Geografia da resistência: dissidências, insurgências e educação
Victor Pereira de Sousa
Mestrando em Geografia (UFRRJ)
Contextualizando a problemática em questão
A construção do saber que permeia as mais diferentes escalas do tecido social do qual fazemos parte, na maioria das vezes, atesta raízes marcadas por uma política excludente entre pessoas que são consideradas intelectuais e outras que são subalternizadas diante do conhecimento construído ao longo da história, no espaço e no tempo. Muitos desses caminhos trouxeram privilégios que solidificaram as epistemologias que consolidam as mais diferentes ciências sobre as quais hoje nos debruçamos, ocasionando privilégios científicos para uma porção muito específica de intelectuais. Com a Geografia não foi diferente.
As ausências da produção do saber e do poder tornaram-se focos de
interesse e concebidas como contraditórias e complementares às presenças e expressões geográficas. A percepção da falta de grupos sociais ou temas que estão fora do discurso hegemônico da Geografia não mais se justificava por sua a-espacialidade ou sua inadequação como objetos deste campo científico, mas pela hegemonia de determinada forma de conceber a produção do espaço, pretensamente universal e neutra que abafava a voz dos grupos não hegemônicos (Silva, 2009a, p. 2).
Temos, assim, características quem pautam privilégios específicos na construção da ciência geográfica e, longe de desmerecer os grandes nomes que foram responsáveis por isso, é preciso levar em consideração que, para se ter uma análise crítica sobre concepções e perspectivas que antes nos pareciam sólidas, precisamos indagar, refletir e problematizar para sermos capazes de reconhecer posturas e ações que precisam ser reconstruídas, ressignificadas, reestruturadas.
Quantas autoras da Geografia conhecemos? Quantos autores gays da Geografia conhecemos? Quantas autoras lésbicas da Geografia conhecemos? E quantos autores ou autoras trans e travestis na Geografia conhecemos?
Quando pensamos em indivíduos que fogem dos padrões sociais estabelecidos, como é o caso da cis-heteronormatividade compulsória, percebemos que, por muito tempo, a Geografia excluiu de forma clara a existência de um número massivo de pessoas que têm suas identidades desviantes da cis-heterossexualidade.
A ciência geográfica hegemônica é marcada por privilégios de sexo e de raça, características que dificultaram a expressão das espacialidades dos grupos das mulheres, dos não brancos e dos que não se encaixam na ordem heterossexual dominante. Durante muito tempo, as existências espaciais desses grupos ou de suas ações concretas não foram consideradas "adequadas" como objetos de estudos do campo da Geografia. A razão de suas ausências no discurso geográfico deve ser entendida pela legitimação naturalizada dos discursos hegemônicos da Geografia branca, masculina e heterossexual, que nega essas existências e também impede o questionamento da diversidade de saberes que compõem as sociedades e suas mais variadas espacialidades. A conquista da hegemonia do saber geográfico branco, masculino e heterossexual se dá pelas relações de poder que se praticam sobre o conjunto social (Silva, 2009a, p. 26).
Isso faz refletir sobre a importância de questionar saberes que já se encontram até então consolidados. Não para destituí-los ou desmerecê-los, mas sim para reconhecer saberes e conhecimentos que foram silenciados no espaço-tempo, contribuindo para que a epistemologia seja plural e significativa, partindo das teorias e métodos que já conhecemos para reconstruir e legitimar outras formas de pensamento, de existência e de resistência e entendendo que
os grupos subordinados são ativos e exercem um contrapoder à ordem estabelecida. O poder apresenta fissuras e implica múltiplos feixes de relações. Assim, a subordinação das pessoas ao discurso hegemônico se estabelece por meio de tensões, que desestabilizam a pretensa universalidade científica (Silva, 2009a, p. 26).
Portanto, após essa breve contextualização sobre as problemáticas de gêneros, sexualidades e a construção de conhecimentos geográficos, o presente texto tem por objetivo refletir sobre tais questões no campo dessa ciência como disciplina escolar inserida no contato com crianças e adolescentes, buscando contribuir, por meio de sólida pesquisa bibliográfica com contribuições de intelectuais como Callai (1995; 2005; 2011; 2015), Cavalcanti (2010), Silva (2009a; 2009b), Silva (2017), Moreira (2013; 2014) e Paraíso (2016), entre outros e outras, para novos debates e perspectivas diante de uma ciência geográfica que seja inclusiva, acolhedora e solidária, que faça da resistência um meio primordial para a difusão do conhecimento e a construção de processos de ensino-aprendizagem capazes de contribuir efetivamente para o exercício pleno da cidadania por meio de uma educação que possa ser dita verdadeiramente democrática.
Este texto também faz uma análise crítica diante do ensino de Geografia e busca instigar professores e professoras a pensar nos gêneros e nas sexualidades como pauta para assuntos a serem trabalhados em sala de aula, questionando e exemplificando outras perspectivas para um ensino que seja reflexivo, crítico, não neutro e que se baseie na ação política necessária para os diálogos entre o ensinar e o aprender.
É importante ressaltar, ainda, que por toda a escrita do texto as palavras gêneros e sexualidades estão escritas no plural como um reconhecimento político da existência da pluralidade de gêneros e sexualidades de pessoas que se identificam de formas diversas, compondo o mosaico múltiplo que é nosso tecido social, assim como, propositalmente, todo o texto está escrito em uma linguagem que não privilegia somente o masculino, não sendo, assim, um erro de português ou redundâncias ortográficas, mas sim, uma afirmação de resistência.
Por uma educação geográfica insurgente
Os desafios de trabalhar a educação de forma inclusiva no que tange às diversidades e diferenças são muitos, mas essa é uma tarefa mais do que necessária para o enfrentamento direto dos abismos sociais que invisibilizam indivíduos e trajetórias. A Geografia como disciplina da Educação Básica está inserida nesse contexto.
A educação no Brasil passa por profundas mudanças, talvez não tantas quanto a sociedade atual exigiria, mas sem dúvida significativas. Nesse contexto, a Geografia, como componente curricular [...] na escola básica, também se modifica, seja por força das políticas públicas [...], seja por exigências da própria ciência (Callai, 2005, p. 229).
E, quando pensamos no ensino de Geografia, devemos pensar em uma disciplina que é responsável, assim como outras Ciências Humanas e Sociais, por construir um olhar crítico diante da realidade em que vivemos, pensando geograficamente não mais de forma descritiva, mas sim de forma reflexiva, deixando de lado a simples memorização e reprodução de mapas para buscar diálogos multilaterais, que valorizem a diversidade, a pluralidade, e que seja ferramenta de mobilidade social para uma sociedade mais justa e verdadeiramente democrática. Como afirma Moreira (2013), a Geografia serve para desvendar as máscaras sociais, já que, por ter um objeto de estudo que é essencialmente social, o espaço não é um suporte, muito menos um substrato ou receptáculo; o espaço geográfico é um espaço produzido.
Assim, como aponta Cavalcanti (2010, p. 33), "a Geografia trabalha com conceitos que fazem parte da vida cotidiana das pessoas e em geral elas possuem representações sobre tais conceitos". Nessa perspectiva, a Geografia escolar não pode se situar fora da realidade vivida pelos alunos e alunas, que precisam ser entendidos e entendidas como sujeitos constituintes e constitutivos do espaço geográfico social e produzido.
Nesse patamar, abordar questões de gêneros e sexualidades nos conteúdos geográficos utilizando metodologias didático-pedagógicas que prezem por essa diversidade e mostrando aos e às estudantes como tais problemáticas se inserem no objeto de estudo da Geografia é fundamental para uma educação geográfica insurgente, que vá além das molduras já estabelecidas e preconize a valorização de diferentes formas de viver o espaço e construir uma nova geograficidade que seja capaz de ir ao encontro da igualdade de direitos e da justiça social tão clamadas pela democracia.
Não se trata, então, nem de simplesmente o professor transmitir conhecimentos para os alunos, nem de apenas mobilizá-los e atender a suas necessidades imediatas. Ou seja, nesse processo nem é passivo o aluno, nem o professor. O aluno é ativo porque ele é sujeito do processo e, por isso, sua atividade mental ou física é fundamental para a relação ativa com os objetos de conhecimento; o professor é ativo porque é ele quem faz a mediação do aluno com aqueles objetos. Portanto, ambos atuam, ou devem atuar, conjuntamente ante os objetos de conhecimento (Cavalcanti, 2010, p. 138).
Sobretudo, a cada passo dado pela sociedade, as concepções da Geografia passeiam junto. Pé a pé. Como em ensaios coreografados, ímpetos de um espetáculo magnífico. Se não tem sido assim, deveria ser. Não que haja leis e normas que ditem isso, mas a própria Geografia grita isso. Ecoa aos quatro ventos. A Geografia é social. É humana. É física. É material. Imaterial. Grandiosa e imprevisível.
Pois, assim como como salienta Moreira (2013), a Geografia é uma forma de leitura do mundo. A Educação é um processo no qual o professor ou a professora e os e as estudantes se relacionam com o mundo através das relações que travam entre si e das ideias compartilhadas. A Geografia e a Educação concorrem para o mesmo fim: compreender e construir o mundo a partir das ideias que formam dele. Ambas trabalham com ideias.
E, seguindo essa lógica de insurgências na intrínseca relação entre Educação e Geografia, é necessário compreender que,
mais do que silenciar, desmerecer ou tornar ausentes certos fenômenos sociais do discurso geográfico, como é o caso das abordagens de gênero, sexualidades ou raça, justificando que elas não são pertencentes ao campo científico, se faz necessário estar alerta quando a realidade socioespacial nega ou supera nossas teorias e revela a fragilidade de nossas bases conceituais e metodológicas (Silva, 2009b, p. 90).
Logo, pensar em uma necessária insurgência no campo educacional da Geografia voltado para a Educação Básica requer pensar em trabalhar com crianças e adolescentes de modo a elucidar que as diferenças e diversidades existem e que é preciso valorizar essas diferentes formas de viver o espaço, indo de embate aos padrões enrijecidos que provocam rupturas em nosso tecido social.
E, apesar de parecer que é difícil relacionar essas questões de gêneros e sexualidades ao ensino de Geografia, essa tarefa torna-se mais fácil ao analisarmos com sensibilidade os conteúdos trabalhados por essa disciplina. No mundo do trabalho, por exemplo, não há relações de gêneros e sexualidades que merecem destaque ao trabalharmos esse tema em sala de aula? Homens, mulheres e indivíduos não cis-heterossexuais têm relação de igualdade no mercado de trabalho? E como isso pode afetar a economia da cidade, do estado, da região, do país e até mesmo do continente em que vivem?
Ainda: durante as Revoluções Industriais, as mulheres não tiveram nenhum papel de destaque que merece ser evidenciado ou será que só não o conhecemos? O direito à cidade, ao trabalharmos urbanização, é igual para todas as pessoas ou há dissimetrias de gêneros e sexualidades que lesam esse direito a uma parcela da sociedade? Será que tais problemáticas não poderiam estar cartografadas e disponibilizadas em mapas temáticos para que ocorressem diferentes análises em sala de aula entre docentes e discentes?
Enfim, essas perguntas e muitas outras dão margem para repensarmos o processo de ensino-aprendizagem em Geografia. Esses questionamentos não extinguem o objeto de estudo da ciência geográfica, muito menos o fragilizam. Pelo contrário, reforçam o caráter humano da disciplina e seu compromisso como ferramenta de mobilidade social na Educação Básica. Corroborando percepção de Moreira (2013) ao salientar que a Geografia é também uma ciência social e, por isso, torna-se relevante a utilização do olhar geográfico para com essas relações tão sensíveis e complexas.
Para além da docência: formação, currículo e livro didático
Sabemos que muitas questões que envolvem a problemática em questão, neste texto, vão além do exercício da docência em sala de aula. Um ponto inicial para essa reflexão é a formação docente, inicial e continuada, que muitas vezes não prepara professoras e professores para lidar com questões de gêneros e sexualidades na construção dos saberes geográficos, pois, como já exposto, a epistemologia da Geografia por muito tempo tornou ausentes tais concepções.
Compreende-se, então, que,
para romper com a prática tradicional da sala de aula, não adianta apenas a vontade do professor. É preciso que haja concepções teórico-metodológicas capazes de permitir o reconhecimento do saber do outro, a capacidade de ler o mundo da vida e reconhecer a sua dinamicidade, superando o que está posto como verdade absoluta. É preciso trabalhar com a possibilidade de encontrar formas de compreender o mundo, produzindo um conhecimento que é legítimo (Callai, 2005, p. 231).
Assim, pensando na formação docente em Geografia, não podemos restringir a responsabilidade do trabalho com questões de gêneros e sexualidades somente aos professores e às professoras da Educação Básica. É fundamental, então, que a formação docente inicial aborde tais questões para que, futuramente, esses graduandos e essas graduandas, quando já como docentes regentes, possam levar esses assuntos para as salas de aula na Educação Básica arcabouçados por uma construção de conhecimentos que já tenha tido seu prelúdio na licenciatura.
Todavia, é fundamental que os departamentos e institutos aos quais os cursos de licenciatura em Geografia estão vinculados assumam a postura de inserir essas temáticas nos conteúdos das disciplinas, grafados nas ementas, respaldando não só a importância desse debate na formação docente como também os e as docentes que levam esses conteúdos para suas disciplinas.
Assim, para oportunizar que as pessoas compreendam a espacialidade onde vivem por meio da educação geográfica, deve-se buscar construir uma forma geográfica de pensar que seja mais ampla, mais complexa e que contribua para a formação dos sujeitos, a fim de que eles realizem aprendizagens significativas, tornando a Geografia mais do que mera ilustração. E isso significa reflexões sobre como ficam os conteúdos, como ficam as fontes de acesso a esses conteúdos e de como fazer o seu tratamento (Callai, 2015, p. 224).
Portanto, sabemos que não trabalhar com temáticas de gêneros e sexualidades na formação inicial em Geografia causa um déficit no trabalho com essas questões na Educação Básica, já que professores e professoras se formam sem essa base de conhecimentos. Isso se reforça quando entendemos que "ao vivenciar as formas de aprender Geografia, o graduando poderá estabelecer as bases para ensinar a Geografia" (Callai, 2011, p. 7).
Os cursos de formação inicial são fundamentais para os futuros professores e futuras professoras que irão trabalhar nas salas de aula da Educação Básica, lidando diretamente com a formação cidadã, que é ferramenta primordial das instituições escolares. Dessa forma,
os nossos cursos na universidade devem informar, permitir que o aluno adquira um grande repertório de conteúdos e saiba discuti-los teoricamente; ou deve formar um bom professor que saiba discutir e ensinar o processo de aprender, e daí transite entre os conteúdos e os aspectos pedagógicos de forma a realizar um ensino consequente com aquilo que se espera da escola no mundo atual (Callai, 1995, p. 40).
O primeiro e o segundo graus, hoje entendidos como Ensinos Fundamental e Médio, fazem parte da Educação Básica, e os cursos de licenciatura devem preparar os graduandos e as graduandas para os diferentes desafios e obstáculos vivenciados na escola, além, é claro, de oportunizar um conhecimento amplo dos conteúdos a serem trabalhados pelas disciplinas – em nosso caso a Geografia. Ao menos é o que se espera de um curso de formação docente.
Assim, os cursos de formação inicial são fundamentais na preparação docente, pois vivemos em um país que não valoriza a profissão docente nem a educação. Dessa forma, ao entrar no mercado de trabalho, muitas vezes para ganhar um salário razoavelmente digno, o professor ou a professora na Educação Básica precisa trabalhar em mais de uma escola, atendendo a várias turmas, em longas jornadas de trabalho que não se restringem somente ao período em que o ou a docente estão na instituição escolar.
Logo, fica muito mais difícil que essa ou esse profissional consiga disponibilidade para se inserir em cursos de formação continuada, por mais necessários que sejam, pois, infelizmente, tempo para se dedicar à formação continuada e a cursos de pós-graduação é um privilégio que nem todo profissional docente tem. E o sucateamento da educação no Brasil só reforça esses abismos sociais.
Então, se os cursos de formação inicial não trazem em seu ementário questões de gêneros e sexualidades para serem trabalhadas nas turmas de licenciatura em Geografia, mesmo que como um pontapé inicial, após a formação profissional e inserção no mercado de trabalho o contato com essas temáticas se torna mais difícil para a realidade de muitos indivíduos, o que, consequentemente, agrava a situação de trabalhar na Educação Básica com assuntos voltados para essa temática.
Mas não podemos esquecer, que mesmo com uma formação inicial ou continuada em que docentes tenham tido contado com questões de gêneros e sexualidades, existem outros obstáculos que dificultam o trabalho com essas temáticas na Educação Básica, como o currículo e o livro didático.
O currículo de Geografia na Educação Básica não traz concepções voltadas para questões de gêneros e sexualidades, pois, na verdade, o que vimos nos últimos anos em nosso país foi um movimento com o objetivo deslegitimar o trabalho com esses conteúdos, como foi o caso do Escola Sem Partido, que instaurou uma série de inverdades que iam desde a utilização de um kit gay até a acusação de que professores e professoras estavam querendo destruir a família tradicional brasileira.
Portanto, o currículo não é neutro e muito menos apolítico. Uma série de questões relacionadas a diferentes relações de poder estão inseridas na elaboração dos currículos e do que será trabalhado em cada componente curricular.
Neste sentido, entendemos o currículo escolar como uma política e uma prática cultural, o qual se destaca como um artefato historicamente produzido, com o poder regulador de criar e reproduzir marcas culturais, assimetrias, diferenças e ao mesmo tempo formas de controlar e vigiar o corpo e a sexualidade (Rodrigues; Corpes; Rocha, s/d, p. 48).
Isso faz com que a dificuldade de trabalhar com crianças e adolescentes temas considerados polêmicos seja ainda maior, ocasionando um desgaste físico e mental a quem se propõe estar na linha de frente da subversão das amarras impostas por um currículo que não priorize a diversidade e a diferença como instrumentos didático-pedagógicos.
Acreditando que é no currículo e pelo currículo que as lutas em torno da "fabricação" de identidades culturais, nas chamadas "políticas de identidade", são historicamente forjadas, nos cabe neste momento problematizar discurso de diversidade que vem alimentando as políticas públicas curriculares, voltadas para a educação e, desta forma, o fazer pedagógico em sala de aula (Rodrigues; Corpes; Rocha, s/d, p. 59).
Corrobora a ideia de que as estratégias curriculares de aprisionamento docente em sala de aula vão além da mera seleção de conteúdos a exigências do desenvolvimento de habilidades e competências que extrapolam a própria carga horária da disciplina, dificultando que os próprios conteúdos estabelecidos pelo currículo sejam trabalhados, quem dirá os conteúdos extracurriculares.
É absurdo o modo como tentam controlar o currículo e os/as docentes. É espantoso o modo como tentam destituir do/a docente a autoridade de educar e decidir como exerce sua profissão. É alarmante que os/as professores/as passem a ser objeto declarado de ataques desses grupos reacionários, para que as questões de gênero e sexualidade sejam proibidas na escola (Paraíso, 2016, p. 394).
Toda essa problemática vai aprofundando ainda mais as dificuldades do trabalho com essas temáticas, acreditando ainda que
em um currículo sempre há espaço para os encontros que escapam ao controle, que resistem e extrapolam ao planejado, que se abrem para a novidade. Paradoxalmente, exatamente por ser incontrolável, o currículo é escolhido por grupos reacionários para fazer a coibição, o impedimento, a proibição e o controle dos temas gênero e sexualidade (Paraíso, 2016, p. 389-390).
Desse modo, temos o paradoxo de trabalhar com currículos que pautam uma "diversidade" lapidada nos moldes dos interesses políticos de quem tem o poder de formulação curricular. E Ruy Moreira (2014) nos dá a possibilidade de pensar nessa pauta curricular em articulação entre escola e universidade, expondo que
o currículo universitário e a grade escolar são uma relação de espelho. O cotidiano da universidade e o cotidiano da escola, porém, são distintos. E mais distintos ainda os modos de relacionamento respectivos com a sociedade. Há uma diferença de forma de vida e de inserção societária que interfere fortemente na forma como a marcha evolutiva do pensamento geográfico converge na relação currículo-grade e no modo como essa relação currículo-grade leva o pensamento geográfico a chegar ao dia a dia da sociedade (p. 151).
Além disso, o autor reflete sobre como "é o cotidiano sociopolítico dos professores e alunos da universidade e da escola o ponto de referência da distinção, levando a pensar que estamos frente ao conteúdo, ideologia e linguagem de duas formas de Geografia diferentes", o que nos leva a refletir sobre a existência de "uma Geografia universitária e uma Geografia escolar, quando frequentemente o que existe são dois modos distintos de fluir o pensamento" (Moreira, 2014, p. 151).
E, indo ao encontro de toda essa problemática curricular temos a questão dos livros didáticos, que, na maioria dos casos, seguem quase restritamente as formulações de conteúdos estabelecidas para os componentes curriculares e, em grande parte, as escolas têm o livro didático como um dos únicos instrumentos de trabalho com crianças e adolescentes, possibilitando a compreensão de que, como afirma Silva (2006), o livro didático tem uma dinâmica própria que não o isenta do debate de reconstrução e produção do ensino.
Além disso, as relações de poder inseridas nas formulações curriculares não estão isentas nos livros didáticos, pois,
de fato, o livro didático imprime sua marca indelével no mercado editorial brasileiro; os índices e números que afirmam essa presença são gigantescos. Nesse modelo, o Estado atua com as editoras privadas, seja por meio da aquisição seja pela coedição de livros didáticos, desde que, comumente, os títulos tenham sido aprovados pelas comissões instaladas para avaliá-los (Silva, 2006, p. 40).
Nesse patamar, a política de aquisição e circulação dos livros didáticos nos espaços escolares também segue um caminho de interesses determinados. E, ao estarem em articulação com os conteúdos propostos por cada componente curricular, acaba por invisibilizar, assim como os currículos, pautas de discussão acerca de temas como gêneros e sexualidades.
Apesar de todos os desafios e obstáculos, acreditamos que, com o engajamento político de que a educação não é neutra e a consciência crítica sobre o ensinar e o aprender, podemos subverter a ordem (im)posta por padrões reducionistas de gêneros e sexualidades que fragmentam o próprio direito à educação. Entendemos, também, como docente, que "educar implica viver visceralmente fora de um domínio para chamar de próprio" (Ranniery, 2020, p. 286), corroborando, nessa perspectiva, com a ideia de Candau (2011, p. 35), ao afirmar que "sem horizonte utópico é impossível ensinar", buscando o que ensina Odara (2020) ao legitimar uma Pedagogia da Desobediência.
Reflexões sobre o ensino de Geografia: aonde queremos chegar?
Como Ciência Humana e disciplina escolar, a Geografia pode ser um instrumento de mobilidade social desde que pensada e praticada de modo a romper as desigualdades e reconfigurar os abismos sociais nos quais vivemos. E, como nos apresenta Silva (2017, p. 3), esses abismos se relacionam, pois
as desigualdades de gênero advêm das relações sociais de sexo, como dimensão que organiza as diferentes estruturas sociais e códigos de linguagem, definindo nas estruturas de poder um sistema hierárquico e de privilégio dos homens sobre as mulheres. E, se articularmos a dimensão de gênero a outras duas categorias, como raça e classe, perceberemos que o sistema de opressão, exploração e dominação nos coloca em posições diferenciadas na estrutura de poder e vivenciando de forma específica o processo de dominação no contexto da sociedade capitalista, racista, patriarcal e heteronormativa.
Logo, é por meio da educação que podemos abrir uma porta para, no mínimo, a mitigação de tais fatores, como a reprodução de desigualdades sociais e da prática corriqueira da opressão. O professor ou a professora de Geografia precisa ter em mente que uma de suas funções é formar cidadãos e cidadãs e precisa entender que sua função na Educação Básica não é formar geógrafos ou geógrafas, e sim indivíduos aptos a ler o mundo e ser capazes de mobilizar estruturas que rompam com as mazelas sociais existentes ao seu redor.
É de se indagar, assim, que Brasil a Geografia do Brasil que se ensina faz então desfilar. Qual é o Brasil do professor?
Duas linhas de respostas se desdobram de imediato frente a essas perguntas. Uma que apresenta o Brasil como um todo formado da reunião de partes tão diferenciadas umas das outras que esse todo acaba por não ter uma face propriamente de sociedade brasileira. Outra que oculta por trás de expressões adjetivas como país tropical, país continental, país potência, país do futuro, país em desenvolvimento, país emergente uma leitura que se passa de uma concepção de país, não de sociedade com sujeitos de carne e osso propriamente. Discursos de um país sem o rosto que o personalize. São discursos de politização pela despolitização do sujeito. Tem cara de que/quem o Brasil? (Moreira, 2014, p. 131).
Dessa forma, a Geografia, embasada pelo pensamento geográfico crítico, não neutro e como ação política, é um instrumento de ação eficaz para que a educação possa se tornar uma ferramenta da liberdade e da emancipação discente.
É fundamental demonstrar a alunos e alunas como as problemáticas de gêneros e sexualidades (re)formulam e (re)modificam o espaço geográfico, trabalhando os próprios conceitos-chave da Geografia, como espaço, lugar, região, território e paisagem. A questão da opressão vinculada ao direito à cidade entre homens e mulheres é um claro exemplo disso. Como aponta Silva (2017, p. 5),
a configuração da cidade em sua dinâmica espacial é retrato da conformação dos padrões e relações sociais que acaba reproduzindo e reforçando o lugar da mulher na sociedade, como estrito ao ambiente doméstico e às tarefas historicamente creditadas de cuidados, acentuando a falsa dicotomia entre público e privado.
Portanto, inserir essa problemática no contexto em que crianças e adolescentes estão presentes faz com que essa realidade possa ser questionada e problematizada em sala de aula com a mediação do professor ou da professora e haja viabilidade de um instigante debate entre todos e todas. Torna-se, então, essencial pensar a cidade como lócus de relações de poder entre gêneros e que, dentro desse contexto, o gênero feminino acaba por ser oprimido em relação ao masculino. E essa, com certeza, é uma realidade vivida por meninos e meninas que estão em sala de aula, assim como por familiares dessas crianças e adolescentes.
Assim, devemos pensar que a realidade do espaço vivido precisa ser pauta em sala de aula, assim como nos conteúdos trabalhados pelo ensino de Geografia. Ao trabalhar urbanização, direito à cidade, por que não dedicar um tempinho da aula para trabalhar a realidade desigual em que homens e mulheres vivem em sociedade, buscando romper o patriarcado que fratura exponencialmente indivíduos todos os dias?
Como aponta Rolnik (2009, p. 11), é importante refletirmos que
os obstáculos que se interpõem para o efetivo cumprimento do direito à moradia afetam de forma diferente e desproporcional as mulheres, inclusive a violência contra a mulher, normas sociais e culturais discriminatórias, discriminações múltiplas, a falta de capacidade de pagamento e até mesmo a privatização dos estoques públicos de moradia.
Ao trabalhar esse tema em sala de aula, o professor ou a professora estará trabalhando a questão de território e sua abordagem de territorialização dentro das relações de poder, trazendo para o centro de análise as questões de gênero e sexualidade dentro de uma abordagem geográfica, podendo exemplificar a seus alunos e alunas como esse processo pode ocorrer de forma cíclica e fluida.
É certo que há níveis para que o professor ou a professora aborde tais temáticas em suas turmas pelo fato de, dependendo do ano escolar e da própria escola em que trabalha, as crianças ainda podem ser muito novas para entender processos tão complexos ou o tema pode ser mal entendido por pessoas da comunidade escolar e responsáveis.
Todavia, cabe ao ou à docente elaborar um conteúdo de forma compatível com a idade de seus alunos e alunas, utilizando linguagens claras e objetivas, que levem à compreensão e à apreensão dos temas abordados em sala de aula. É, de fato, agir de forma subversiva. Como citados antes, são muitos os exemplos que podem ser abordados dentro dos conteúdos de Geografia que trabalhem essa temática.
A forma como o professor se relaciona com a sua própria área de conhecimento é fundamental, assim como sua percepção de ciência e de produção do conhecimento. E isso é passado para o aluno e interfere na relação professor-aluno; é parte dessa relação. Outro aspecto que se entrelaça é a metodologia do professor. Um professor que acredita nas potencialidades do aluno, que está preocupado com sua aprendizagem e com o seu nível de satisfação com a mesma, exerce práticas de sala de aula de acordo com essa posição. E isso também está indicado na relação professor-aluno (Cunha, 1995, p. 12).
É na escola, também, que muitos de nós passamos boa parte do tempo e ali construímos nossa personalidade, rodeados de relações socioculturais e realidades diversas. A escola é uma das principais instituições em que é possível construir e efetivar os conceitos de diversidade e diferença. É importante que o ou a discente aprenda a se amar, a amar ao próximo, se respeitar, respeitar a alteridade e toda a comunidade escolar; enfim, deve sentir aconchego, solidariedade, familiaridade, e dessa forma, será capaz de retribuir tais sentimentos.
país-bricolagem, o que aqui se arrola como rol de características, tais como tropicalidade, subdesenvolvimento, dependência, mais à frente se apresenta a própria face nacional encarnada de um país. Pergunte-se então, à Geografia que se ensina que país é o Brasil e se terá uma descrição de externalidades. O adjetivo vira substantivo. A aparência vira essência (Moreira, 2014, p. 131).
Desse modo, é notório que tarefas como ensinar e aprender não são fáceis; entretanto, para quem escolheu tal caminho como docente e para quem está na escola como discente, é necessária a consciência de que devemos lutar, diariamente, por um mundo melhor e melhor para todo mundo, sem exceções. Afinal, para que mais serviria a Educação senão para dar asas aos indivíduos, para condicioná-los à cidadania, às práticas socioculturais e à materialização da sociedade? Somos nós, como agentes sociais, que temos em nossas mãos a oportunidade de mudança; além disso, temos, talvez, o maior instrumento de ação para tal mudança: a Educação.
Considerações finais
Pensar em um ensino de Geografia que preze pela superação de discursos excludentes é pensar em outras perspectivas para o ensino-aprendizagem de crianças e adolescentes, almejando valorizar questões antes silenciadas e possibilitar uma leitura de mundo em seu sentido amplo.
Questões voltadas para a problemática de gêneros e sexualidades fazem parte da nossa realidade e não estão isentas dos conteúdos trabalhados pela Geografia na Educação Básica. Além disso, a sala de aula não pode estar isolada dessa realidade, tornando necessária essa articulação.
Pensar em propostas didático-pedagógicas que insiram as temáticas de gêneros e sexualidades junto aos conteúdos geográficos é primordial para que o exercício de cidadania e a mobilidade social se façam presentes no ensino dessa disciplina, oportunizando novos horizontes em que os abismos sociais possam ser ao menos mitigados, em um processo contínuo de superação.
Referências
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Publicado em 13 de abril de 2021
Como citar este artigo (ABNT)
SOUSA, Victor Pereira de. Geografia da resistência: dissidências, insurgências e educação. Revista Educação Pública, v. 21, nº 13, 13 de abril de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/13/geografia-da-resistencia-dissidencias-insurgencias-e-educacao
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