Cultura e identidades surdas dos alunos surdos atendidos no IFRN - câmpus Natal Central

Morgana Machado Henrique

Graduada em Letras - Português/Libras (UFRN), especialista em Libras (Faculdade Futura)

Este parecer técnico tem por objetivo elucidar a diferenciação entre surdo e deficiente auditivo (DA ou surdo oralizado) ante as perspectivas socioculturais, bem como ante a legislação atual; trataremos também as formas das diferentes identidades surdas e aspectos da cultura do povo surdo (Strobel, 2009, p. 39).

Diferenciação entre surdo e deficiente auditivo

Mediante a recente demanda relacionada a alunos autodeclarados deficientes auditivos no âmbito do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, vimos por meio deste parecer discorrer acerca da diferenciação entre o aluno denominado surdo e o denominado deficiente auditivo, bem como de quais são as formas de acessibilidade aplicada a cada especificidade. Vale salientar que, em fins de legislação compreende-se:

Art. 2° Para os fins deste decreto, considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras.

Parágrafo único. Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de 41 decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz (Brasil, 2005).

Considerando o exposto, podemos compreender que há distinção entre surdo e deficiente auditivo, uma vez que descreve o sujeito surdo não por sua patologia, mas pela sua interação com mundo de modo visual, sua manifestação cultural e uso de Libras. Partindo desse pressuposto, podemos compreender por deficiente auditivo (surdo oralizado) aquele sujeito que, por meio de aparelhos auditivos, implantes ou até mesmo da oralização, não possui experiência com o mundo de modo visual, mas pautado no som, e não utiliza Libras, mas sim a Língua Portuguesa para comunicar-se. Sendo assim, compreende-se o conceito de deficiente auditivo possuindo identidade pautada em uma experiência muito mais sonora que visual, ao contrário do surdo, que possui pouca ou nenhuma experiência sonora, tendo assim identidade surda sinalizante (Strobel, 2008).

Vale salientar que, ao tratarmos de alunos com surdez, é primordial compreender que não estamos lidando com uma pessoa que necessita apenas de acessibilidade linguística, mas versa-se sobre sujeitos distintos que possuem cultura, comunidade e identidade próprias. Compreendendo a existência dessas identidades, precisa-se compreender que a afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais assimetricamente situados na instituição de ensino, a fim de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.

Wrigley (1996) propõe pensar na surdez não como uma questão audiológica, mas epistemológica, como uma privação sensorial, entendida como um mundo e uma vida marcada por uma ausência. Conforme essa concepção, a surdez:

  1. Constitui uma diferença a ser politicamente reconhecida;
  2. É uma experiência visual;
  3. É uma identidade múltipla ou multifacetada;
  4. Está localizada no discurso sobre diferença.

A perspectiva cultural e identitária do sujeito surdo

A fim de esclarecimento e de ajuda para maior entendimento em relação às peculiaridades do trabalho com o sujeito surdo, pretendemos explanar os conceitos de cultura surda, comunidade surda e identidade surda; para tal lançamos mão de diversos estudos realizados na área (Estudos Surdos), sobretudo os das pesquisadoras Ronice Quadros, Galdis Perlin e Karin Strobel.

Cultura surda e comunidade surda

Como podemos claramente observar o descrito no Art. 2º do Decreto nº 5.626/06, a pessoa surda tem uma cultura manifestada principalmente pelo uso da Libras. Percebendo isso, vêm alguns questionamentos: tal manifestação seria diferente da expressada pelo ouvinte? Teriam então os surdos uma cultura própria e diferente das pessoas ouvintes? Segundo a doutora Karin Strobel (2008), sim. Em seus estudos, ela chega a usar a expressão “povo surdo” reforçando a existência da diferenciação dessa produção cultural que se dá de modo visual.

Quando pronunciamos “povo surdo”, estamos nos referindo aos sujeitos surdos que não habitam no mesmo local, mas que estão ligados a uma origem por um código de formação visual, independente do grau de evolução linguística, tais como a língua de sinais, a cultura surda e quaisquer outros laços.

Se uma língua transborda de uma cultura, é um modo de organizar uma realidade de um grupo que discursa a mesma língua como elemento comum, concluímos que a cultura surda e a língua de sinais seriam uma das referências do povo surdo (Strobel, 2009, p. 39).

Ainda sobre a concepção de cultura surda, podemos ver que

a ideia de uma cultura surda funda-se, primeiramente, na afirmação de um modo particular de compreender e expressar a realidade, especificamente proporcionado pela experiência visual e pelo uso de uma língua de modalidade viso-motora (visual-gestual) como configuradora do discurso. Tendo como espaços de privilégios de (re)produção as comunidades surdas, a cultura surda opera como um conjunto de práticas e produções específicas que delimitam um locus de reafirmação cultural, histórica, política e linguística, sustentando e reforçando vínculos e expressões indenitárias entre os sujeitos que a compartilham (Eiji, s/d).

Os estudos surdos (Quadros, 2006; 2008; Quadros; Perlin, 2007; Quadros; Stumpf, 2009) não se pautam na patologia do indivíduo surdo, mas lança sobre ele um olhar socioantropológico, focando assim em suas produções culturais e políticas, bem como em seu modo de interagir com o mundo. O surdo tem por costume a preferência de interagir com seu par, fazendo, portanto, uso de espaços em comum, os quais chamamos de comunidade surda; esses espaços podem ser as associações de surdos, os grêmios desportivos, escolas e instituições de ensino e difusão da língua de sinais, eventos, festas e demais pontos de encontro físicos ou virtuais em que permeiam o aspecto visual e a utilização das línguas de sinais. Participando da comunidade surda, o sujeito vai aprendendo e aprimorando sua cultura, seu modo de ser surdo. São esses estabelecimentos modelo de ser surdo que servem como balizas para que ações de normalização sejam investidas na e pela própria comunidade surda, quando essa estabelece um tipo normal de ser surdo a ser seguido.

Identidade surda

Capazes de produzir uma cultura tão particular, denominada cultura surda, e oriundos de uma comunidade composta majoritariamente de surdos, esses sujeitos possuem identificação com sua característica fisiológica de modo tão distinto que lhes vale o nome de identidade surda. Vale salientar que a perspectiva que lançamos aqui sobre o surdo é socioantropológica, não levando em consideração uma patologia; portanto, falar de identidade surda é olhar além da surdez e do silêncio.

Tal qual ao tratar da cultura produzida pelo sujeito surdo e a comunidade surda na qual ele se insere, tratar da identificação mencionada é olhar para esse sujeito observando os modos como ele percebe e interage com o mundo e os meios nos quais ele está inserido. Como já dito, lançamos mão aqui dos estudos produzidos principalmente por Perlin e Strobel. Nos estudos de Karin Strobel conseguimos compreender que os sujeitos surdos partilham um modo único e comum de perceber e interagir com o mundo em que vivem; independentemente de estarem no mesmo espaço geográfico, são capazes de produzir sua língua, cultura, literatura, artes, política, vida social e esportiva.

Ao debruçar sobre os estudos realizados por Gladis Perlin, vimos que ela descreve sete identidades surdas. Para ela faz-se necessária a compreensão de que os surdos passam por fases e adaptações desde a infância na aquisição da linguagem até sua fluência e, portanto, real inserção e participação na comunidade surda.

Fazendo um comparativo entre os estudos de Perlin e o perfil do alunado com deficiência auditiva que tem ingressado no IFRN nos últimos anos, podemos concluir que estes têm uma identidade surda já formada, encaixando-se no grupo da identidade surda política, grupo que, além de fluente em Libras, atua assiduamente junto à comunidade surda, possuindo perfil militante pelas causas e direitos dos surdos com foco na melhoria e garantia da acessibilidade em línguas de sinais, sobretudo na educação (Perlin, 2005, p. 60).

Vale salientar que há alguns alunos com deficiência auditiva ingressantes no instituto que não são contemplados nestes estudos apresentados por não serem considerados surdos pela comunidade surda e até mesmo pela legislação que dá essa nomenclatura apenas àqueles individuos que fazem uso das línguas de sinais. Embora venham nos últimos anos reivindicando para si, pelas redes sociais e demais meio de comunicação a nomenclatura de surdos oralizados, dividindo, assim, os surdos em dois grupos: surdos oralizados e surdos sinalizantes. Todavia, vale destacar que ainda não há estudos e legislação que amparem direitos a esse grupo autodeclarado surdo oralizado, mas sim a surdos e deficientes auditivos; sendo assim, seguindo a legislação vigente, o atendimento ao aluno não usuário de Libras deve se pautar na pespectiva do atendimento de uma pessoa com deficiência auditiva (Strobel, 2009, p. 39).

Partindo dessa visão e do alunado ingressante no IFRN, faz-se necessária a adequação da instituição a fim de contemplar os Parâmetros Curriculares Nacionais, considerando a diversidade que se identifica atualmente no IFRN entre os educandos, viabilizando indiscriminadamente o acesso à aprendizagem, ao conhecimento e ao conjunto de experiências curriculares, disponibilizado no ambiente de ensino, a despeito de necessidades diferenciadas que possam apresentar.

Considerações finais

A construção deste parecer se deu com base no conhecimento técnico, teórico e prático dos tradutores intérpretes de linguagem e sinais (TILS) em atuação no IFRN – Câmpus Natal Central, com o propósito de orientar acerca de possíveis dúvidas e trazer maior compreensão sobre os temas tratados. Nesse sentido, esperamos que em situações ligadas à inclusão de alunos com deficiência auditiva e/ou surdos, bem como da atuação do servidor tradutor intérprete de linguagem e sinais, possamos ter um norte pautado na legislação vigente, a fim de assegurar a qualidade do atendimento aos alunos em questão e da atuação dos profissionais TILS.

Referências

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______. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5.626.htm. Acesso em: 30 jan. 2018.

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STROBEL, Kain. As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008.

Publicado em 20 de abril de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

MACHADO, M. M. Cultura e identidades surdas dos alunos surdos atendidos no IFRN - câmpus Natal Central. Revista Educação Pública, v. 21, nº 14, 20 de abril de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/14/cultura-e-identidades-surdas-dos-alunos-surdos-atendidos-no-ifrn-campus-natal-central

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