Por que (ainda) ler Machado de Assis na escola nos dias de hoje? – uma resposta para Felipe Netto

Hugo Carvalho Villa Maior

Professor (IFRN) e doutorando em Estudos da Literatura (UFF)

Recentemente, o youtuber Felipe Netto publicou nas suas redes sociais a declaração de que achava um absurdo os jovens serem obrigados a ler Machado de Assis e Álvares de Azevedo na escola, “Álvares de Azevedo e Machado de Assis não são para adolescentes!!!” (grifo do próprio autor), complementa o youtuber. A declaração de Netto me detonou uma outra questão: Quando falamos de leitura, o que seria uma leitura para os adolescentes? E foi refletindo sobre esse gatilho que resolvi sentar para discorrer sobre o assunto, já que Netto tem milhões de seguidores nas suas redes sociais e, querendo ou não, ele acaba sendo um formador de opinião para os jovens. Para refletir sobre o assunto, precisamos trazer algumas outras questões à tona. Vamos a elas!

A importância de trazer Ribeiro (2017) no seu potente diálogo com Gonzalez (1982), assim como a contribuição de Spivak (2018) para construção de um pensamento decolonial com sua pergunta latente: pode o subalterno falar?, se torna necessária não só para esta investigação como também para se pensar em quem seria esse subalterno na contemporaneidade. Já na epígrafe de O que é lugar de fala?, Ribeiro (2017) nos traz uma Gonzalez bastante contundente num claro diálogo com a obra da pensadora mineira, sobretudo com seu racismo e sexismo na cultura brasileira (1984): “o lixo vai falar, e numa boa”. González (1984) questiona ainda todo um discurso hegemônico quando redige em um discurso mais coloquial, em primeira pessoa, muitas vezes, seus textos acadêmicos colocando em xeque inclusive uma suposta imparcialidade da ciência.

Para pensar a questão de algumas representações não só na escola, na literatura, mas a representação na própria contemporaneidade, é preciso dialogar, de alguma forma, com Spivak (2018) e o com as indagações que seu texto propõe: A linha tênue entre o ‘falar por’ e o ‘re-presentar’. Pode o oprimido ter voz?, indaga a autora já no título. Tal questão evidencia a fragilidade desse sujeito de terceiro mundo ocidentalizado e, talvez, arriscar uma fácil relação entre a autora e aquilo que Foucault chamou de “a microfísica do poder” exponha ainda mais o nosso pensamento colonizado frente a um colonizador branco e europeu. No seu texto, a autora faz abertamente uma crítica às obras de Deleuze e de Foucault, à medida que, segundo a autora, eles ocupam um lugar de privilégio, uma vez que são brancos e europeus, e ainda que tragam questões importantes, para compreender a obra tanto de um quanto de outro é preciso entender também esse lugar de privilégio.

Nesse sentido, ainda para Spivak é necessário desafiar os discursos hegemônicos, ao mesmo tempo, colocar em xeque nossas crenças como leitores e produtores do conhecimento, nos colocando diante de um sujeito não ocidentalizado e do texto por ele produzido. E talvez estar diante desse sujeito seja, em certa medida, também questionar esse cânone literário embranquecido, masculino, heteronormativo e, necessariamente, ocidentalizado.

Spivak (2018) nos coloca diante de uma escrita que pode ser desejo e cura ao mesmo tempo, tamanha é a imensidão da sua pena. A autora vai além quando propõe refletir, pensar a teoria crítica a partir de uma prática intervencionista. Para Agamben, a dificuldade do texto de Spivak se dá no desejo que a autora nos evidencia de alterar, pôr em xeque, a forma como lemos o contemporâneo.

A afro-americana bell hooks (2019) chega então para abrilhantar os estudos decoloniais já bastante influenciada por suas leituras do brasileiro Paulo Freire. A escritora fala de seu processo de escolarização na infância em uma escola só para meninas no sul dos Estados Unidos, e de como estudar em uma escola só para meninas negras, ainda na sua primeira infância, foi determinante, naquele momento, para ela se tornar a escritora/professora que é hoje. A escola, nesse período, para autora, era quase como um mundo à parte. Enquanto em casa ela aprendia que o negro deveria ser subserviente, na escola ela aprendia que poderia ser livre, poderia ser livre como mulher e como uma mulher negra, embora fosse duas vezes mais oprimida que as mulheres brancas: “o outro do outro” segundo Ribeiro (2017).

Quando passa a dividir os bancos escolares com as crianças brancas, com professores brancos, a situação passa a ser completamente diferente. Intensifica-se esse processo de assujeitamento desse corpo negro em relação ao corpo branco, numa escola com crianças brancas, com uma episteme, notadamente, embranquecida que não fazia o menor sentido para uma jovem negra do sul dos Estados Unidos.

É preciso reforçar que tanto para Ribeiro (2017) quanto para González (1982) a questão da racialidade é atravessada, também, por um privilégio epistêmico. Nesse sentido, talvez, fosse preciso trazer Butler (2018) para discutir os processos de silenciamento desse corpo negro, desse corpo que não é o padrão, que não é o hegemônico, que é, todos os dias, atravessado pela violência, pela necropolítica diante de um Estado fascista. É preciso lembrar também que Butler é uma escritora judia que luta pelos direitos do povo palestino e quando a autora traz essa discussão sobre corpo, ela vai além da critica já feita por Foucault ainda na década de setenta, que pensava num modelo de um corpo padrão, hegemônico, um corpo de um homem branco, europeu, atravessado pela ocidentalidade. Quando Butler (2018) diz que a categoria mulher não é suficiente para falar de feminismo, é porque ela entende que existem várias mulheres dentro dessa grande categoria chamada “Mulher”, que enquanto a mulher branca lutou, durante muito tempo, para trabalhar fora, a mulher preta se não trabalhasse não tinha como sobreviver.

Retomando hooks (2018), se na escola se obedecia a uma professora branca, completamente diferente do processo da escolarização só para meninas negras, aquele experienciado no sul dos Estados Unidos, em casa se obedecia a uma figura materna, a igreja, era o lugar de subserviência ao patriarcado e assim por diante. Uma educação pautada no processo de assujeitamento de corpos, uma educação em que o que se ensinava era a obedecer, e o que efetivamente se aprendia era a obedecer; daí a pesquisadora nos lembra da importância da expressão “Talking Back”, cujo sentido é justamente ousar responder a figuras de autoridade.

A partir da experiência de hooks (2018) e da pergunta-título que ecoa e permeia todo texto de Spivak (2014), Pode o subalterno falar?, e com a própria discussão protagonizada por Butler (2018) sobre esse corpo não hegemônico, atravessado por várias nuances, é preciso refletir quais os processos de silenciamento, dos nossos corpos e vozes, quais processos de subjetivação que nos levaram, de alguma maneira, a embranquecer o nosso maior e melhor escritor: Joaquim Maria Machado de Assis, mais conhecido como Machado de Assis.

Machado, filho de pai negro e mãe portuguesa, cresceu na casa dos patrões de sua família, frequentando, desde muito cedo, os salões da aristocracia. O escritor, que carregava em seu nome, Joaquim Maria, uma homenagem aos patrões de seus pais, sempre preferiu assinar seus escritos como Machado de Assis, talvez para não borrá-los com as relações patronais de seus familiares.

Para responder a essa pergunta – por que ler Machado de Assis hoje? –, é necessário se debruçar mais detalhadamente sobre os contos em que o autor se aproxima de sua origem afrocentrada, como Pai contra mãe, O caso da vara e Mariana, este último publicado pela primeira vez no Jornal das Famílias em 1871.

É preciso salientar a ousadia machadiana de publicar justamente no Jornal das Famílias um conto como “Mariana” que trata, entre outras coisas, do suicídio de uma menina negra que foi escravizada. Vale lembrar que o Jornal das Famílias é um periódico para moças, em que além de romances, se publicavam também artigos sobre economia doméstica, carta para leitoras e afins, “Cozinham-se cortados em bocadinhos, em água e sal, escorrem-se, põe-se numa caçarola com manteiga para refogarem um bocadinho” (Jornal das Famílias, 1871, p. 30). Porém, é preciso compreender que Machado tinha a exata consciência do texto que deveria ser publicado no “Jornal das famílias” e o texto que deveria ser publicado no Jornal do Commercio, por exemplo.

Pensar de que forma esses textos, de alguma maneira, circulavam pela imprensa local é, em alguma medida, pensar, também, na sua própria materialidade. Por outro lado, se em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) o autor coloca foco nas relações de poder que estão mais que evidenciadas nas raízes de um país escravocrata, destaque para cena em que Cubas faz de um negro escravizado, cavalinho, em Pai contra mãe Machado analisa em profundidade essas raízes escravocratas.

Logo no início do conto, cuja publicação data de 1906, publicado no livro Relíquias da Casa Velha, o autor escreve com riqueza de detalhes os instrumentos de tortura os quais os negros eram submetidos e para que servia cada um deles, o que coloca o texto ali no limite entre o ensaio e a ficção, brincando, se é que podemos chamar assim, também, com a forma. Um texto limítrofe, limite, entre forma e conteúdo, entre realidade e fantasia (será?). Não por acaso, Cândido Neves era um negro liberto que "não deu para nada". Logo lhe restou a função de capitão do mato.

Ainda que traga em seu bojo o tema da escravidão, o conto O caso da vara fala de alguém, diante de uma escolha difícil. Damião, o protagonista, está diante da sua "escolha de Sofia" e apesar de nutrir grande afeição por Lucrécia, negra escravizada, que não terminou sua tarefa, ele precisa da permissão de sinhá Rita para abandonar o seminário, note aí um diálogo com D. Casmurro publicado anos antes, e entre a feição por Lucrécia e seus interesses pessoais, Damião opta por seus interesses.

Ainda que o caminho da racionalidade o levasse a escolher Lucrécia, Damião opta por uma escolha emocional, onde o seu interesse pessoal prevalece diante dos demais, o que se deflagra aí é que, justamente, iremos sempre buscar desculpas racionais para nossas escolhas que são, necessariamente, emocionais. Até onde vai o ser humano para conseguir o que quer? Será que o conto O caso da vara poderia se dar, se passar em um outro contexto, senão nesse contexto de um Brasil escravocrata? Talvez, porém, o contexto histórico torna especificamente esse texto de Machado de Assis ainda mais perverso.

Poderíamos parar na análise dessa trilogia machadiana e dizer que a importância de ser ler Machado de Assis hoje é por uma questão de reparação histórica com um autor que foi toda uma vida embranquecido pela tradição, mas o próprio conto O caso da vara mostra que não é só isso, um ser humano fraco, impotente controverso e, por isso tudo, atemporal prevalece diante desse ser histórico, desse ser historicizado. Para apimentar um pouco mais a questão trago uma situação que aconteceu recentemente em uma escola pública na zona sul do Rio de Janeiro, mas precisamente em 2018.

O bibliotecário da escola, após a indicação de um professor, adquire para o acervo o livro Sol na cabeça, de Giovane Martins, que, naquele ano, ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro de contos. Logo que o livro chega um professor diz que o livro é “pesado” demais para aqueles alunos; o livro trata, também, do cotidiano violento da favela, a mesma favela onde os alunos dessa escola residiam. Logo, censurar o livro de Giovane Martins nessa comunidade escolar é, necessariamente, negar pertencimento a esse alunado. Da mesma forma, estamos negando pertencimento a esse alunado brasileiro, oriundo de escola pública, quando não entendemos Machado de Assis como um autor negro, filho de um pai que foi escravizado.

A partir do diálogo com Spivak (2018) e hooks (2018), ao pensar o cruzamento de variáveis como racialidade e situação socioeconômica, em um contexto de Brasil, não seria nenhum absurdo, inclusive, pensarmos em uma Capitu negra, se refletirmos com um pouco mais de cuidado sobre a origem das famílias de Bento e Capitolina. Bento Santiago tinha uma origem, sim, tinha uma origem aristocrática, mas a família de Capitu não era uma família de comerciantes que haviam se mudado há pouco para o bairro. Aliás, seria um exercício bem interessante, sobretudo para a escola pública, a aproximação de Capitu com essas meninas que atravessam os corredores escolares todos os dias.

Recordo-me de uma experiência em rodas de conversa literárias com os contos de Machado de Assis em algumas escolas públicas do Rio de Janeiro. Uma experiência em especial com o conto A Cartomante me toca bastante. Toda vez que levo esses textos às rodas de conversa que frequento e organizo nas escolas públicas em que atuo como professor, sempre faço a mesma pergunta quando já estamos em roda antes de começar a ler o conto: alguém aqui acredita em cartomante? “Até acredito..., mas cartomante boa é cartomante longe...”, me disse certa vez uma aluna - trabalhadora de um Ensino Médio noturno de uma escola na Zona Sul do Rio de Janeiro. “Só acredito em duas cartomantes: a de Machado de Assis e a de Clarice Lispector...”, me disse, certa vez, uma colega professora em uma conversa de corredor entre uma aula e outra, entre um cafezinho e outro, “as duas erram solenemente”, emenda logo depois.

Daí, fico pensando em como essas personagens que possuem o dom da clarividência fazem parte de certo arquétipo que é, ao mesmo tempo, individual e coletivo e, de alguma forma, povoam o imaginário de muita gente e, talvez, por esse mesmo motivo possuem um apelo forte na sala de aula com a juventude. Talvez esse seja um gatilho interessante que podemos acionar quando trabalhamos Machado na sala de aula, com adolescentes hoje. Porque, talvez, a grande questão não está no fato do que o adolescente deve ou não ler. Mas como a escola deve fazer a mediação dessa leitura. Perceba que em momento nenhum se coloca em dúvida o papel da escola na condução desse processo (já aí tentando responder mais uma vez à provocação de Netto).

Ao tentarmos responder a essa questão que está aí posta, por que ler Machado de Assis nos dias de hoje?, é inevitável não pensarmos na pergunta-matriz de Ítalo Calvino: por que ler os clássicos? Calvino (2014) diz que, salvo na juventude, clássico é aquela obra que a gente está sempre relendo e nunca lendo pela primeira vez. O autor, inclusive, faz questão de diferenciar a experiência da leitura inaugural, na juventude, da experiência da leitura na fase adulta, na maturidade, dizendo esta é muito superior à primeira, uma vez que, segundo Calvino, essa leitura na juventude é bastante dispersa.

A primeira questão que inclusive o próprio Calvino já levanta é o fato de nem sempre essa leitura ser a primeira a acontecer na juventude. Muitas vezes, dizemos que estamos relendo algo, mesmo na maturidade, por vergonha de assumir que o que está sendo feito é uma leitura inaugural de fato. Outra questão que está por trás dessa ideia também é o fato de em função de sua pouca idade o jovem estar sempre fazendo uma leitura inaugural e de que sua leitura é, necessariamente, sempre dispersa.

Daí para se chegar ao famoso chavão “o jovem não gosta de ler” é um pulo, e nós sabemos que isso não é verdade, mas talvez isso já seja assunto para um próximo artigo. Talvez o que fica da pergunta de Calvino é a reflexão de que nenhum clássico nasce clássico. Shakespeare, por exemplo, encenava suas peças nos palácios elisabetanos, mas seu trabalho era fruto essencialmente do teatro de rua, era fruto da cultura popular.

Seus textos eram construídos no calor do momento das apresentações, era mexido e remexido por seus atores homens que se revezavam também nos papéis femininos, uma vez que as mulheres eram proibidas de frequentar os teatros. Quase uma mistura de teatro e circo ao mesmo tempo.

No entanto, quando levamos um clássico como Machado para sala de aula, por que não conseguimos recuperar o espírito, o frescor do texto recém-escrito? Machado publicava em tabloides, ou mesmo em jornais de grande circulação e havia uma espera, uma certa expectativa com relação à circulação de seus textos na imprensa, o que tornava a relação com estes textos muito parecida com a que temos hoje com a telenovela, a teledramaturgia brasileira.

Para trazer para um universo mais adolescente, mais juvenil podemos comparar também a publicação dos romances de Machado em capítulos, as temporadas das famosas séries do grupo Netflix (não que eu goste muito dessas séries, mas já é uma outra questão) e refletir sobre todo esse contexto é refletir novamente a respeito da materialidade desses textos, é novamente refletir a respeito dessa premissa: nenhum clássico nasce como um clássico. Mello (2019), em sua tese de doutoramento Como fazer um clássico da literatura brasileira?, faz uma historiografia do nosso cânone literário e faz questão de diferenciar os conceitos cânone e clássico, diz, inclusive, ser cânone um conceito elitista porque é sempre um seleto grupo de especialistas, de pessoas de uma determinada área que diz o que fará e o que não fará parte de um determinado cânone.

Por isso, talvez a opção pela palavra clássico seja mais acertada. Só tentando responder à pergunta-titulo de sua tese, como fazer um clássico da Literatura Brasileira?, que perpassa todo seu texto, nos damos conta de como a escola, enquanto instituição, e como o livro-didático de Literatura, como um de nossos monumentos, contribuem para formação/construção desse livro clássico da Literatura Brasileira.

De um modo geral damos todo o peso do livro clássico à obra, o que só contribui para aumentar a rejeição do alunado com relação ao Machado ou com qualquer outra obra clássica (talvez seja isso que Felipe Netto tenha tentado dizer, sem sucesso, porque talvez isso também não esteja muito claro para ele.) Porém, como fazer então para desconstruir com os jovens todo o peso de um clássico? De várias maneiras, embora não haja nenhuma receita pronta. Porém, uma experiência com os contos de Machado de Assis com jovens do 8º ano de uma escola municipal do Rio de Janeiro me atravessou sobremaneira: a experiência de transformar os contos do Machado de Assis em histórias em quadrinho. De início, os jovens resistem bastante, apelam, inclusive, dizendo que não sabem desenhar. Mas logo saem quadrinhos lindos.

A grande questão nesse processo é a dificuldade que alguns alunos têm de compreender que nem todo o conto de Machado cabe em uma HQ justamente porque se trata de duas materialidades diferentes. É preciso que haja cortes, adaptações, corruptelas nesse processo de passagem de um gênero textual para o outro. Um conto e uma HQ tem público-alvo distintos, objetivos distintos. Logo, esse passa a ser um exercício interessante para se discutir a questão da materialidade com os jovens. Durante os anos em que me debrucei em uma pesquisa sobre cinema e educação, em vários momentos, discuti com o alunado os processos que levam um filme de duas horas a se transformar em um trailer de cinco minutos. E ninguém pode dizer que não estávamos discutindo literatura, a linguagem e seus processos de aglutinação.

Daí, é preciso trazer Reis (1996) para pensar conosco o que cabe e, necessariamente, o que não cabe nesse grande caldeirão chamado de Literatura, sobretudo, hoje nessa pós-modernidade de relações fronteiriças e imprecisas.

A grandiosidade da obra machadiana talvez esteja evidenciada, inclusive, no texto Instinto de Nacionalidade, publicado em 1873, quando pressionado pela crítica literária da época a tratar de questões genuinamente brasileiras em seu texto, tal como seu contemporâneo, o escritor José de Alencar, Machado nos diz que pensar as questões nacionais é pensar, necessariamente, as questões universais do ser humano, talvez, daí a proximidade de seus textos com os do bardo inglês W. Shakespeare.

E por falar em crônicas, é importante salientar o papel de destaque que Machado ocupou como cronista em importantes jornais cariocas entre as décadas de sessenta e noventa do último século, usufruindo, muita vez, do espaço da crônica como pesquisa para os contos que mais tarde escreveria ou mesmo usando o espaço da crônica trazer de volta alguns temas que já foram trabalhados em contos já publicados, como é o caso, por exemplo, de crônica publicada na revista A semana em 10 de março de 1895.

Essas mesmas crônicas que são testemunhas de um tempo de virada do século, do século dezenove para o século XX, um tempo que o próprio Machado imortalizou, de alguma maneira, no romance Esaú e Jacó publicado no início do século XX. Segundo Granja (2009), não é por acaso que é justamente neste período que suas crônicas tomam um ar de desencantamento, o que coincide, inclusive, com a partida de sua esposa Carolina. Porém, não podemos negar a importância, sobretudo, das crônicas desse período. Um Machado de Assis que a própria tradição literária relegou a própria sorte e que, talvez, por conta disso a tradição escolar tenha apagado dos compêndios escolares, uma vez que temos também poucas notícias, na escola, de um Machado de Assis, testemunha do século XX, que viu a cidade do Rio de Janeiro se transformando em uma belle époque parisiense. A tradição escolar, também, emoldura Machado de Assis em um quadro na parede que fica preso lá no século dezenove.

E se o projeto literário de Machado é devassar a alma humana, mais uma vez, retomando O caso da vara e Mariana, conto inclusive não tão conhecido do escritor, caem como uma luva nesse sentido. Afinal, quem nunca pensou em suicídio por conta de um amor mal-sucedido? É mais uma vez o bruxo nos contando uma história em um período histórico determinado, específico, cujo conteúdo é universal e, por que não dizer, atemporal, que talvez, quem sabe, pudesse se passar em qualquer outra época e ser contada de qualquer outra forma.

É o atemporal e o humano deflagrado, evidenciado pelas questões sociais. Mas será que podemos dizer que Machado era realista por trazer para o bojo dessa discussão questões, necessariamente, sociais que careciam, serem discutidas com certa urgência? Para Lacan (2015), a dita realidade tem estrutura imaginária da ficção. Para o autor, tudo que nos é permitido abordar de realidade “resta enraizado na fantasia”. Trazendo também a questão do tempo para essa discussão, Barthes afirma que o chamado discurso histórico é da ordem do imaginário, recorrendo de ponta a ponta a uma estrutura fantasiosa.

Segundo os compêndios literários, a obra de Machado de Assis pode ser dividida em dois momentos: o primeiro deles relacionado a uma fase mais romântica do escritor cujas obras relativas a esse período são: Ressurreição, Iaiá Garcia, Helena e A mão e a luva. Por sua vez, segundo esses mesmos compêndios literários, as obras relativas à segunda fase do escritor se relacionam com o chamado realismo.

Encabeçando essa lista está Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), tido pela própria crítica literária como um romance inaugural do chamado realismo no Brasil. Para Bernardo (2010), a divisão da obra de Machado em duas fases chega a fazer algum sentido se, porventura, adotarmos um critério de ordem técnica como, por exemplo, os tipos de narrador. Se numa primeira fase, mais romântica, temos um narrador onisciente, consciente de todo o enredo, todo forjado, construído em terceira pessoa, já numa segunda fase temos um narrador parcial, em primeira pessoa, que vai tomando consciência da história, do enredo, praticamente, junto com o leitor.

Porém, tal critério está fadado ao fracasso, uma vez que, segundo o próprio Bernardo, o narrador em primeira pessoa está muito mais próximo, estruturalmente, do romantismo do que do realismo. Enquanto um narrador de terceira pessoa é, estruturalmente, muito mais próximo do realismo do que do romantismo, pensando na própria proposta estética do realismo e do contexto em que, de um modo geral, ele estava inserido. Pensando no próprio advento da fotografia que surgia, naquele momento, como uma possibilidade de captação do real.

O autor também deixa claro que não defende a inversão dos critérios, nem dos narradores. Porém, faz questão de salientar que o critério de divisão da obra machadiana em duas fases nunca foi literário e, sim, cronológico, histórico, tal como tem se constituído o ensino de literatura no ensino médio: a partir de uma linha do tempo. E pensar a literatura a partir de uma linha do tempo não é, necessariamente, equivocado. Porém, é apenas um dos modos que temos para refletir a respeito dessa produção literária especificamente. O fato de a tradição escolar ter por costume refletir a respeito da produção literária a partir de uma linha do tempo, não quer dizer que ela seja a única correta.

Logo, é de primordial importância, trabalhos que insiram a produção literária de Machado de Assis na esteira, propriamente, da ficção porque embora trate de temas sociais em suas obras, inclusive em Memórias Póstumas de Brás Cubas, na qual analisa, sobretudo, as raízes de um país escravocrata como o Brasil, ter um defunto-autor, ou um autor defunto como narrador, como preferirem, não é um traço, necessariamente, realista.

Por isso, talvez seja importante um diálogo de Machado com aquilo que é, a princípio, invisível aos olhos: com o onírico, com a feitiçaria, a cartomancia e o mundo das adivinhações. Porque ainda que Machado flertasse também com o ceticismo, não é à toa que o autor é conhecido pela alcunha de “O Bruxo do Cosme Velho”. E para encerrar a discussão com Felipe Netto, acho super válido um youtuber levantar essa discussão; quantos youtubers a gente conhece com o alcance de Netto, que levanta essa discussão com relação as práticas de leitura? Por outro lado, talvez seja primordial o papel da escola nessa mediação leitora. Se não é a escola para fazer essa mediação, quem fará? Um desserviço, Felipe Netto, seria largar um clássico desse na mão de uma criança sem nenhuma mediação, não acha?

Referências

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Publicado em 01 de junho de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

VILLA MAIOR, Hugo Carvalho. Por que (ainda) ler Machado de Assis na escola nos dias de hoje? – uma resposta para Felipe Netto. Revista Educação Pública, v. 21, nº 20, 1 de junho de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/20/por-que-ainda-ler-machado-de-assis-na-escola-nos-dias-de-hoje-r-uma-resposta-para-felipe-netto

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1 Comentário sobre este artigo

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Fabiola Beatriz de Souza Costa Monteiro • 7 meses atrás

Muito obrigada pelo artigo, professor Hugo Carvalho.
Há muitos "Felipes Nettos" , também na educação, menosprezando o professor que trabalha obras machadianas, que trabalha os clássicos. Uma batalha cansativa, que requer muita determinação e esforço para não desistir.
Foi um prazer ler seu artigo!

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