Pandemia e aula remota: o uso do diário como suporte para o relato de uma experiência

Anelise Monteiro do Nascimento

Pós-doutora em Educação, professora adjunta do Departamento de Educação e Sociedade (UFRRJ)

Rejane Peres Neto Costa

Mestre em Educação (PPGEduc/UFRRJ), professora das redes municipal e estadual do Rio de Janeiro

Registros introdutórios

Há relatos íntimos, de reflexão puramente pessoal, que, com o tempo, se tornam fontes históricas, trazendo detalhes e minúcias que não nos chegariam de outras formas. Essas fontes retratam um período, acontecimentos, um modo de vida, um entendimento sobre as coisas e, também, as tragédias que acometem os seres humanos em suas particularidades. No século XVII, entre os anos de 1664 a 1666, um administrador naval britânico chamado Samuel Pepys, escreveu um meticuloso diário sobre os acontecimentos trágicos ocorridos em Londres nesses anos (Gil, 2005). Esse diário descreve fatos e sentimentos testemunhados pelo narrador em seu cotidiano e causados por uma doença incompreensível à época: apeste bubônica, em um de seus últimos grandes surtos ocorridos na Europa. Em suas palavras: “Regressei para casa para escrever algumas cartas e ir para cama. Mais de setecentas pessoas morreram de peste esta semana” (apud Gil, 2005, p. 19).

Nesse dia, muito contra a minha vontade, eu vi em Drury Lane duas ou três casas marcadas com uma cruz vermelha nas portas e “Deus tenha piedade de nós” escrito lá. Foi uma triste visão para mim, por ser a primeira do tipo na minha lembrança. (Trecho do Diário de Samuel Pepys,1665).

Não fosse tal artefato de registro, não teríamos como vislumbrar de forma tão detalhada a vida de uma pessoa comum diante de uma crise já tão afastada pelo tempo, uma memória extraordinária, como Gil descreve: “Es extraordinário el testimonio que Samuel Pepys dejó de hechos tan trágicos como el incendio de Londres o la epidemia de peste” (Gil, 2005, p. 17).

A escrita deste artigo também é movida pelo desejo que compartilhamos de capturar de algum modo os acontecimentos de um determinado tempo em suas muitas facetas. As primeiras palavras deste texto trazem o relato de uma peste que causou a morte de cerca de 20 milhões de pessoas (Ujvari, 2003), numa descrição pessoal e singular contida em um diário. A escolha por trazer este relato aqui não é em vão. Ela se dá por alguns fatores em comum com os objetos deste texto. O primeiro é o fato de estarmos mais uma vez vivenciando, agora em escala global, uma doença que ameaça a vida de milhões de pessoas. O outro é o olhar sobre uso do diário como fonte de relato e confidência de um tempo. Este texto pretende da mesma forma relatar, com trechos de diários, os acontecimentos que marcaram o cotidiano de uma professora durante a pandemia da covid-19. Ele trata das ações de educação remota instauradas pela Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc/RJ).

Primeiro pensemos um pouco sobre o uso do diário. Ainda que a descrição de fatos e da vida das pessoas seja uma prática antiga, há algumas especificidades no uso do diário como objeto de análise acadêmica. Para Gomes (2004), o diário é uma literatura de escrita de si, que teve a divulgação de sua prática no século XVIII, quando um número maior de indivíduos passou a difundir tal forma de registro. Isso ocorre dentro de um processo em que surgem, na língua inglesa, palavras e conceitos como biografia e autobiografia. Trata-se de uma prática de produção de registros de si que, junto com outros registros pessoais, como fotografias, cartas e objetos pessoais, materializam a história do indivíduo e do grupo ao qual pertence. Para a autora, o ponto central é que, através desta prática cultual, o indivíduo moderno está constituindo uma identidade para si através de seus documentos. Ainda que tais práticas de escrita sobre a própria vida e a de outros sejam antigas, elas encontram significados específicos com o individualismo moderno. Logo, para Gomes (2004), a chave de entendimento destes registros está na emergência desses indivíduos nas sociedades ocidentais. Esse indivíduo moderno postula para si uma identidade singular dentro do todo social, afirmando-se como elemento distintivo e constitutivo do todo. As sociedades modernas têm no individualismo uma base de contrato social, no qual todos são livres e iguais. Isto confere à vida do indivíduo uma grande importância, na qual a narrativa de uma história pode sobreviver como memória de si e dos outros.

Trazendo para a eminência dos significados do tempo atual, o uso do registro privado mudou de sentido, ele é agora compartilhado e muitas vezes em tempo real. Santos e Weber (2014) estabelecem uma relação entre a produção de diários e a cibercultura. Para as autoras, a cibercultura é a cultura contemporânea mediada pelas tecnologias digitais on-line. O diário, para as pesquisadoras, é um suporte de registro do dia a dia do autor e o seu uso pode se dar de duas formas: o material, uma utilização mais tradicional e antiga; e o digital, um uso mais recente e possibilitado pelas tecnologias digitais. O diário on-line permite que esta escrita, antes de uso privado, seja compartilhada, um fenômeno produzido pela cibercultura:

Diários no suporte digital - o suporte digital em potência, nem sempre em ato, permite que o conteúdo do diário seja compartilhado de forma síncrona ou assíncrona. Para interagir intervindo fisicamente na mensagem basta ter acesso a interface on-line. A prática do diarismo on-line é um fenômeno da cibercultura (Santos; Weber, 2014, p. 4).

Outras categorias emergem da cibercultura e são importantes para este relato, como as formas de comunicação e de compartilhamento de textos, que podem ser de maneira síncrona ou assíncrona, conforme explicitadas no texto de Santos e Weber (2014). Segundo Santos Junior e Monteiro (2020), atividade assíncrona é aquela cuja interação entre os participantes – professores e estudantes – não ocorre necessariamente ao mesmo tempo. Nas palavras de Santos:

E chamamos de interfaces de comunicação àquelas que contemplam a troca de mensagens entre os interlocutores do grupo ou da comunidade de aprendizagem. Estas podem ser síncronas, isto é, contemplam a comunicação em tempo real (exemplos: chats, webconferências, entre outras). Podem ser assíncronas, isto é, permitem a comunicação em tempos diferentes (exemplos: fóruns, listas de discussão, blogs e wikis entre outras) (Santos, 2009, p. 5.664).

Ainda pensando nas novas potências de uso do diário, agora como uma possibilidade comunicacional e pedagógica, Santos e Weber (2014) descrevem o uso deste artefato pelo sujeito que aprende enquanto ensina. Neste sentido a busca por tal formato de registro, narrado nesta experiência, se deu ancorado no pressuposto de que ao comunicar-se o sujeito reflete, pois, ao anunciar sua situação é compreendido e compreende, abarcando diferentes fatores envolvidos na aprendizagem. Do mesmo modo, recorro ao meu próprio diário, com registro pessoal realizado na comunicação on-line. O recorte é o diário que passou a ser construído a partir do estabelecimento das aulas remotas em tempos de pandemia que teve como objetivo o registro dos acontecimentos desencadeados pela crise:

O diário de campo é um dispositivo de caráter pessoal que permite refletir e registrar o ocorrido, impulsionando o pesquisador a investigar a própria ação por meio do registro e análises sistemáticas de suas ações e reações, bem como seus sentimentos, impressões, interpretações, explicações, atos falhos, hipóteses e preocupações envolvidas nessas ações (Santos; Weber, 2014, p. 6).

É, portanto, fundamentada no pressuposto de que uma vida conta a história, que tecemos uma narrativa dos acontecimentos do ano de 2020, dentre os meses de março a julho, diante do coronavírus e das aulas remotas em uma escola da rede pública do estado do Rio de Janeiro. Os trechos dos diários digitais de quarentena compõem as vozes que dialogam comigo neste espaço de ser professora em constante formação — porque é só nesse encontro e somente com esses sujeitos que ocupo este espaço, que me faço e refaço professora. E dialogam comigo também como estudante de pós-graduação, que olha para a ações educacionais fomentadas pelo poder público neste momento insólito.

Assim dispositivos são criados e acionados para lidar com as situações da pesquisa aprendendo com o cotidiano das práticas pedagógicas que se constituem também como campo de pesquisa. Neste contexto os diários podem se constituir fecundos dispositivos (Santos; Weber, 2014, p. 6).

Essa narrativa se pauta em uma proposta de atividade remota dadas às turmas com as quais atuo como professora de História. A busca é por apresentar um mosaico de experiências desse período singular em que o país e o mundo tiveram que adotar medidas restritivas de locomoção e aglomeração, na tentativa de conter o avanço da doença e diminuir o número de mortes. Um mosaico que quer mostrar o cenário das atividades propostas para a educação escolar durante a quarentena e de como essas pessoas relatam suas condições de vida, a participação nessas atividades, suas expectativas, anseios ou simplesmente de como se comunicam. Este texto é, portanto, um relato de uma experiência de uma professora que, além de registrar os acontecimentos em suas singularidades e especificidades em seu diário on-line, quer contribuir no exercício de compreensão das ações que se apresentaram para a educação básica pública e de como isso repercutiu para os sujeitos da escola.

Aulas remotas e o registro do cotidiano

É diante das concepções expostas sobre os registros do cotidiano e das possibilidades narrativas que o diário oferece, algumas delas já abordadas neste texto, que foram escolhidos alguns trechos dos diários confeccionados pelos estudantes e de meus próprios apontamentos durante esta atividade, de modo que fosse possível estabelecer um diálogo com outros autores.

Como primeiro contato com os estudantes, propus que pensássemos conjuntamente no que estávamos vivendo. Para refletir sobre o longo processo de habitação do planeta e de nossa história de sobrevivência, tomei como ponto de partida dois eventos que, assim como o atual tiveram grande impacto para a humanidade: a peste de Londres e a gripe Espanhola. Para tanto, gravei um vídeo, disponibilizei uma animação e alguns links que tratam desses dois acontecimentos. A atividade consistia em criar um diário de quarentena, tal como Samuel Pepys fizera no século XVII. Os estudantes iriam narrar o cotidiano, pensando nas mudanças que estavam vivendo por causa da quarentena e também refletindo o que havia de semelhante ou diferente do que leram a respeito das duas outras moléstias. Essa proposta foi recebida com entusiasmo por alguns estudantes, que inclusive demonstraram o reconhecimento desta forma de escrita de si para si:

Querido diário, sei que não é uma regra te iniciar assim, mas sem dúvida é um modo muito legal. Aqui vamos ter uma linguagem bem informal e espero que eu consiga compartilhar esse momento com você direitinho (Thamiris Oliveira, estudante do 3º ano, 10/04/2020)

Querido diário, essa pandemia e essa doença covid-19 mudou completamente a minha vida. No ano de 2020 eu tinha tantos planos, fazer curso, arrumar um emprego, mas deu tudo errado (Isabelli da Silva, estudante do 3º ano, 17 abr. 2020).

Tais produções foram elaboradas por estudantes do ensino médio, de uma escola estadual situada no município de Belford Roxo, e nos encontros e reflexões no ciberespaço que tive ao longo deste período com os docentes e discentes da escola que atuo. Busquei por uma “descrição minuciosa e intimista, portanto densa, de existencialidade, que alguns pesquisadores despojados das amarras objetivistas constroem ao longo da elaboração de um estudo” (Macedo, 2000, p. 195).

Então, vamos reconstruir a história recente através do relato dos diários dos estudantes e dos meus próprios registros. No final da manhã do dia treze de março do ano de 2020, o governador do estado do Rio de Janeiro declarou, em consonância com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que estávamos vivendo uma pandemia causada pelo novo coronavírus (COVID-19) e por isso as escolas seriam fechadas.

Era uma sexta-feira e as escolas estavam funcionando normalmente neste dia. Ainda que nas últimas semanas víssemos pelas mídias a doença passar a matar centenas de pessoas na Europa, isso parecia ainda muito distante do Brasil. Então, naquela sexta-feira, passamos a vê-la como uma ameaça real (Diário da professora, 05 abr. 2020).

O decreto, que foi publicado na sexta-feira, dia 13 de março no Diário Oficial, previa a adoção de medidas de enfrentamento de emergência em saúde pública, quando o Estado do Rio de Janeiro tinha 16 casos confirmados. Santos (2020) propõe uma importante reflexão para este texto com relação aos períodos de crise, de que esta situação é indutora de um autoconhecimento, então, que podemos conhecer melhor uma sociedade e suas instituições em tempos de crise. Tal reflexão nos faz perguntar: que estamos conhecendo/reconhecendo sobre nós mesmos nesse período de crise?

A primeira ação para as escolas, visando a prevenção ao contágio, foi a suspensão das aulas por 15 dias e que mais tarde foi sendo prorrogada até o término do ano de 2020. Mas ao mesmo tempo começou um movimento de cobrança sobre como ficaria o ano letivo, chegavam as informações pelas mídias e jornais das experiências de outros países com aulas em plataformas digitais, e as escolas e universidades particulares se organizavam para atender seus alunos dessa forma. O Conselho Nacional de Educação (CNE), através do Parecer nº 5/2020, se posicionou de forma favorável às atividades não presenciais em todas as etapas da educação, até mesmo a educação infantile, assim, as secretarias estaduais e municipais de educação começaram a organização do atendimento escolar via plataformas digitais.

É importante ressaltar que a Educação a Distância (EaD) é uma modalidade de ensino prevista na LDB nº 9.394/96, com regulamentação própria e voltada para a educação de jovens e adultos, a educação profissional e técnica e o ensino superior. Não é esta modalidade de ensino que foi adotada no período de pandemia, e sim o ensino remoto emergencial, devido à necessidade de afastamento social como medida para conter o avanço da disseminação da doença. As escolas foram fechadas, mas o ano letivo continuou vigente e para dar conta de tal necessidade a rede estadual do Rio de Janeiro adotou as atividades e os encontros on-line para professores e estudantes.

Sem nenhuma normativa publicada em diário oficial ou em formulação de lei, as aulas na plataforma Google Sala de Aula iniciaram-se para a rede estadual de educação do Rio de Janeiro. O Google Sala de Aula é uma plataforma de educação remota assíncrona, utilizada para o ensino a distância por meio de atividades on-line, momentos em que o aluno estuda sozinho. Segundo Santos Junior e Monteiro (2020), essa plataforma de mediação remota foi utilizada durante esse período de afastamento causado pela pandemia da covid-19, uma vez que é uma ferramenta on-line disponível para uso em computadores e em celulares e tablets, por meio de um aplicativo de fácil manuseio. O Google Sala de Aula é da empresa Google e permite que as escolas criem turmas de uma forma personalizada. Essa plataforma, que abriga alunos, professores, coordenadores, direção e supervisão escolar, possibilita o uso de diferentes recursos do próprio Google, como e-mail, armazenamento de dados e dispositivos para elaboração de textos, dentre outros. Na semana do dia 30 de março a 3 de abril, alunos e professores começaram a receber informações de como ativar e-mail e baixar aplicativos para as aulas remotas. O principal instrumento para acesso foram os celulares, por tratar-se do meio mais acessível, segundo relato dos estudantes durante uma reunião pelo aplicativo do Google, o Meet, realizada com a direção, professores e alunos. Situação já verificada por Santos:

Não há dúvidas de que o caminho, ou pelo menos um deles, da educação on-line será pelo celular. Isso mesmo, num país com altos índices de exclusão cibercultural, que é mais que exclusão digital, temos que contar com as tecnologias acessíveis a todos, todas e todos. Aquelas que estão nas palmas de nossas mãos (Santos, 2020).

Para Santos e Weber (2013), os celulares são um artefato cultural, de uso amplo no Brasil, que permitem a conversão dos espaços físicos e dos espaços digitais através da comunicação móvel. Nesse sentido, segundo relatos dos estudantes, foi este o dispositivo mais utilizado para o acesso às aulas remotas, mas ainda assim deixando um número significativo de alunos sem acesso a esses encontros e materiais, por não possuírem dispositivos eletrônicos ou pela falta de acesso à internet.

No dia 6 de abril de 2020 começaram as atividades remotas na plataforma virtual. Na semana anterior as informações dadas eram de que os professores receberiam uma formação para o trabalho, tanto para uso da plataforma, como para estratégias das aulas remotas, o que não se concretizou. As informações que tínhamos do secretário de educação também eram transmitidas vitualmente, através de vídeos postados em redes sociais, principalmente o Facebook.

Tenho sentimentos dúbios com as aulas remotas, ao mesmo tempo que quero me comunicar com os estudantes, sei que o uso desta plataforma é muito questionável. Primeiro pela minha própria inabilidade, não tenho formação para isso, me sinto despreparada para exercer essa atividade. Soma-se a isso a falta de acesso dos alunos (Diário da professora, 09 abr. 2020).

As falas dos professores no grupo de mensagens de WhatsApp, composto somente pelos docentes e direção da escola, era de adesão ao trabalho remoto e de temor de ficarem sem salário, ainda mais os professores que tinham turmas em hora extra. A escola em que trabalho teve uma grande participação dos docentes; somos em torno de 50 professores, destes, somente dois não aderiram ao trabalho remoto na plataforma disponibilizada pela Secretaria de Estado de Educação. Já o acesso dos estudantes à plataforma para as aulas remotas não ficou na mesma proporção de participação. É exemplo disso as atividades dos estudantes que atendo. São um total de 197 discentes em turmas de 2º e 3º ano do Ensino Médio e, destes, somente 70 acessaram a plataforma e enviaram seus registros do diário em tempos de pandemia. E tal número de participação diminuiu ainda mais ao longo da permanência das atividades remotas. Nos seus diários os alunos trouxeram diversas considerações sobre a escola, no que se refere às aulas remotas, escreveram:

A escola faz falta sim no método de ensino, pois a distância não se tem um entendimento do conteúdo e não agrega muito conhecimento, podendo ser até mesmo cansativo, tanto para os professores, quanto para os alunos (Vitor Hugo Rodrigues, estudante do 2º ano, 06 maio 2020).

O ensino está realmente a distância, distância entre o aprendizado e eu (Ana Júlia Botelho, estudante do 2º ano, 14 abr. 2020).

Para que os leitores vislumbrem melhor as condições de vida dos discentes constituintes deste texto, é necessário dizer de onde falamos. A escola em questão situa-se em Belford Roxo, em um bairro afastado do centro da cidade. Este é um município da Baixada Fluminense, na região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro. É uma cidade, segundo dados do IBGE, com grande densidade demográfica (população estimada em 2016 de 494.141 e densidade demográfica de 6.031) e apresenta Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos mais baixos da região em que se encontra. Faço referência a esse quesito por ser o IDH um índice usado pela ONU para medir o desempenho dos países em três áreas: saúde, educação e padrão de vida, dados de dialogam com o cenário que pretendo descrever. O índice é composto por estatísticas de expectativa de vida, alfabetização adulta, quantidade de alunos na escola e na universidade e o produto interno bruto (PIB) per capita. Pensar nestes dados, nos remete à fragilidade das condições de vida da população desta região em condições consideradas normais. Há que se refletir sobre o agravamento dessas condições em uma situação da pandemia, com um cenário de superlotação dos serviços públicos de saúde e da suspensão das atividades de trabalho, um cenário em que as pessoas ficaram sem renda alguma ou tiveram uma diminuição brusca. Santos (2020), ao tratar da narrativa desses espaços/lugares dos invisibilizados, salienta que devemos estar atentos às angústias e aspirações desse cidadão comum.

A pandemia vem apenas agravar uma situação de crise que grande parte da população no país é sujeita, com precárias condições de subsistência. Esse quadro, infelizmente, vivenciado em diferentes lugares do mundo, traduz as enormes desigualdades sociais produzidas por mecanismos neoliberais de grande concentração de riqueza de um lado e de exclusão de outro. Por neoliberalismo entende-se como o processo produzido desde as últimas décadas do século XX de desmonte de uma organização estatal de garantia de direitos sociais a seus cidadãos e consequentemente o acirramento de uma estrutura de exclusão e produtora das desigualdades, para Santos (1998) é a destituição e a negação dos direitos que outorgam a cidadania.

Santos (2020) traz dados da ONU para dar visibilidade a essas desigualdades sociais em escala global, em que 1,6 milhões de pessoas não têm habitações adequadas e 25% da população mundial vive em bairros com construções informais e sem infraestrutura nem saneamento básico, sem acesso a serviços públicos, com escassez de água e de eletricidade. No Brasil, convivemos com tais condições em tempos descritos como normais, a situação que vivenciamos é mais um acréscimo a este cenário precário e desigual, naquilo que Santos coloca:“deve-se salientar que para moradores das periferias pobres do mundo, a atual emergência sanitária vem juntar-se a muitas outras emergências” (2020, p. 19). Nas palavras dos estudantes:

Nossas rotinas, nosso dia a dia, as pessoas estão em desespero, por medo de morrer, pelo desemprego, com medo de não ter o que comer. Mas não é a primeira vez que acontece isso (Francyelle França, estudante do 2º ano, 17 abr. 2020).

Com certeza numa família que se tem um pedreiro e uma diarista a principal preocupação é com a parte financeira, por ter que ficar em casa de quarentena. Vi minha mãe chorar de preocupação no início, isso me doeu bastante. Logo depois tudo foi se acalmando, a patroa dela ofereceu uma ajuda que deu para o básico. Mas do jeito que minha mãe chorou, muitas mães choraram. Eu arrecadei 80 quilos de alimentos não perecíveis para doar (Ana Vitoria Vicente, estudante do 2º ano, 13 abr. 2020).

Essa situação, que chegava aos professores pelo testemunho e até mesmo pedido de ajuda, criou um debate intenso e profundo sobre as condições materiais e de vida dos alunos. Um debate que foi levantado por diversas organizações sociais e mídias frente às enormes desigualdades sociais encontradas no estado do Rio de Janeiro. Passou-se a questionar a validade das atividades remotas, primeiro pela constatação de que para uma parte expressiva de nossos alunos, a urgência se dava na sobrevivência alimentar e de condições de higiene, somado a isso o fato de que uma grande parte dos estudantes não tinha como acessar a plataforma para as aulas remotas por uma limitação de acesso à internet. Segundo dados do IBGE, na região sudeste, em 2018, 84% dos domicílios brasileiros utilizam internet. Desses domicílios com acesso à internet, 99,2% a utilizam através do telefone celular, sendo a principal finalidade a troca de mensagens. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, 20,3% dos domicílios acessam a internet somente através de redes móveis, aqui ressaltamos que esta forma de acesso é mais instável e, muitas vezes, impõe limitações ao uso de dados, o que vem ao encontro do cenário em que, ainda que os alunos tivessem celulares, o acesso à internet é restrito. 

Nas reuniões on-line, com docentes e direção, nos atualizávamos da situação da equipe, professores e demais funcionários e, também, socializávamos o que tínhamos de notícias dos alunos. Nessas reuniões, a direção orientava como deveria ser organizado o trabalho remoto, ficando acordada a seguinte forma: as atividades deveriam ser postadas no dia e horário de lotação dos professores nas aulas presenciais, disponibilizando na plataforma instruções, links, vídeos e materiais que deveriam subsidiar atividades a serem elaboradas pelos alunos. Os professores tiveram também que elaborar seus próprios diários de bordo, contendo informações sobre as aulas remotas, com a descrição das atividades e tempo de execução, que deveria ser igual ao tempo presencial da matéria, sendo este diário encaminhado semanalmente para a coordenação pedagógica da escola. Uma vez que o acesso à internet pelos alunos ocorria de forma precária, as atividades assíncronas foram as mais recomendadas pela direção para serem realizadas pelos professores, já que o aplicativo Meet também poderia ser utilizado para aulas em tempo real. Como os estudantes não possuíam atenção em tempo real dos professores, segundo relatos dos alunos, eles acabavam solicitando o auxílio de seus responsáveis para a elaboração das atividades propostas.

Em um episódio, durante uma reunião com os alunos por série, professores e a direção da escola, os alunos relataram as dificuldades em entrar na plataforma: a falta de acesso ou acesso precário à internet e a falta de equipamentos, muitas vezes um único aparelho celular é o utilizado por toda a família e com acesso limitado à internet. Uma estudante relatou como era complexa a sua participação, explicando que ela tentava, mas estava desestimulada, porque os créditos de acesso à internet acabavam no mesmo dia por causa das aulas, pois diferentes professores colocavam diversos links, vídeos e mídias, como suporte para as aulas.

Não consigo fazer todas as atividades, porque os professores postam muitas coisas, aí quando entro na plataforma minha operadora já avisa que gastei metade dos meus créditos. Não dá. (Gabrielle da Silva, estudante do 3º ano, 19 maio 2020).

Acrescenta-se, também, o pouco conhecimento de muitos professores para lidarem com os artefatos e as interfaces dos dispositivos tecnológicos. Tínhamos muitas questões e uma demanda que se impunha como emergencial e anunciava as aulas on-line como a saída para continuidade do ano letivo. Essa situação se encaminhou em paralelo a um crescente no número de pessoas contaminadas e de mortes pela doença, o que causava, também, muita pressão e desestabilidade emocional em todos os envolvidos.

Quem mais tem saído de casa é meu pai, que tem que fazer comprar e resolver problemas das nossas lojas. Então ele é obrigado a isso, ou teria que fechar as lojas, porém é nosso meio de sustento, e de outras 3 pessoas que trabalham para nós, então não afeta só a gente, e nosso ramo é de padaria, então o funcionamento continua normal. Vamos ver até onde essa quarentena dura, mas espero que não demore muito, pois é angustiante querer sair e não poder, já está fazendo mal pra minha mente, ficar pensando demais na vida e nos problemas, mas é isso, tchau (Yuri Nathan da Silva, estudante 2º ano, 20 abr. 2020).

Outro episódio demonstrou as tensões e pressões apresentadas para os discentes e docentes, ocorreu durante uma reunião num aplicativo com os professores e a equipe da direção, para tratarmos da dinâmica das aulas e da tomada de uma decisão com relação a avaliações de aprendizagem pela plataforma. Neste dia, o diretor da nossa unidade escolar não estava na reunião, porque estava internado por complicações por causa da covid-19 e tínhamos a notícia da morte de um professor de uma escola próxima, vítima da covid-19. Também soubemos, durante a reunião, que alguns alunos estavam passando por condições de privação alimentar e tentávamos nos mobilizar para a aquisição de cestas básicas. O que compartilhamos neste dia foram palavras de conforto e disponibilidade para ajudar os que estavam em maior fragilidade emocional ou material. Nesta mesma semana chegaram os seguintes relatos dos estudantes feitos em seus diários:

Estou me sentindo amedrontada e assustada, com o aumento das mortes e sem expectativa de quando irá acabar esse período delicado que estamos vivendo. Muitos precisam trabalhar, mas foram demitidos, outros estão trabalhando em casa, outros vão para o trabalho, mas com medo de que possam contrair o vírus e passar para os familiares. É realmente assustador tudo isso (Larissa Soares, estudante do 2º ano, 22 abr. 2020).

Hoje estamos vivendo uma epidemia de vírus que está matando milhares de pessoas. E isso está mudando o mundo, as pessoas estão com muito medo de andar na rua, de ir ao mercado, padaria ou em uma farmácia. A minha família e eu estamos com medo de pegar alguma doença e não poder ir ao médico por que tem pessoas lá que podem transmitir o vírus e minha família tem grande chance de passar mal pois meu pai é diabético e as vezes ele precisa ir ao médico e minha irmã ela tem imunidade baixa. Temos que sempre tomar cuidado então a preocupação é maior de encostar em alguém ou ficar sem proteção. O nosso medo também é andar na rua para buscar alguma coisa no mercado e no outro dia acordar mal não podendo tocar na família não poder abraçar e ficar perto (Samara de Oliveira, estudante do 3º ano, 23 abr. 2020).

Santos (2020) aborda a etimologia do termo pandemia que significa: todo o povo. Mas o autor alerta de que ela não se apresenta da mesma forma para todos, certamente ela é diversa para muitas pessoas, como para os trabalhadores informais e autônomos, os moradores de periferias e favelas, os sem-teto, as mulheres e crianças de cada uma dessas categorias, para esses em especial, as condições são bastante preocupantes. Essa situação demonstra a precariedade do Estado para responder a esses conjuntos populacionais que, mesmo vivendo na cidade, não têm acesso às condições proporcionadas pela urbanização. Tampouco o Estado foi capaz de responder às necessidades financeiras que se fizeram urgentes nesse período de afastamento das ruas e dos espaços dos trabalhadores informais.

Essa segregação, que torna os espaços profunda e marcadamente desiguais, já se fazia presente no cotidiano dos indivíduos, mas durante este episódio se mostrou mais dura, com restrições ainda mais penosas e de veto aos espaços de fuga, de compreensão, de abrigo e de afeto, conforme relatado por uma estudante:

Eu já tinha uma rotina de ficar em casa, só era de casa para escola e agora não posso ir para escola, agora não posso ver minha namorada e minha melhor amiga, que eram coisas que eu estava acostumada fazer. Sinceramente, não está sendo tão fácil quanto eu achei que seria. Até eu que já vivia de quarentena não estou aguentando mais (Ana Júlia Dias, estudante do 2º ano, 10 abr. 2020).

Últimas reflexões

A situação que estamos vivenciando com a pandemia da covid-19 faz olhar para todas as mazelas sociais, tão mais nítidas nessa crise. Faz repensar as instituições e a forma como funcionam e para quem funcionam. A teoria faz repensar a prática e, portanto, reinventá-las. Como as democracias estão cada vez mais vulneráveis a interesses particulares e a falsas notícias (Santos, 2020), teremos que imaginar soluções democráticas para serem vividas localmente nas escolas, nos bairros e nas comunidades e em uma educação orientada para a solidariedade e cooperação. Na promoção de experiências que socializarem os conhecimentos e que busquem os caminhos de forma conjunta, e não na competitividade a todo custo.

O diário se evidenciou como uma possibilidade para pensarmos nesse tempo de pandemia e de aulas remotas, com a coleta de testemunhos preciosos dos eventos sociais ocorridos nesse período. As anotações de cunho pessoal narraram uma determinada e peculiar experiência do dia a dia, numa escrita particular e pessoal, mas que nesse momento, em alguns aspectos, parece comum a toda a gente, e em outros revelam nossos abismos sociais.

Os diários que li permitiram que eu, de algum modo, conversasse com cada um dos estudantes que puderam entrar na plataforma e desenvolver a atividade. Contaram o que sabiam sobre a covid-19 e elaboraram explicações e comparações com episódios de outras doenças. Confidenciaram no diário o cotidiano, as preocupações da família e os seus próprios temores, as dificuldades, a saudade e o desejo por dias melhores. Registraram um tempo e a materialidade de suas próprias vidas. Soube de coisas que provavelmente não teriam me contado em situações “normais”, isso me trouxe muitas reflexões (Diário da professora, 25 maio 2020).

O ciberespaço, através da interconexão mundial dos computadores, trouxe grande potencial de comunicação de mídias diversas, jornais, vídeos, fóruns de discussão, podcast, permitindo comunicação síncrona e assíncrona (Santos, 2009). Mas, assim como em outros espaços da cidade, este também é restrito e nem todos podem acessá-lo ou o acessam de forma precária. As atividades remotas permitiram vislumbrar essas diversas condições, narradas pelos estudantes nos diários on-line as suas dificuldades e preocupações materiais e, também, a falta de acesso ao espaço virtual.

Esse afastamento forçado faz olhar para tantos fatores que se colocam para o convívio comum nos espaços das cidades, mas ao mesmo tempo tão afastados nas condições e acessos. Também faz perguntar para quais pressupostos de igualdade estamos baseados. Quais espaços e experiências são comuns nesses espaços urbanos? “A tragédia é que neste caso a melhor maneira de sermos solidários uns com os outros é isolarmo-nos e nem sequer nos tocarmos. É uma estranha comunhão de destinos. Não serão possíveis outras?” (Santos, 2020, p. 7).

A pandemia provocou alterações no nosso cotidiano e nos impôs a sua reinvenção, em meio a uma situação de angústia, medo e perdas. Termino com as palavras de uma estudante para seu diário:

Querido diário, estava aqui pensando agora sobre isso de te chamar de querido, acho que está mais para indesejado diário, considerando que você é da quarentena e eu preferia que nesse momento não estivesse acontecendo. Sem dúvida preferia que você fosse um diário de viagem, mas enfim, só pensamentos (Thamiris Oliveira, estudante do 3º ano, 17 abr. 2020).

Referências

GIL, Xavier Laborda. Linguística y Ciencia Del Siglo XVII, en el Diário de Samuel Pepys. Sintagma: Revista de Linguística, v. 17, p. 5-33, 2005. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=1387161. Acesso em: 15 maio 2020.

GOMES, Angela Maria de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.  

MACEDO, Roberto Sidnei. A etnopesquisa crítica e multirreferencial nas ciências humanas e na educação. Salvador: EDUFBA, 2000.

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SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.

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Publicado em 15 de junho de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

NASCIMENTO, Anelise Monteiro do; COSTA, Rejane Peres Neto. Pandemia e aula remota: o uso do diário como suporte para o relato de uma experiência. Revista Educação Pública, v. 21, nº 22, 15 de junho de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/22/pandemia-e-aula-remota-o-uso-do-diario-como-suporte-para-o-relato-de-uma-experiencia

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