálogo a partir do Programa Etnomatemática, proposto por D’Ambrosio (2013) nas discussões que envolvem a existência de outra cultura.

Esse campo de estudo parte da decolonialidade e compreende os conhecimentos como resposta às transcendências da humanidade, os “conhecimentos excêntricos”. Assim esse programa trata as interpretações universais culturais a partir das manifestações interculturais; contra o processo de inviabilização e exploração da cultura, e constrói, mediante representações da realidade, bem como das ações descolonizadoras das subalternidades, por intermédio de experiências e na vinculação das diferenças culturais, a eliminação do paradigma metafórico – as gaiolas epistemológicas. Esse termo é discutido por D’Ambrosio (2000). Para o autor, essa metáfora epistemológica, corresponde, às “disciplinas como conhecimento ‘engaiolado’ na sua fundamentação, nos seus critérios de verdade e de rigor, nos seus métodos específicos para lidar com questões bem definidas e com um código linguístico próprio, inacessível ou não iniciados” (p. 80).

Essas junções de perspectivas/saberes são complicadas em função das implicações secundárias da concepção epistêmica, “afirmações da modernidade”. Desta forma, o embasamento aqui presente foi pensado para minimizar a desigualdade na tentativa de resgatar o acesso aos diversos contextos socioculturais.

A diversidade, enquanto populações culturalmente diferentes em distintos contextos socioculturais do mundo, por muitos anos, por meio de sua variedade cultural, sabedoria e de suas relações e, foram “objetos” de exploração, preconceitos, não aceitação, dominação e opressão.

O importante aqui é refletir desde a perspectiva da Interculturalidade Crítica, um espaço dialógico de articulação que considere a hermenêutica dos múltiplos saberes existentes e, com isso, entender a evolução das relações culturais em diferentes dimensões.

O colonialismo, para além das dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade (Santos, 2009, p. 7).

Esse entendimento, na perspectiva da Ecologia de Saberes, é considerado e utilizado no processo de luta e aceitação do papel da diversidade cultural. Buscam-se discussões e conhecimentos de forma contra hegemônica, por meio da Interculturalidade Crítica e da decolonialidade.

Nesse sentido, Walsh (2007) nos remete essas informações, ligando-as à característica de uma Interculturalidade Crítica, que reconhece as diversas formas de lidar com o mundo e reconhecer as várias “manipulações”, além de questionar e refletir os conhecimentos outros – as epistemologias do Sul (não global).

Torna-se essencial entender a decolonialidade como alternativa e possibilidade para um mundo melhor, com respeito à diversidade e ao outro, desconstruindo-se as fronteiras entre o dito verdadeiro/falso, sentir/pensar.

Neste caso, é importante (re)conhecer e (re)pensar as relações culturais para além de uma prática hierarquizante. O marco para tal contextualização da interpretação da Interculturalidade Crítica e da decolonialidade encontra-se na articulação com a Pedagogia Decolonial.

Para Walsh (2009), essa pedagogia não corresponde a um método, mas a uma opção política. A autora discute essa terminologia frente aos diálogos de Frantz Fanon (1961) e Paulo Freire (2004), indagando as implicações da decolonialidade, e busca investigar a concepção de Fanon, baseando-se no problema da racionalização.

O interesse em discutir essa pedagogia é, por um lado, com a finalidade de contribuir para o debate da atual realidade da diversidade. Pensar a partir dos debates supramencionados, é uma perspectiva crítica da Interculturalidade, orientada pela transformação, criação, pelo respeito e conhecimento outro. Isso é o que assume a visão da decolonialidade.

Essa retórica da promoção e aceitação aponta para uma sociedade preconceituosa, individualista, capitalista, excludente e exploradora. Não existe uma transformação social dos direitos e identidades, e sim a (re)inclusão, na sociedade, dos oprimidos frente à ação estatal.

A preocupação de Walsh (2009) parte da exclusão, negação, exploração, subalternação ontológica e epistêmica dos grupos e sujeitos racializados. Por isso, o viés defendido pela autora está em estreita relação com a decolonialidade, a Etnomatemática e a diversidade cultural. Ela busca derrubar e desafiar essas estruturas sociais da colonialidade e valorizar os saberes e fazeres dos diversos grupos socioculturais.

>>Vivemos alienados e não conseguimos enxergar o outro e sua cultura, que é diferente da nossa. Enxergamos o mundo a partir de uma perspectiva que impossibilita a apreciação de culturas outras [...] Enquanto alienados e oprimidos, somos “ensinados” a desprezar nossos símbolos de resistência e luta para tentar imprimir costumes de nossos colonizadores, costumes que não são nossos (Estudante 9, 2019, s/p, grifos do autor).

Essas perspectivas se sistematizam como ferramentas que amparam o modo de vida dos oprimidos e concebem-nos um novo “projeto” de ser e viver. Por meio destas ideias, Santos (2006) menciona a necessidade de criação de “um projeto que provoca questionar as ausências – de saberes, tempos e diferenças” (p. 72), podendo-se entender que esse processo permite ir além das manifestações atuais de uma educação intercultural.

Resistência, formação docente e diálogo: uma reflexão dos estudantes no fórum de discussões

Ontem uma família negra foi alvejada por militares, uma triste realidade e que tem tudo a ver com o pensamento abissal. Temos uma polícia e um exército, que vê o negro como bandido e vê o branco que é bandido como um desvio de conduta que deve ser amenizado. Os tratamentos são diferentes (Estudante 8, 2019, s/p, grifos do autor).

A proposição dessa disciplina possibilitou o debate de questões importantes no processo formativo do discente, frente às questões relacionadas ao reconhecimento da diversidade cultural. As atividades após discussões e reflexões, tendo como textos e artigos científicos para fomentar os debates, embasaram questionamentos e o (re)pensar da prática docente em uma sala de aula.

>>Todos nós somos preconceituosos, faz parte das estratégias do sistema nos manter assim, pois assim contribuímos com a manutenção de todas as linhas abissais. É importante termos consciência, mas ela só não transforma. Temos que combater, em especial em nosso campo de atuação, e para isso nos amparamos na diversidade, nos aproximarmos dela, conhecer, vivenciar. O conhecimento pode ser dominador, mas ele também pode nos libertar (Estudante 4, 2019, s/p, grifos do autor).

Para além da contestação, os alunos enumeraram diversos pontos importantes sobre a diversidade presente nos textos, fato que ultrapassa a concepção ocidental de exploração racional da natureza. Em suas reflexões, os alunos subsidiaram e elencaram tópicos como:

Precisamos nos questionar se a globalização realmente cumpre com seu discurso. Será que a globalização é para todos? O acesso é para todos? A globalização também serve de exploração dos mercados e de fronteiras de países mais pobres que trabalham para manter o acesso dos mais ricos a todas vantagens de um mundo globalizado (Estudante 7, 2019, s/p).

Nossa cultura, nossas raízes foram apagadas e destruídas para que pudéssemos incorporar no nosso viver uma outra cultura que não é nossa, tamanha violência a que fomos e somos expostos (Estudante 2, 2019, s/p).

Por esse mecanismo de resistência, a diversidade cultural permanece viva na contemporaneidade, ao analisarmos os escritos dos alunos, no fórum de discussões (ambiente on-line de reflexão e debate crítico reflexivo sobre as temáticas abordadas em todas as aulas), notamos, claramente, que os discentes compreenderam a diversidade cultural existente, tanto no contexto educacional quando na sociedade envolvente, e o aprofundamento histórico e pessoal mostra o valor e sua importância para cada nação, no caminho plural e democrático. Esse ambiente on-line de aprendizagem e de debate critico reflexivo ocorreu em todos os momentos da disciplina. Era solicitado que todos os estudantes realizassem uma intervenção no fórum ao final de cada encontro. Algumas falas foram retiradas dessas intervenções. Foram selecionados apenas os registros escritos que corroborassem o objetivo deste texto.

Conhecimento das diversas culturas possa contribuir conosco professoras e professores na maneira em como nos relacionar com os estudantes em sala de aula, compartilho também que assim poderemos ter um ambiente mais saudável para o processo de ensino-aprendizagem (Estudante 6, 2019, s/p).

No livro A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami, escrito por Davi Kopenawa (2010), um xamã yanomami, em coautoria com Bruce Albert, etnólogo francês, Kopenawa reforça a necessidade do reconhecimento de sua cultura em um desejo: “você desenhou e fixou essas palavras em peles de papel, como pedi. Elas partiram, afastaram-se de mim. Agora desejo que elas se dividam e se espalhem bem longe, para serem realmente ouvidas” (p. 64), e desse modo, sendo ouvidas, “quero também que os filhos e filhas deles [brancos] entendam nossas palavras e fiquem amigos dos nossos, para que não cresçam na ignorância” (p. 65). Desta forma, os autores acima reafirmam,

pediu-me que as pusesse por escrito para que encontrassem um caminho e um público longe da floresta. Desejava desse modo não apenas denunciar as ameaças que sofrem os Yanomami e a Amazônia, mas também, como xamã, lançar um apelo contra o perigo que a voracidade desenfreada do “Povo da Mercadoria” faz pensar sobre o futuro do mundo humano e não humano. Os dizeres de Davi Kopenawa constroem, assim, um complexo hipertexto cosmológico e etnopolítico, tecido num esforço inédito de auto-objetivação e de persuasão, resultante de uma história e de um engajamento pessoal que conferem a seu relato uma singularidade radical, inclusive no universo yanomami (Kopenawa; Albert, 2010, p. 51).

É importante salientar que a escola, assim como o professor, amparada pelos pressupostos aqui debatidos, deixa de ser um instrumento colonizador e passa a ser intercultural na produção de novos conhecimentos que contribuem para uma pedagogia decolonial emancipatória. Nas palavras de Kopenawa e Albert (2010),

hoje, os brancos acham que deveríamos imitá-los em tudo. Mas não é o que queremos. Eu aprendi a conhecer seus costumes desde a minha infância e falo um pouco a sua língua. Mas não quero de modo algum ser um deles. A meu ver, só poderemos nos tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em Yanomami. Sei também que se formos viver em suas cidades, seremos infelizes. Então, eles acabarão com a floresta e nunca mais deixarão nenhum lugar onde possamos viver longe deles. Não poderemos mais caçar, nem plantar nada. Nossos filhos vão passar fome. Quando penso em tudo isso, fico tomado de tristeza e de raiva (2010, p. 75).

Ao final das atividades da disciplina, amparada pelas discussões realizadas no fórum, percebemos que todos os momentos foram pertinentes para o (re)pensar a prática superior docente e a valorização da diversidade cultural. Reflexões percorridas por meio de exposição e questionamentos fomentaram os debates sobre a temática. “Observar a diversidade cultural nos ajuda a aceitar as diferenças, bem como não julgar a cultura do outro sob o meu olhar – ainda que o momento político tenha se tornado intolerante” (Estudante 1, 2019, s/p, grifo do autor).

Na condição de interlocutores e mediadores, os discentes afirmaram estar cientes de que é fundamental reconhecer a diversidade, bem como os desafios emergentes no campo da formação de professores, para se pensar e valorizar os espaços existentes.

Dessa forma, distanciamos do otimismo ou pessimismo ingênuo mencionado por Mário Sérgio Cortella e nos aproximamos do otimismo crítico no sentido de “construir coletivamente os espaços efetivos de inovação na prática educativa que cada um desenvolve na sua própria instituição” (Estudante 4, 2019, s/p, grifos do autor).

Vejo que as discussões têm nos proporcionado ampliar os nossos olhares, pois no final das contas todos queremos ser respeitados pelo que somos e somos o tempo todo julgadores das outras culturas partindo do nosso olhar (Estudante 11, 2019, s/p).

Mais do que isso, houve a compreensão da importância de continuar a luta pelo reconhecimento e o respeito pelo outro, pela cultura brasileira e a cultura estrangeira, bem como os direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. “A própria sala de aula é um ambiente diverso, onde cada um possui conhecimentos e experiências advindas de relações anteriores, do meio sociocultural” (Estudante 1, 2019, s/p).

Referências

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D’AMBROSIO, U. Educação para sociedade em transição. 2ª ed. Campinas: Papirus, 2000.

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FANON, F. Los condenados de la Tierra. México: Fondo de Cultura Económica, 1961.

FREIRE, P. Pedagogy of indignation. Boulder: Paradigm, 2004,

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Publicado em 23 de março de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

SILVA, Matheus Moreira da; CAMILO, Washington Marcos; RIBEIRO, José Pedro Machado; SOARES, Márlon Herbert Flora Barbosa. Educação, alteridade e conhecimento: a diversidade cultural como construção histórica. Revista Educação Pública, v. 21, nº 10, 23 de março de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/10/educacao-alteridade-e-conhecimento-a-diversidade-cultural-como-construcao-historica

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