A infância no Ensino Fundamental: desafios em tempos de pandemia e ensino remoto

Valdeniza Maria Carvalho Silva

Graduada em Pedagogia (UFPI), professora da rede pública municipal de Luiz Correia/PI

Fabricia Pereira Teles

Professora doutora do curso de Pedagogia (UEPI - câmpus de Parnaíba/PI)

Segundo relatório da Fundação Abrinq (2019) que discute os desafios do Brasil na efetivação do que propõe o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA (Brasil, 1990), em seus últimos 27 anos de existência, quase metade das crianças e adolescentes (47,8%) do país ainda vivem em situações de pobreza, mesmo considerando as melhorias no campo da saúde, alimentação, moradia, cultura, lazer e educação.

Especificamente sobre a educação, o relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) Pobreza na infância e na adolescência, de 2018, aponta que 2,8 milhões de crianças e adolescentes ainda estão fora da escola e aproximadamente 20,3% das crianças e adolescentes do Brasil entre 4 e 17 anos têm seus direitos à educação violados.

Nos últimos meses, ocasionado pela pandemia do coronavírus, dezenas de países vivenciaram ou ainda vivenciam um período difícil para educação escolar – entre eles, o Brasil. Coronavírus é uma família de vírus que ataca principalmente o sistema respiratório, causador da covid-19, que foi identificada inicialmente em Wuhan, na China. Pelos casos registrados da doença, o vírus dissemina-se e é transmitido de pessoa a pessoa, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.

Considerando a conjuntura atual, o Unicef efetuou algumas pesquisas; uma delas, intitulada Impactos primários e secundários da covid-19 em crianças e adolescentes, realizada em agosto de 2020, apontou que, embora crianças e adolescentes não sejam os mais afetados diretamente pela Covid-19, são as grandes vítimas ocultas da pandemia. Suas famílias tiveram as maiores reduções de renda (63%), a qualidade da alimentação que recebem piorou e muitos de seus direitos estão em risco.

A pesquisa também aponta que 6 milhões de residentes com crianças e adolescentes não receberam tarefas ou qualquer atividade da escola nos meses de julho e agosto de 2020. Os maiores índices encontram-se nas regiões Norte (19%), Nordeste (16%) e Centro-Oeste (16%). Embora 91% digam que houve continuidade na realização de atividades escolares durante a pandemia, 9% (4 milhões de residentes com crianças e adolescentes) não puderam dar continuidade.

Os problemas que concernem à educação já eram bem acentuados no Brasil; quando se depara com o atual contexto imposto pela pandemia do novo coronavírus no país, tudo isso se torna bem mais grave. A educação institucionalizada passou a acontecer dentro dos lares, a família tornou-se a principal mediadora do processo de ensino-aprendizagem e a criança teve que se adaptar a uma realidade completamente atípica.

Além desses dados, outro aspecto relevante a ser problematizado refere-se à concepção adultocêntrica validada por nós, às vezes inconscientemente, quando associamos a palavra infância a vida e à educação de crianças bem pequenas ou pequenas – termos empregados de acordo com as denominações utilizadas na BNCC (Brasil, 2017). Em geral, ao pensarmos em infância logo vêm à mente as escolas de Educação Infantil, como se fossem os únicos espaços educacionais onde crianças merecem viver a infância. Talvez, por essa razão, a infância nos demais anos do Ensino Fundamental possa vir a ser desprezada ou simplesmente, em muitos casos, negada em meio às demandas do processo de ensino-aprendizagem.

Diante da conjuntura, este artigo discute o direito à infância no cenário de três escolas do Piauí onde atuam as docentes que cederam seus planejamentos. O tema surgiu das inquietações e experiências docente das autoras no que diz respeito aos impasses na garantia do direito à infância, para além das concepções limitadas às experiências na Educação Infantil e forçadamente acentuadas durante a pandemia da covid-19.

O foco da pesquisa sobre o direito à infância no âmbito da educação partiu da seguinte questão: qual a realidade do direito à infância no contexto de escolas públicas de Educação Básica nos anos iniciais do Ensino Fundamental?

Partindo dessa pergunta, traçou-se como objetivo principal investigar a infância nos anos iniciais do Ensino Fundamental, especialmente em tempos de pandemia, com base no trabalho docente de três professoras que atuam nessa etapa do ensino em escolas municipais de diversas cidades no Estado do Piauí. Para abordar o assunto, optou-se por uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico e documental.

Para tanto, fez-se um levantamento histórico do significado de infância e dos principais fundamentos legais que tratam o assunto, focalizando o contexto da educação; além disso, procurou identificar nas práticas de professores de escolas públicas piauienses, ações pedagógicas do segundo quadrimestre de 2020 reveladoras da realidade da infância nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Para melhor compreensão dos resultados da pesquisa, este texto foi organizado em seções, excetuando a introdução.

Na seção“Qual o lugar da infância na escola?”, a discussão gira em torno de um aspecto relevante sobre a temática focal: a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental e o direito à continuidade da infância. A seção “Direito à infância: perspectiva educacional em tempos de pandemia e ensino remoto”apresenta aspectos relevantes que modificaram a dinâmica escolar sem qualquer aviso prévio, mexendo com as concepções tradicionais de ensino. Na seção“Análise e discussãodos resultados”, apresentamos os dados sobre a realidade da infância em escolas públicas com base nos planejamentos elaborados por três professoras no segundo quadrimestre de 2020. Na última seção, as considerações finais sobre o tema proposto.

Qual o lugar da infância na escola?

Ao adentrar a escola, a criança se depara com um “universo novo”, uma série de possibilidades e uma realidade de convivência que até então eram praticamente desconhecidas por ela, pois sua única forma de convívio social estava no ambiente familiar. Sua educação, que antes era totalmente oriunda da família, passa a ser também responsabilidade da instituição escolar, e a partir daí há uma grande preocupação com seu processo de adaptação e permanência na escola.

As crianças estão sendo inseridas nas instituições educacionais cada vez mais cedo, a princípio com a obrigatoriedade advinda das Leis nº 11.114/05 e nº 11.274/06, que alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96), a primeira ampliando a obrigatoriedade da inclusão da criança na escola a partir dos seis anos de idade, mas mantendo o Ensino Fundamental em oito anos; a segunda ampliando o Ensino Fundamental para nove anos. Com a Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009, a obrigatoriedade das matrículas passou a ser a partir dos quatro anos de idade, ou seja, o direito à educação obrigatória na Educação Infantil.

A faixa etária que compreende o último ano da Educação Infantil (5 anos de idade) é muito próxima daquela que marca o primeiro ano do Ensino Fundamental (6 anos de idade); então por que pensar a infância nessas duas modalidades de formas tão distantes? Na verdade, considerando a legislação, veremos que, de acordo com a Lei nº 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), é considerada criança a pessoa com até 12 anos de idade incompletos. Por esse ângulo, podemos dizer que a criança vivencia a infância no decorrer da Educação Infantil e em grande parte dos anos do Ensino Fundamental.

A integração entre Educação Infantil e Ensino Fundamental é um princípio que deveria ser respeitado e repensado no decorrer do processo de ensino-aprendizagem, como forma de garantir o direito da criança de viver a continuidade de sua infância.

A Base Nacional Comum Curricular – BNCC (Brasil, 2017), na etapa que corresponde à Educação Infantil, estabelece seis direitos de aprendizagem: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se.

Nesses direitos de aprendizagem percebemos a indissociabilidade entre o ensino e uma concepção de criança apoiada na condição histórico-social de infância, visto que em todos os direitos estão contempladas as ideias que respeitam e incentivam as descobertas, as especificidades e as singularidades das crianças.

Sobre o Ensino Fundamental – anos iniciais, a BNCC (Brasil, 2017, p. 57, grifo do documento) orienta:

ao valorizar as situações lúdicas de aprendizagem, aponta para a necessária articulação com as experiências vivenciadas na Educação infantil. Tal articulação precisa prever tanto a progressiva sistematização dessas experiências quanto o desenvolvimento, pelos alunos, de novas formas de relação com o mundo, novas possibilidades de ler e formular hipóteses sobre os fenômenos, de testá-las, de refutá-las, de elaborar conclusões, em uma atitude ativa na construção de conhecimentos.

Havendo a articulação entre Educação Infantil e os anos iniciais do Ensino Fundamental, talvez a criança não venha sofrer tanto os impactos causados por esse processo de transição. São bem comuns e perceptíveis as alterações na transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental que desrespeitam o direito da continuidade das experiências infantis pela criança, como:

  • a sutil e simples mudança de nomenclatura que revela mudança na concepção dos papéis dos infantes pela ótica dos professores e pais. Se analisarmos com um olhar mais perspicaz o cotidiano das escolas de Educação Infantil e compararmos com a rotina do Ensino Fundamental, facilmente percebemos que durante toda a Educação Infantil o educando é chamado de criança, avançando para o Ensino Fundamental passa a ser denominado de aluno;
  • a rotina escolar muda completamente, o recreio, que antes era acompanhado na Educação Infantil, passa a acontecer, em grande parte das escolas, de forma mais “livre” no Ensino Fundamental. Sem dúvidas, no Ensino Fundamental a criança recebe mais autonomia, como também são cobradas dela mais responsabilidades; faz parte desse processo. Porém o que se evidencia são os prejuízos causados quando essa criança não se sente parte desse processo em construção, ou seja, tudo vai acontecendo abruptamente.
  • se pararmos para refletir sobre a realidade de algumas escolas, além das situações já citadas, ainda temos a questão das avaliações, cobradas com as mesmas exigências dos anos finais do Ensino Fundamental. Na Educação Infantil, a criança nem sabia quando estava sendo avaliada pelo professor(a), mas repentinamente tem que se preparar para as provas, tem que assimilar uma série de conteúdos sistematizados. Em muitos casos, a criança mostra-se angustiada por estar sendo pressionada pela família e pela escola a tirar boas notas para passar de ano e não reprovar.

É importante a criança acompanhar com desenvoltura todas as etapas do processo de ensino, porém, por a família ou a escola exigir demais das crianças, ocorre muitas vezes de a família até colocá-la em aulas extras, deixando-a super atarefada de afazeres escolares, o que é preocupante ao considerarmos que a criança precisa aproveitar o tempo relativo à sua infância. Essa perspectiva leva a refletir sobre os prejuízos ocasionados por uma infância negada no âmbito das relações educativas e o quanto a omissão da infância nas escolas também pode refletir nas vivências fora do ambiente escolar.

A criança precisa de tempo para ser criança, brincar, imaginar, criar, se expressar das formas cabíveis à infância. As crianças, como seres histórico-sociais, também têm percepção de mundo, e por isso precisam ser ouvidas e expressar seus pensamentos e opiniões. Serem ouvidas também enriquece sua infância, visto que “as interpretações das culturas infantis, em síntese, não podem ser realizadas no vazio social, necessitam se sustentar na análise das condições sociais em que as crianças vivem, interagem e dão sentido ao que fazem” (Pinto; Sarmento, 1997, p. 24).

O problema não é a dinâmica de funcionamento do Ensino Fundamental, mas a forma como a criança tem que se enquadrar nela abruptamente. São concedidas a ela uma súbita “autonomia” e uma responsabilidade que não deixam brecha para outras vivências. O que aconteceu com as rodas de conversa, com o momento da contação de história, com as brincadeiras, com a ludicidade no Ensino Fundamental?

A infância como construção histórico-social precisa continuar sendo cultivada e preservada naquelas crianças que adentraram as séries iniciais do Ensino Fundamental, e ela não deve ser diminuída frente às demandas e ao ensino dos conhecimentos ou conteúdos sistematizados. É importante salientar a necessidade desses conhecimentos e conteúdos no processo de ensino-aprendizagem; no entanto, para que eles sejam ensinados não precisa, necessariamente, que as vivencias da infância fiquem de fora, até porque na Educação Infantil também se aprendem conhecimentos, denominados então “campos de experiência”. Conforme são definidos na BNCC (Brasil, 2017, p. 40), “os campos de experiência constituem um arranjo curricular que acolhe as situações e experiências concretas da vida cotidiana das crianças e seus saberes, entrelaçando-os aos conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural”.

Acreditamos que é possível o conhecimento ser construído respeitando as fases de desenvolvimento da criança e entrelaçado às necessidades da infância. É imperativo que a infância tenha espaço durante todo o processo de ensino-aprendizagem concomitante ao desenvolvimento da criança.

Contemplar as infâncias durante todas as etapas do processo de ensino-aprendizagem por onde passa a criança já é bem desafiador; nos últimos meses, em decorrência da pandemia ocasionada pelo coronavírus, esse desafio tornou-se ainda maior. Agora a educação institucionalizada não está estreitamente ligada somente à instituição escolar, as práticas docentes adentraram as nossas casas, por meio do ensino remoto, aquele ensino que procura manter a rotina da sala de aula em espaços fora do ambiente escolar, mediante recursos midiáticos que promovem a interação entre os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Pais e adultos residentes com crianças passaram a atuar como professores(as) de filhos/menores; todos tiveram que se adequar a essa nova realidade; desse modo se ampliou o desafio de contemplar a infância durante o processo educacional.

Direito à infância: perspectiva educacional em tempos de pandemia e ensino remoto

Covid-19 é a denominação dada ao novo coronavírus identificado em Wuhan, na China, e que se alastrou pelos demais países, em nível mundial. De acordo com o Ministério da Saúde, é uma doença causada pelo coronavírus denominado SARS-Cov-2, que apresenta um espectro clínico variando de infecções assintomáticas a quadros graves, podendo ser transmitido de pessoa a pessoa, por se tratar de um vírus; seu grau de transmissão é muito alto (Brasil, 2019).

Esse vírus foi capaz de mudar completamente a rotina das pessoas, provocou pânico em todas as camadas da sociedade; desafiou a economia, a saúde e a educação a traçar estratégias de sobrevivência e superação a cada dia. A educação no Piauí repentinamente teve que fechar as portas no dia 17 de março de 2020, deixando naquele momento milhares de estudantes sem aula. Uma situação que se estendeu à medida que foram aumentando os números de transmissão do covid-19 no estado.

Com a pandemia se alastrando mundo afora e ascendendo aqui no Brasil, os governos decidiram retomar as aulas de forma não presencial, mantendo as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que criou uma série de orientações para tentar impedir o avanço da pandemia, sendo a principal delas o afastamento social para evitar aglomerações, razão pela qual as escolas foram fechadas. Assim, a continuidade das aulas ocorreu com o ensino remoto, adotado em quase todos os estados brasileiros, com base em normas e decretos.

No Estado do Piauí, sucessões de decretos embasaram a suspensão das aulas, tanto na rede pública como na rede privada. O Decreto nº 19.219, de 21 de setembro de 2020, manteve a suspensão das aulas presenciais das escolas de Educação Infantil e Ensino Fundamental, dentre outras medidas.

Uma abordagem metodológica que combina atividades presenciais em sala com o uso de tecnologias digitais de informação e comunicação, permitindo o ensino por meio de adaptações a cada realidade.

Seguindo as normativas e diretrizes do Conselho Nacional de Educação (Brasil, 1995), as escolas passaram a ofertar o ensino híbrido como forma de dar seguimento ao processo de ensino-aprendizagem, promovendo o acesso aos conteúdos sistematizados tanto para os alunos via on-line como para aqueles que não dispuserem de um servidor de internet, os off-line. A intenção é que todos tenham acesso a essas aulas e assim se cumpram os parâmetros mínimos de carga horária e dias letivos para cada nível e etapa da educação previstos nos Arts. 24 e 31 da Lei nº 9.394/96 (Brasil, 1996). Contudo, o conjunto desses dispositivos reconheceu o ensino remoto como possibilidade para a continuidade do processo educacional na Educação Básica, conforme o Parecer CNE/CP nº 5, de 28 de abril de 2020 (Brasil, 2020), que reorganizou o calendário escolar.

As aulas remotas deram prosseguimento com a intenção de atingir todos ou se não a maioria dos discentes. Entretanto, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), mais de oito milhões de alunos não participaram de atividades escolares em julho em meio à pandemia. A pesquisa divulgada no dia 29 de abril de 2020 pelo IBGE aponta que o Piauí é o estado onde menos se acessa a internet no Brasil. De acordo com os dados, somente 61,4% dos lares piauienses utilizam internet, indicando que a grande maioria dos piauienses (99,3%) que possuem rede no Estado usa o celular para se conectar.

As aulas híbridas talvez tenham surgido como uma tentativa de preencher as lacunas deixadas quando as escolas fecharam as portas subitamente diante do isolamento social; no entanto, talvez não tenha sido o suficiente para atender às expectativas quanto ao processo de ensino-aprendizagem. Muitas vezes essas aulas são inviabilizadas pela falta de acesso de professores e discentes à internet, limitações quanto ao conhecimento em lidar com os equipamentos e ferramentas tecnológicas, dificuldade e falta de condições econômicas para manter o acesso on-line, perda familiar em razão da doença, dentre outras questões.

Percurso da pesquisa

Considerando o contexto de elaboração da pesquisa diante da pandemia, o trabalho seguiu a trajetória da pesquisa qualitativa embasada na análise bibliográfica e documental. Assim, procuramos analisar leis que tratam dos direitos à infância e documentos que procuram assegurar esse direito, além de autores que discutem a temática.

Na tentativa de chegar mais perto da realidade das vivências da infância no Ensino Fundamental, outros documentos foram avaliados: os planejamentos de três professoras atuantes na escola pública, partindo do pressuposto de que os planejamentos são documentos que direcionam o processo de ensino. Por se tratar de um documento que é de fácil acesso à comunidade escolar, as professoras cederam os planejamentos via e-mail elaborados durante o segundo quadrimestre de 2020. Ressaltamos que elas, embora trabalhem em cidades distintas, comunicam-se entre si e já desenvolveram alguns trabalhos juntas, o que justifica a escolha específica das cidades de Piripiri, Parnaíba e Luís Correia, que são os municípios onde essas professoras atuam, o que nos fornece um panorama mais amplo sobre qual lugar a infância vem ocupando no processo de ensino em algumas escolas do Estado do Piauí nesse tempo de pandemia e ensino remoto.

Vale ressaltar, ainda, que, embora o contexto pesquisado pareça amplo, todas essas escolas estão sofrendo os desafios oriundos de um contexto atípico, tendo por base as mesmas orientações e recomendações do Ministério da Saúde, do Ministério da Educação e dos decretos do Governo do Estado, o que as coloca em uma realidade bem semelhante, apesar de, certamente, cada uma dessas escolas traçar suas próprias estratégias para vencer os obstáculos causados pelo coronavírus.

Análise e discussão dos resultados

No decorrer da história, a educação escolar deixou de ser um privilégio de poucos e passou a ser um direito de todos, por lei. Na atualidade, garantir esse direito tornou-se ainda mais desafiador, pois sem aviso prévio a pandemia da covid-19 nos deixou de mãos acirradas, de modo que quanto mais se sabia sobre a patologia mais se percebia a necessidade de manter escolas fechadas, garantindo o afastamento social e a preservação da saúde de todos.

Diante do problema, uma série de normativas e decretos (alguns já citados) foram emergindo da necessidade de prosseguir com o ano letivo, fomentando estratégias de continuidade do processo de ensino-aprendizagem. Desse modo, se chegou às aulas remotas como alternativa mais viável para sanar a ausência das escolas naquele momento – isso aconteceu em muitas cidades do país, contemplando todos os níveis e modalidades de ensino.

Determinados municípios do Nordeste adotaram recursos midiáticos, como a internet, a televisão e o rádio, de modo que cada escola da rede pública procurou o recurso midiático e tecnológico que melhor se adequasse à sua realidade; como exemplo temos Mulungu, no interior do Ceará, que viu na rádio comunitária uma importante aliada na didática para as aulas remotas. Oliveira (2020) percebe o rádio como boa alternativa pedagógica, já que é um recurso muito acessível e que permite a comunicação e a interação com o ouvinte.

As escolas da rede pública municipal das cidades de Piripiri, Parnaíba e Luís Correia aderiram ao ensino remoto, organizado em aulas on-line via WhatsAppe entrega de tarefas elaboradas e impressas a serem distribuídas nas escolas a familiares dos estudantes, como foi observado em pelo menos dois dos planejamentos analisados. As ações foram planejadas e seguiam as determinações das secretarias de cada município, que, por sua vez, seguiram os decretos do Governo do Estado e as orientações do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Educação.

Assim, na tentativa de perceber que lugar a infância vem ocupando nas práticas pedagógicas nesse contexto de pandemia, adotamos como análise documental os planejamentos do segundo quadrimestre de 2020 elaborado por três professoras que ministram aula nos anos iniciais do Ensino Fundamental em escolas públicas da rede municipal situadas em cidades distintas no Estado do Piauí. Para preservar suas identidades e seu local de trabalho, serão identificadas como Professora 1, Professora 2 e Professora 3.

Ao analisar esses planejamentos, percebemos de imediato que em 2 deles as aulas das Professoras 1 e 2 são preparadas para dois públicos: a) para aqueles que têm acesso à internet; e b) para os alunos off-line – aqueles que não dispõem da rede de internet. Para os alunos com acesso à internet, foi utilizado o aplicativo WhatsApp para fazer a mediação entre o professor e o aluno. Para os off-line, o processo pedagógico era feito somente por meio da distribuição das atividades nas escolas. No planejamento da Professora 3, não foi possível identificar nenhuma dessas ações metodológicas, embora seu planejamento corresponda a esse mesmo período de pandemia.

Identificamos em um desses planejamentos que, além das atividades impressas, também era distribuído um roteiro pedagógico elaborado pela professora, direcionando as atividades mediante as disciplinas trabalhadas diariamente, para que o aluno pudesse acompanhar o mesmo conteúdo trabalhado via WhatsApp, tudo embasado exclusivamente no livro didático, como apresentou o planejamento ao descrever as ações correspondentes à metodologia adotada para as aulas híbridas.

Podemos perceber timidamente nos comandos de um dos planejamentos algo que contempla a vivência da infância, quando é descrito “sugestões de dinâmicas e jogos”, sinalizando uma ludicidade no processo de ensino-aprendizagem no planejamento ilustrado na Figura 1 referente ao segundo bimestre de 2020, para uma turma do 3º ano.

Figura 1: Planejamento de junho de 2020

Fonte: Documentos fornecidos pela Professora 1.

No caso da Professora 2, a dinâmica adotada para as aulas remotas foi bem semelhante, no que concerne ao uso do aplicativo WhatsAppe das tarefas elaboradas, impressas e distribuídas aos alunos, de modo que todos tivessem acesso às mesmas atividades, mesmo aqueles que dispusessem de acesso à internet, para visualizar os vídeos explicativos, que eram produzidos pela própria professora (informação contida no planejamento). Contudo, não fica claro na descrição qual a dinâmica de elaboração desses vídeos, isto é, se os vídeos apresentavam historias, brincadeiras, jogos, ou algo similar, como podemos ver na Figura 2, correspondente a um trecho desse planejamento referente ao 2º ano.

Figura 2: Planejamento de julho de 2020

Fonte: Documentos fornecidos pela Professora 2.

No planejamento da Professora 3, não foi possível identificar algo que nos remetesse à metodologia adotada para as aulas remotas, assim como não está explícito na metodologia algo que revele atividades que promovam a vivência da infância durante o processo de ensino-aprendizagem, conforme podemos perceber na Figura 3, correspondente ao planejamento do 1º ano do Ensino Fundamental.

Figura 3: Planejamento de maio de 2020

Fonte:  Documentos fornecidos pela Professora 3.

Aparentemente, com base nos planejamentos, podemos dizer que o modelo de aprendizagem apresentado é o repasse do conteúdo sistematizado, o que nos leva a refletir até que ponto essa aprendizagem (se houver) está sendo significativa para a criança, principalmente no atual contexto de pandemia. Nesse sentido, é muito importante procurar saber como as crianças estão percebendo e compreendendo essa situação de pandemia, saber de suas angústias, o que elas pensam sobre o coronavírus (Arantes; Toquetão, 2020).

Seria interessante aproveitar esse momento em que a criança está mais próxima do convívio familiar para criar possibilidades de experiências de aprendizagem que instiguem tanto a criança como a família a reconhecer e valorizar os direitos da infância, pois

as experiências das crianças em seu contexto familiar, social e cultural, suas memórias, seu pertencimento a um grupo e sua interação com as mais diversas tecnologias de informação e comunicação são fontes que estimulam sua curiosidade e a formulação de perguntas (BNCC, 2017, p. 58).

De todo modo, esse cenário da pandemia levou docentes a buscar meios didático-pedagógicos e até mesmos modelos prontos em redes sociais para dar conta de uma realidade educacional nunca vivida anteriormente. Essas questões foram anunciadas por Arantes e Toquetão (2020, p. 234):

A mudança repentina da rotina, o afastamento dos avós; a dificuldade de acesso ao mundo digital; o adoecimento ou mesmo a perda de um parente querido; a necessidade de algumas famílias trabalharem em casa ou o desemprego geraram uma busca intensa por receitas, roteiros e manuais de atividades adequadas para as crianças nas redes sociais.

Infelizmente, não existe receita pronta nem manual de instruções que esclareçam a melhor forma de conduzir o processo de ensino-aprendizagem em tempos de pandemia, até porque estamos vivenciando um cenário nunca experimentado por nossa geração. Se na sala de aula presencial temos que lidar com diferentes realidades diariamente, com o ensino remoto o desafio se multiplica, pois, além das distintas realidades dos discentes e famílias dos discentes, também os ambientes de ensino-aprendizagem são completamente variados.

De modo geral, os três planejamentos apresentaram as habilidades e os objetos de conhecimento conforme a BNCC propõe; entretanto, as metodologias e estratégias de ensino não foram bem detalhadas, porém na parte dos recursos percebemos as tecnologias da informação e comunicação a serem utilizadas para viabilizar a proposta do ensino remoto. Contudo, não foi possível identificar com clareza aspectos como tempo/duração de cada ação didática proposta, a dimensão lúdica e divertida do brincar, dentre outras questões que nos levassem a constatar se a infância estava sendo respeitada nas orientações das aulas.

No entanto, podemos apontar indícios da negação desse direito sinalizados nos planos das três professoras:

  • Grande quantidade de conteúdo por aula a ser aprendido pela criança, dando a entender que há preocupação em transferir conteúdos e não em promover aprendizagens;
  • A tentativa de manter a mesma rotina da escola, uma vez que a criança tem que se adaptar a essas aulas e produzir aprendizagem;
  • Excesso de exposição das crianças às telas dos aparelhos eletrônicos;
  • A quantidade de tarefas impressas que as crianças precisam fazer diariamente, muitas vezes sem ter quem as auxilie em casa. Sobre este indício, vale frisar que quando a criança está com muitos afazeres escolares conteudistas, pouco tempo terá para vivenciar experiências da infância, principalmente nesse momento, quando seus espaços de lazer se tornam restritos ao lar em decorrência do isolamento social.

Sem dúvidas, em tempos de pandemia o ambiente virtual é o que temos de mais próximo da relação professor-aluno; portanto, as tecnologias digitais de comunicação e informação facilitam essa comunicação e podem atuar como aliadas. Embora seja muito interessante o uso das redes sociais como ferramenta pedagógica, nos anos iniciais do Ensino Fundamental o trabalho por essa via talvez não seja o suficiente, mesmo com equipamentos tecnológicos, aplicativos e redes sociais a que muitas crianças têm acesso (em contrapartida àquelas que não têm acesso nem mesmo a telefone), pois nessa etapa o processo de ensino-aprendizagem exige uma experimentação das experiências e vivências.

Com base no exposto, constatamos, conforme os planejamentos, que, apesar dos esforços da comunidade escolar – professores, alunos e família –, as ações realizadas durante o ensino remoto nessa etapa da Educação Básica podem não ser suficientes para garantir o respeito às diferentes infâncias das crianças nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Considerações finais

Este artigo teve o objetivo investigar como estão acontecendo as vivências da infância nos anos iniciais do Ensino Fundamental, especialmente em tempos de pandemia, tomando por base o trabalho docente de três professoras que atuam nessa etapa do ensino em escolas municipais de cidades distintas no Estado piauiense. Para atingir esse objetivo, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental.

Ao analisar os planejamentos, observamos que todos procuram contemplar as habilidades e os objetos do conhecimento conforme a BNCC; no entanto, a metodologia deles não descreve situações no processo de ensino-aprendizagem vinculadas à valorização das vivências da infância, especificamente.

Na materialidade dos dados não foram encontradas situações explícitas em que os direitos à infância aparecem contemplados nem relacionados à crise sanitária que vivemos, ignorando qualquer manifestação das crianças sobre o tema da pandemia.

Entendendo que quando se omite um direito o estamos violando, podemos concluir que, embora não tenha sido a intenção da escola negar os direitos à infância, a partir do momento em que a dinâmica escolar se apresenta direcionada somente ao repasse dos conteúdos sistematizados, sem considerar os ambientes de aprendizagem das crianças e suas especificidades e necessidades, imperando o adultocentrismo e o conteudismo tradicional, a escola pode estar contribuindo para a negação desses direitos inconscientemente.

Reconhecendo o grande avanço em relação à criança e o sentimento da infância, que ela historicamente sofreu, cabe destacar as transformações socioculturais em torno dela. Ganha corpo a concepção da criança como alguém não só frágil, mas também sujeito de direitos, com especificidades próprias da infância, que merece ser observada com um olhar mais perspicaz.

É importante frisar que o contexto atípico vivenciado com a pandemia da covid-19 nos levou a, repentinamente, viver uma experiência nova que exigiu mudanças consideráveis de comportamento. Isso não foi diferente no contexto educacional, que precisou fomentar estratégias que pudessem dar continuidade à educação escolar, mas sem expor os estudantes ao risco do novo coronavírus, reorganizando o sistema de ensino em aulas remotas, o que gerou a necessidade de buscar novas ferramentas pedagógicas e novos conhecimentos didáticos.

Focalizando a situação do ensino remoto nas cidades de Piripiri, Parnaíba e Luís Correia, com base nos planejamentos de professoras desses municípios, podemos concluir que o contexto da pandemia trouxe obstáculos que talvez tenham dificultado ainda mais a valorização da infância no Ensino Fundamental durante o processo de ensino-aprendizagem. Mesmo diante dessas evidências, é preciso buscar entender melhor se o fenômeno persistirá pós-pandemia, o que sinaliza a necessidade da continuação e avanço da pesquisa nesse sentido. A infância não é só uma passagem intermediária para se chegar à vida adulta; ela é uma fase da vida que deve ser vivida da melhor forma possível, e é responsabilidade dos adultos proporcionar isso a todas as crianças.

Referências

ARANTES, P. B.; TOQUETÃO, S. C. Multiletramentos na infância: como ficam as crianças no isolamento provocado pela pandemia da covid-19. In: LIBERALI, F. C.; FUGA, V. P.; DIEGUES, U. C.; CARVALHO, M. P. (Orgs.). Educação em tempos de pandemia: brincando com um mundo possível. Campinas: Pontes, 2020. p. 229-238.

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Publicado em 18 de maio de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

SILVA, Valdeniza Maria Carvalho; TELES, Fabricia Pereira. A infância no Ensino Fundamental: desafios em tempos de pandemia e ensino remoto. Revista Educação Pública, v. 21, nº 18, 18 de maio de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/18/a-infancia-no-ensino-fundamental-desafios-em-tempos-de-pandemia-e-ensino-remoto

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