Reflexões sobre a docência em Educação Infantil e as audiovisualidades no contexto da pandemia da covid-19

Bruno Costa Lima Rossato

Doutorando em Educação (ProPEd/UERJ), professor de Educação Infantil da rede municipal do Rio de Janeiro, mediador a distância do Consórcio Cederj

Cristiane Ferreira Cunha Amancio

Mestranda em Educação (ProPEd/UERJ), professora da rede municipal do Rio de Janeiro

Este ensaio, que é desdobramento, continuidade e devir do nosso itinerário de formação e pesquisa, visa pensar a docência na Educação Infantil - no contexto de uma creche municipal localizada no município do Rio de Janeiro -e seus modos de existência, na perspectiva dos atravessamentos que as audiovisualidades operam na produção de si e do outro, em um mundo no qual uma pandemia, num aspecto avassalador, potencializou, de certo modo, um registro cada vez mais imagético e em rede nos gestos (WULF, 2013) da/com a docência.

Optamos pelo uso das palavras, professoras e gestoras, no feminino. Tal decisão se dá pelo fato de o magistério ser composto, em sua maioria, por mulheres, e, para borrar as fronteiras de gênero impostos na dinâmica das relações sociais.

Afinal, o que é ser professora? O que é exercer a docência? Que caminhos são estabelecidos, pelas professoras de Educação Infantil, enquanto sujeitos docentes? Que situações ou experiências constituem as professoras em meio a múltiplos discursos, práticas e contingências cotidianas que vão do nosso corpo aos nossos gestos e às nossas formas de perceber, significar, expressar e performar o mundo? Durante décadas, percebemos na maioria dos veículos audiovisuais um gesto-docente que parecia ser pertinente estar em visibilidade. Uma predominância de mulheres de raça branca, traços esguios, cabelos lisos, pessoas com uma postura delicada, um jeito meigo de falar, entre outras características de que fomentam uma possível docilização desse corpo (Foucault, 2009) na/com a docência. Nesse conjugado de práticas, uma professora deve compor, os seus gestos-docente, com um conjunto de comportamentos a respeito das expectativas sociais, no que tange a “ser docente em Educação Infantil”. Pensamos que este saber fez/faz parte de uma produção de conhecimento hegemônico, sobre práticas docentes, a respeito de um imaginário social do que é ser professora de Educação Infantil.

Na abrangência dessas situações vivenciamos uma pandemia, com isso, professoras de Educação Infantil são desafiadas a performar uma atuação carregada de aprendizagens: propor – conforme as orientações do Conselho Nacional de Educação – o fortalecimento de vínculos e não antecipação de conteúdos para as crianças (Brasil, 2020). Nesse contexto, muitas utilizam – convocadas, convidadas ou, às vezes, obrigadas – o audiovisual como dispositivo de prática docente, e, diante desse panorama, percebe-se algumas pistas sobre como as professoras tomam para si o protagonismo das telas, reinventam suas docências e desencadeiam uma autoimagem como imagem da comunidade profissional do magistério, produzindo novas/outras imagens possíveis para pensarmos, bem como problematizarmos, à docência em Educação Infantil. Nessa perspectiva, interessa-nos – com esse ensaio – pensar como as professoras de Educação Infantil, praticantes culturais (Certeau, 1994), produzem suas existências a partir dos atravessamentos nos modos de produzir conhecimentos e significações na/com a docência. As professoras de Educação Infantil mergulham num desafio extremamente novo para si, relacionar-se com o protagonismo na produção audiovisual para praticar – o que denominamos –gestos-docentes em educação infantil. Nesse aspecto, um movimento de criação e produção de audiovisuais as colocam num jogo de relações que lhes fazem assumir totalmente o protagonismo da cena nos dispositivos que as registram, que as alteram e assim, compartilham gestos-docentes em rede, criando processos de subjetivação, assumindo esses dispositivos, como uma extensão do corpo e também, dos gestos na/com a docência.

Em meio às telas, algumas inquietações

Enquanto pensamos sobre as inquietações e ousamos realizar a escrita desse ensaio, a tela do computador pisca como um letreiro de boate, pronto para devorar-nos em medos e anseios. Algumas memórias são acionadas e surgem como uma agulha que vai costurando os pedaços de uma travessia; pedaços esses que se entrelaçam, envolvem, movimentam um pensamento, uma forma de ver e significar o mundo.

Sendo assim, de que maneira essas inquietações ficam mais latente quando nos deparamos com professoras de Educação Infantil que tomam para si, o protagonismo da cena, e tecem histórias mediadas pela Internet no compartilhamento de imagens/vídeos/sons que partilham sentidos? Trata-se de compreender os modos como os sujeitos ordinários (Certeau,1994) agenciam suas vidas, por meio dos encontros oportunizados pelo digital em rede, assim como mediados pela função fabuladora desencadeada com essas produções audiovisuais (Soares, 2016).

Nossos processos formativos são construídos de sentir, ser, pensar e fazer (Alves, 2015), e a nossa formação é costurada nos/pelos/com os encontros que temos. Os encontros – entre pessoas e entre processos – constituem a base da nossa formação. Desta maneira, entendo com Soares (2016) que no dispositivo audiovisual enunciamos quem somos (ou quem desejamos ser), negociamos sentidos com interlocutores variados, sentidos esses ancorados em imagens que são, em alguma medida, a materialização (ainda que simulada) dos nossos territórios existenciais.

Diálogos teórico-metodológicos

A utilização da juntabilidade segue os pressupostos dos estudos com os cotidianos (Alves, 2008), uma vez que termos antes compreendidos como dicotômicos, ao serem unidos, procuram romper com a limitação imposta pela modernidade.

Este ensaio não tem a pretensão de observar comportamentos, analisar ou definir o que é ser professora de Educação Infantil em meio os dispositivos audiovisuais. A proposta em questão visa conhecer histórias e, a partir delas, pensar, confirmar e/ou confundir, os múltiplos modos e concepções de viver como protagonista da docência no digital em rede e as escritas de si nos cotidianos, ou seja, nos “tantos espaçostempos nos quais as ações humanas acontecem. Onde a vida se produz em meio aos movimentos do dia a dia” (Alves; Soares, 2012, p. 42), enfatizando apontamentos que nos façam pensar sobre a docência em Educação Infantil e os currículos.

Nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos, pensamos currículos não apenas como políticos, documentos ou prescrições. Nessa perspectiva, os currículos são criados tecidos nas múltiplas redes de significações que produzem sentidos diversos, reconfigurando uma estética cristalizada de educação. Nesse sentido, os estudos nos/dos/com os cotidianos (Alves, 2008) nos arrojam a questionar os modos tradicionais de se fazer pesquisa. Isso acontece com a problematização da ideia de o discurso científico ficar distante das práticas, na busca da ciência moderna pela neutralidade e objetividade.

Conforme os pressupostos teórico-epistemológicos, as pesquisas nos/dos/com os cotidianos não buscam descrever sobre os cotidianos, o que colocaria o pesquisador com certo distanciamento sobre o campo. Porém, a configuração em questão busca uma tessitura, um mergulho nos/com os cotidianos. Ou seja, uma conjectura teórica que trabalha fundamentalmente com o campo das sensações, sentimentos, lembranças e dos esquecimentos, que são enaltecidos ou silenciados pelos sujeitos naqueles espaçostempos em meio aos quais ressignificam as histórias que vivenciaram por meio do conhecimento que construíram (Alves, 2008).

Nessa prática de produção do conhecimento em educação, Alves (2008) nos provoca problematizando os métodos tradicionais de produzir e pensar ciência e conhecimento, como: o afastamento da relação “sujeito X objeto”; a caça da ciência cartesiana por certa neutralidade e objetividade. Assim, a ideia de movimento traz ao pesquisador a concepção de que não buscamos solucionar questões levantadas com o campo de pesquisa, mas uma proposição, uma tentativa de “levantar a poeira” a respeito do tema para que seja um disparador em outras pesquisas, outros apontamentos, outros pensamentos. Assim, é indispensável a noção da “tessitura de conhecimentos em rede”.

A noção de rede nos provoca a considerar a possibilidade de colocarmos em prática a horizontalidade das relações entre os diferentes saberes (Alves; Oliveira, 2006, p. 13), ou seja, os processos de prática teoria prática envolvem a vivência de aprendizagens formais e cotidianas, que se misturam; que não são fragmentadas; não são presas em categorias fechadas em busca do real; que não mutilam vínculos ou sentimentos; colocando apenas um caminho na produção do conhecimento (Alves; Oliveira, 2006, p. 13).

Busca-se privilegiar, com este ensaio, dois movimentos elencados por Andrade, Caldas e Alves (2019), o “sentimento do mundo”, que indica um mergulho no campo de pesquisa, com todos os sentidos, desfazendo a concepção que prioriza apenas um olhar, um modo de observar, ignorando, inclusive, diversas sensações e gestos imersos e vivos no campo; e o “EcceFemina”, denominado pelas autoras no andamento de seus estudos e pesquisas dos movimentos propostos, dá conta da importância de se 'fazer com', pois “o que de fato interessa nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos são as pessoas” (Alves, 2003, p. 6). 

O audiovisual como dispositivo de pesquisa

Ao pensar a produção audiovisual das professoras, a partir do panorama de uma aprendizagem inventiva (Kastrupp, 2007 apud Soares, 2016), podemos concebê-las como uma intervenção que, assim problematizada, refere-se à perturbação, que é essencial para a invenção de problemas, invenção de subjetividades, para invenção de mundos (Soares, 2016). Nessa direção, as professoras de Educação Infantil puderam tomar seus processos de subjetivação – orientado/marcado pelas práticas e gestos engendrados na/com a docência em Educação Infantil – de modo a “diferir do já sabido” (Soares, 2016) no papel atribuído ao exercício da profissão, bem como o estranhamento e às questões postas em relação à ideia de ‘ver-se e dar a ver’. Nesse caminho de pensamento considera-se necessária uma discussão sobre a produção audiovisual das professoras a partir do rompimento das categorizações de práticas, e seus gestos, nos contextos das relações de poder que organizam as sociedades.

Muito mais do que se pensa, essas professoras, em especial no espaço/tempo do cotidiano urbano, sabem por que usam (e não só consomem) televisão e computador, além de geladeira, telefone, liquidificador, que escolheram e compraram com seu pouco dinheiro, pois entendem que estes objetos (mesmo antes de serem meios) são importantes para seus/suas­ filhos/as e para si mesmas. Neste processo, com estes/as companheiros/as de curiosidade e aprendizagem, vão “redescobrindo” a lógica que sempre usaram no cotidiano, mas não sabiam, e que indica que o conhecimento é tecido em rede, sem caminhos obrigatórios e sem hierarquias, com uns ensinando aos outros conhecimentos que mudam permanentemente (Alves, 2000, p. 33-34).

Podemos conceber o audiovisual como um dispositivo de pesquisa, pois Soares (2016) apoia-se em Foucault (2005) para pensar o termo “dispositivo”. De acordo com Foucault (1986, apudSoares, 2016): “O termo dispositivo indica um conjunto de práticas de saber, poder e subjetivação, tem, para o autor, um sentido e uma função metodológica” (p. 86). Ainda, segundo Foucault (1986 apud Soares, 2016), um dispositivo pode produzir um “efeito que não estava de modo algum previsto de antemão” (2016, p. 89).

Nessa apropriação da concepção de dispositivo, as produções audiovisuais criadas pelas professoras de Educação Infantil podem produzir, uma forma de conhecimento, que nos traz pensamentos outros, que nos questionam, potencializam rupturas nos modos habituais de vislumbrar as ideias sobre a prática docente em meio a uma identidade, engessada e formatada, no que tange se constituir enquanto professora de educação infantil. Com isso, podemos destacar que os usuários, os praticantes ordinários (Certeau, 1994), se apropriam de artefatos culturais, produzem formas de combate e resistência aos preconceitos, e, operam para além de denunciar atitudes discriminatórias, mas inventam, em diferentes linguagens, narrativas de um cotidiano vivido e experimentado, por meio da imaginação, modos de produzir conhecimentos e significações.

A docência em meio a ilha deserta: a experiência numa instituição infantil

Iniciamos o ano carregado de muitas incertezas, reinventando modos de viver ou sobreviver. Um medo foi colocado em xeque, novos hábitos passaram a ser criados na dimensão do viver e diversas situações novas ‘reprojetaram’ nossos pensamentos. Em presença dessas circunstâncias, alguns debates começam a surgir em diferentes campos da sociedade, dentre esses, o campo que pensa à docência com as crianças e suas infâncias. Muito se fala em desigualdade, pluralidade e opiniões a respeito de como vivemos nesse período tão delicado. Somos afetados por uma pandemia causada por um vírus que circula mundialmente, nos isola, em tese, nos coloca 'dentro' de espaços denominados casas, e assim, alguns de nós somos levados para as vivências, cada vez mais latentes, do digital em rede.

As experiências que compartilhamos aqui foram tecidas em uma instituição de ensino municipal, localizada no bairro da Cidade Nova – Rio de Janeiro, que atende crianças com idades entre 01 e 05 anos e 11 meses, compreendendo as modalidades de creche e pré-escola. Vivenciou, na primeira semana de março de 2020, uma transição na sua gestão. Acolhimento, descobertas, dúvidas, anseios passam a permear as relações neste espaço que possui 16 anos de existência e que, durante todo esse período, teve uma mesma profissional como gestora da instituição. De março para cá, inúmeros desafios foram enfrentados e ainda os são, todos os dias. No que diz respeito à Educação e, mais precisamente a Educação Infantil, como planejar propostas pedagógicas à distância, sem perder de vista as especificidades desta etapa da Educação Básica? Como possibilitar experiências de aprendizagem às crianças que estão isoladas em suas casas? Como acolher crianças e famílias com sugestões de propostas pedagógicas onde os eixos das interações e brincadeiras estejam presentes?

 A partir dessa premissa, peregrina-se, nesse cotidiano, com vídeos produzidos por professoras de Educação Infantil dessa instituição pública. Esses vídeos são enviados às famílias – a partir de uma decisão coletiva dos diversos atores da creche – para ser apreciado pelas crianças conforme a orientação, do Conselho Municipal de Educação do Rio de Janeiro, para o período de pandemia: “cabe à Educação Infantil a manutenção dos vínculos afetivos, sociais e culturais, não sendo admitida a antecipação de conteúdos relacionados ao Ensino Fundamental, conforme estabelecem as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação Infantil” (Rio de Janeiro, 2020 p. 16). Ao visualizar as produções muito se afeta, pois essas professoras produzem vídeos curtos, entre 01 a 05 minutos, trazendo contação de histórias (orais ou de literatura); leitura de poesias – às vezes, de autoria própria; exploração de obras artísticas; conversas informais envolvendo temáticas sobre racismo, corpo, gênero; músicas; propostas de brincadeiras e interações com as famílias.

Figura 1: Registro do drive com os arquivos das professoras performando a docência em vídeo

Fonte: Arquivo pessoal e da instituição.

Nesse contexto, percebe-se o quanto têm sido latentes as nuances com os gestos-docentes em meio ao isolamento sanitário e a prática das professoras de Educação Infantil, que ouso fazer alusão, a uma ilha deserta (Deleuze, 2005). De acordo com o autor Gilles Deleuze, é possível vislumbrar que a ilha deserta é o lugar do isolamento como condição para o movimento que consiste em reinventar o mundo, e com isso, a solidão, sempre povoada, é inseparável da agitação de seu tempo, cabendo ao sujeito, fundamentalmente, captar e restituir as condições provisórias de afastamento que toda ilha oferece (Deleuze, 2005). Nessa perspectiva, o autor nos abarca que:

Os geógrafos dizem que há dois tipos de ilhas. [...] As ilhas continentais são ilhas acidentais, ilhas derivadas: estão separadas de um continente, nasceram de uma desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, sobrevivem pela absorção daquilo que as retinha. As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais: ora são constituídas de corais, apresentando-nos um verdadeiro organismo, ora surgem de erupções submarinas, trazendo ao ar livre um movimento vindo de baixo; algumas emergem lentamente, outras também desaparecem e retornam sem que haja tempo para anexá-las.  Esses dois tipos de ilhas, originárias ou continentais, dão testemunho de uma oposição profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lembrar que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estruturas mais elevadas; as outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e congrega suas forças para romper a superfície. [...] O homem só pode viver bem, e em segurança, ao supor findo (pelo menos dominado) o combate vivo entre a terra e o mar. [...] De um modo ou de outro, a existência das ilhas é a negação de um tal ponto de vista, de um tal esforço e de uma tal convicção. Será sempre causa de espanto que a Inglaterra seja povoada, já que o homem só pode viver sobre uma ilha esquecendo o que ela representa. Ou as ilhas antecedem o homem ou o sucedem (Deleuze, 2005, p. 6).

No alcance dessas inquietações, é urgente dar visibilidade à capacidade das professoras de Educação Infantil em constituírem-se como produtoras de subjetividades, mesmo que no meio de uma pandemia que resvala o capitalismo e as noções opressoras no campo da governabilidade. Perpetua-se, assim, que as professoras se constituam e se rompam em meio ao surgimento das audiovisualidades na/com a docência, tal condição surge mesmo que com base em padrões predefinidos socialmente. A partir dessa perspectiva, é possível afirmar que “o capitalismo produz formas-subjetividade, modelizações subjetivas” (Barros; Pinto, 2004). Esses modelos abarcam as percepções e a memória; envolve a dinâmica das relações sociais; o campo das práticas. Nesse entendimento, os processos de subjetivação, ao mesmo tempo, são produzidos em instâncias coletivas e institucionais. Para Guattari (1981), o capitalismo necessita de certo modo de subjetivação para expandir sua produção; produção essa que perpassa pelo desejo, pelas formas de produção da existência. No entanto, concomitantemente, tal produção, ao mesmo tempo, se choca com os modos de subjetivação singulares que, como tal, é recusa, é resistência, construindo sensibilidades outras, modos de relações outros, ocasionando assim, outras formas de produção da existência (Barros; Pinto, 2004).

Entendemos que o conjugado de reflexões das professoras de Educação Infantil – enquanto produtoras de subjetividades – perpassa as provocações da gestora escolar. Como uma maestrina, a gestora escolar, comprometida com a participação dos envolvidos, convida a uma avaliação do cotidiano, das práticas e crenças que, por meio de uma transformação nos sujeitos – através das relações que se constituem – possibilitam uma mudança significativa na instituição escolar. Por isso, Bondioli (2013) considera a participação uma responsabilidade, isto é, mais do que um direito ou dever, significa uma condição inerente a qualquer processo educativo de qualidade. Sendo assim, pensamos que, ancorados nas reflexões da autora, não há qualidade sem a participação dos sujeitos envolvidos no processo. Processo este que a pesquisadora nomeia como qualidade negociada:

A qualidade não é um dado de fato, não é um valor absoluto, não é adequação a um padrão ou normas estabelecidas a priori e do alto. Qualidade é transação, isto é, debate entre indivíduos e grupos que têm um interesse na rede educativa, que tem responsabilidade para com ela, com a qual estão envolvidos de algum modo e que trabalham para explicitar e definir, de modo consensual, valores, objetivos, prioridades, ideias sobre como é a rede para a infância e sobre como deveria ou poderia ser (Bondioli, 2013, p. 14).

Nesse sentido, trazer a concepção de avaliação institucional – no contexto das ações mencionadas – implica repensar o significado da participação dos diferentes atores no cotidiano escolar. Implica refletir a dimensão do coletivo e suas potencialidades. Significa um processo de apropriação da escola pelos seus atores. E vai além quando concebe o projeto político-pedagógico como instrumento para a condução da qualidade negociada, como apontam Freitas et al. (2009).

Segundo os autores, os atores da escola têm um projeto e um compromisso social em comum. Sendo assim, além do seu próprio compromisso, necessitam do compromisso do Estado para com a Educação. Ao nos apropriarmos das questões da escola, nos apropriamos também para demandar do Estado as condições necessárias para o funcionamento dela. E reafirmamos aqui a importância do gestor escolar enquanto formador, enquanto alguém que conduzirá a equipe à participação responsável. Assim como Bakhtin (2003), pensamos que a gestora escolar trará enunciados aos educadores que poderão responder, de forma transformadora, por meio de uma prática pedagógica consciente e participativa. Entendemos que isso se traduz em responsividade.

Figura 2: Apresentação de uma turma da instituição num movimento denominado ‘troca de experiências’

Fonte: Arquivo pessoal e da instituição.

A partir da imagem acima, que traz um resumo de um movimento denominado ‘troca de experiências’, vislumbramos que – ao final do ano letivo – cada turma pode apresentar seus desafios, aprendizagens e perspectiva em meio o percurso tão intenso que foi 2020. Nessa perspectiva, pensar as formas como as professoras vivem à docência nas/com as audiovisualidades não se apresenta como uma tarefa fácil, pois, acredita-se que, em meio a uma negociação sobre as especificidades do que se espera de uma professora de Educação Infantil e as tensões de sobreviver numa pandemia, as audiovisualidades abarcam os cotidianos docentes e, com isso, uma condição de visibilidade passa a ser criada, ao mesmo tempo, vislumbramos os medos e anseios de fazer 'bem' a sua docência, já que ficam mais apreensivas para uma busca pelo ‘correto’, pelo 'fazer direito' nos moldes do conhecimento hegemônico, além das angústias do momento atual em que são atravessadas. Diante de algumas possíveis interrogações que surgem em meio os gestos-docentes em vídeo, é possível vislumbrar um receio, uma vigilância (Bruno, 2010) instaurada, já que os vídeos produzidos pelas professoras não são restritos ao campo da 'escola' ou das crianças, os mesmos entram em rede, se constituem em escritas de si mediadas pela internet, bem como pelos dispositivos de registro e compartilhamento de imagens/vídeos/sons. Nessa perspectiva, vislumbra na apresentação da atividade intitulada “troca de experiências”, um grupo de profissionais, da equipe da instituição, trazendo suas reflexões a respeito da docência no contexto das audiovisualidades.

Desse modo, a presença das câmeras pode fabricar, por meio dos registros, o que Bruno (2010 apudSoares, 2016) denomina de ‘estética do flagrante’ e que tal condição incide sobre os sujeitos monitorando-os em círculos de controle, prazer, voyeurismo e entretenimento. Concomitantemente, mais que documentar o real, as produções de vídeos dessas professoras podem tensionar novas possibilidades de criar esteticamente suas existências e os gestos-docentes em educação infantil.  Nesse sentido, é como se houvesse territórios existenciais variados (Nolasco-Silva, 2019) na composição de si, criando camadas que em teoria, não se misturam, mas que, na prática, no consumo das imagens, expõe tudo e todos, no bojo da vigilância panóptica (Foucault, 2014).

A urgência em trazer em voga as práticas com audiovisualidades em contextos de formação nos possibilitam questionar as modelizações vigentes na/com a docência, e, engendrar outros modos de constituir a prática docente para além daqueles dados hegemonicamente, ligados a lógica do biopoder (Foucault, 2008), e que nos afetam a constituir nossos gestos-docentes.

Docência produzida em gestos

Ao abarcar nas indagações de Klipp (2012), as audiovisualidades retribuem ao modo como vem sendo denominadas as produções encenadas no limiar audiovisual, borrando as fronteiras construídas pelos pesquisadores e realizadores entre códigos imagéticos e produção de consumo. Os registros audiovisuais têm se constituído como linguagens por meio das quais os praticantes percebem, experimentam, se expressam e se deixam afetar no/com o mundo. Neste mote, os praticantes – por meio dos usos com o dispositivo audiovisual –desejam, inventam, produzem, experimentam, vivem de modo a potencializar, cada vez mais, sua capacidade de experimentar o mundo, usam as imagens do mundo exterior, por meio dos processos miméticos, para transformar e incorporar ao seu mundo de imagens internas (Wulf, 2013). Nesse aspecto, a aprendizagem cultural é adquirida num processo de incorporação e atribuição de sentidos dos produtos culturais disponíveis.

Figura 3: Uma turma a respeito das experiências da docência em vídeo e gestos

Fonte: Arquivo pessoal e da instituição.

Como expõe o autor Christoph Wulf (2013), ao apropriar-se das imagens do mundo, os praticantes formam repertórios que compõe seu imaginário no qual criam referências e modelos a serem imitados. De modo prático, esses processos não abarcam apenas as maneiras em lidar com os produtos materiais da cultura, mas também com as relações sociais, os modos de agir e as formas como a vida social vão sendo encenada e executada. Esse conjugado de relações envolve formas de conhecimento prático que são aprendidos mimeticamente em processos corporais e nos permitem atuar no bojo das relações sociais (Wulf, 2013, p. 53).

Nesse traço, partilhamos da ideia de que as práticas tecidas cotidianamente na/com a docência em Educação Infantil, em convergência com os usos do audiovisual, podem ser vistas enquanto processos miméticos que produzem diferença, afirmação permanente. Wulf (2013) nos indaga que os conhecimentos, gestual e ritual, são conhecimentos de cunho prático e tácito incorporados em seu caráter performativo, que emerge das relações. “Sem rituais, não haveria o social” (Wulf, 2013, p. 14). Assim, os rituais cumprem um desempenho central na formação social e cultural dos sujeitos. Nos rituais, os gestos articulam um papel central já que “os gestos transmitem valores sociais e culturais em formas corpóreas [...]. Nos gestos muitas vezes estão condensados os significados dos rituais” (Wulf, 2013, p. 16). Mas esses rituais, gestos e aprendizagens são práticas a serem transmitidas? E as professoras, como se inserem nos processos miméticos? Nos rituais e gestos, produzidos com os dispositivos audiovisuais, temos como elemento central o papel dos recursos da imaginação, e, esse contribui para a multiplicidade e o caráter dinâmico da performatividade dos rituais e gestos. Sendo assim, podemos questionar se os gestos-docentes são projetados nas possibilidades que criam estéticas de existência, já que nos gestos, realizamos uma possível inventabilidade nos processos de subjetivação.

Nesse ponto, percebe-se que as adversidades da prática docente na/com as audiovisualidades emergem enquanto problematizadora do que está dado/naturalizado, com vistas a questionar e potencializar as práticas educativas. Assim, estudos e pesquisas no campo das audiovisualidades, em contextos de formação, implicam em interrogar a produção de diferenças que são enaltecidas a partir das aspirações que instituem, modos de ver/ouvir e de fazer ver/ouvir, histórias criadas com imagens e sons. Com esses movimentos formados – por linhas de sedimentação da docência e na fissura com os usos dos artefatos tecnológicos – busca-se romper com uma espécie de “formatação” do magistério, e isso têm muito a ver com os rituais e processos miméticos investigados por Wulf (2013). O autor nos fala que o contexto e a ação dos gestos na criação dos filhos, educação e socialização, já demonstram a relevância das pesquisas com o caráter mimético dos gestos (Wulf, 2013).

Considerações finais  

O contexto da Educação Infantil brasileira é um campo em construção e que, por isso, envolve questões polêmicas, sujeitas ao debate, antes mesmo da pandemia que atinge mundialmente a todos, bem como a multiplicidade de contextos. O cenário atual potencializou esse debate fazendo com que nós, profissionais da primeira etapa da Educação Básica, ficássemos ainda mais atentos aos desafios que ainda estão por vir e, que dizem respeito diretamente, às crianças pequenas. É urgente fortalecermos nossas concepções de criança, infância e Educação Infantil, conquistadas num período histórico aparentemente curto, porém que travou um debate árduo, longo e sério no qual ainda temos muito que avançar e consolidar. Assim como é necessário estarmos atentos, também, a relação entre os documentos normativos e o contexto das instituições.

Nesse mote, trazer o audiovisual como dispositivo nos/com os cotidianos das professoras de Educação Infantil nos vislumbram atuarmos como um produtor/disparador/desencadeador de sensações, significações, sentimentos e experiências estéticas partilháveis (Soares, 2016). Sendo assim, a definição dos vídeos produzidos por professoras de Educação Infantil, enquanto espaço-tempo de prática docente, nos faz pensar a criação desses espaços-tempos para interrogar, refuncionalizar, potencializar, esgarçar e alargar as redes de conhecimentos e significações sobre a docência, a gestão enquanto mediadora de processos de formação e toda essa convergência que impulsiona a negociação de sentidos (Soares, 2016) ao que nos toca, nos afeta, nos agencia (Deleuze, 2005), nos constitui. Desse modo, ao buscarmos saber quais caminhos a produção e circulação, dos audiovisuais das professoras de Educação Infantil, tal questão nos aponta para pensar a educação que temos hoje, qual desejamos e, também, outras possíveis. Assim, pensar à docência e os currículos, seus alargamentos e atravessamentos, é algo que transborda o instituído, colocando em xeque aquilo que é prescrito, produzindo agenciamentos outros e potencializando o (d)escolamento de nossas certezas.

Ressaltamos, na abrangência deste ensaio, que este percurso formativo não foi fácil, ao contrário, foi permeado por tensões e desconfianças, visto que, além de uma pandemia em curso, foi urgente lidar com paradigmas estabelecidos e mexeu, de certa forma, com as certezas de cada professora, assim como reafirmou as convicções de conceber a gestão enquanto formadora, provocando-as a confrontarem suas narrativas, fazeres pedagógicos e suas concepções acerca da avaliação. E, tudo isso, fez com que a gestão, cada vez mais, buscasse em sua própria formação permanente, aprofundamentos nos estudos, parcerias, se permitir inquietar-se com as demandas do outro. Acreditamos que, a partir deste posicionamento, houve uma mudança nas percepções de cada profissional sobre as especificidades da Educação Infantil. Isso se refletiu nas práticas docentes e institucionais. Os materiais que foram direcionados às crianças, no início da pandemia até o final do ano letivo de 2020, ilustram essa mudança, que ainda é gradativa, mas que apresentam para a equipe conquistas importantes e reafirmam a importância do fortalecimento institucional.

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Publicado em 18 de maio de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

ROSSATO, Bruno Costa Lima; AMANCIO, Cristiane Ferreira Cunha. Reflexões sobre a docência em Educação Infantil e as audiovisualidades no contexto da pandemia da covid-19. Revista Educação Pública, v. 21, nº 18, 18 de maio de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/18/reflexoes-sobre-a-docencia-em-educacao-infantil-e-as-audiovisualidades-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19

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