Educação e inclusão: lendo o mundo para além da sala de aula

Cristiane da Silva Brandão

Cientista social e pedagoga (UFRJ), especialista em Mídias na Educação (UFRRJ), em Gestão Pública Municipal (UFF), em Planejamento, Implementação e Gestão de EaD (UFF), em Gênero e Sexualidade (UERJ) e em Orientação Educacional (UERJ), mestra em Educação Profissional e Tecnológica (IFRJ), orientadora educacional na Seeduc/RJ

O trabalho aqui apresentado refere-se à inclusão dos alunos da classe especial nas atividades da sala de leitura e na escola como um todo, compreendendo que a leitura de mundo vai além da leitura de literaturas. A escolha se deu levando em consideração a atuação e prática docente nesse espaço (sala de leitura) em uma escola municipal da Zona Oeste carioca. Sua relevância se respalda por nos fazer refletir acerca de uma classe especial isolada em “seu espaço” e que se limita a um pseudoprotagonismo em datas comemorativas alusivas à inclusão. Desse modo, torna-se mister apreender o espaço escolar como um espaço para todos, e isso não deve se limitar à leitura de palavras nem, muito menos, às deficiências de cada aluno. Assim, o objetivo deste trabalho é discutir a importância da inclusão dos alunos da classe especial nas diferentes atividades desenvolvidas pela escola, bem como a sua integração dentro desse espaço, tendo como referência a atuação da sala de leitura.

Referencial teórico

Ao longo do tempo, algumas discussões surgiram, a partir de uma gradativa transformação política, filosófica e conceitual sobre a concepção de atendimentos e serviços da Educação Especial, levando a repensar essa modalidade de Educação, bem como sua concepção, que trazia em seu bojo muitas contradições. Um breve panorama sobre a Educação no Brasil, sobretudo no que tange aos alunos com deficiências, é realizado por Redig (2010). Nessa abordagem, são discutidos alguns conceitos – como exclusão, segregação e integração – a fim de melhor compreensão do que vem a ser um conceito tão difundido, nos últimos anos: o de inclusão.

Diferentemente do que é preconizado hoje, a Educação Especial possuía uma perspectiva meramente terapêutica e assistencialista até cerca de quatro décadas atrás, ou seja, lançava-se mão do tratamento clínico em instituições específicas, consideradas especializadas para oferecer esse atendimento aos denominados “alunos especiais”. Houve, assim, uma reformulação do modelo educacional, em que a visão de deficiência não seria mais o foco, a fim de propiciar um maior envolvimento da pessoa com deficiência nas práticas educacionais, buscando deixar para trás a exclusão social. Nesse contexto, surgiram as classes especiais em escolas comuns, mas notava-se que a segregação ainda se mantinha presente e a luta da pessoa com deficiência continuava.

Anos mais tarde, após muitas reivindicações, foi criada a política de integração, que tinha a finalidade de inserir o aluno com deficiência no ambiente da escola de forma menos restrita, por meio da preparação desse aluno na classe e escola especiais, possibilitando sua posterior integração em turma comum. Entretanto, ainda era o aluno que tinha que se moldar à escola, isto é, necessitava estar adaptado às metodologias e ao currículo, bem como às condições de acessibilidade, a fim de ser integrado às turmas comuns. Desse modo, não atendia ao que era esperado tanto em relação à aprendizagem quanto à preparação desse aluno para sua inserção social, até porque não havia nenhum preparo do professor nem adaptação da turma para receber esse aluno.

As críticas foram surgindo e, em consonância com a força dos movimentos sociais em prol da igualdade de oportunidades, no final da década de 1980 as reivindicações aumentaram, exigindo a garantia de acesso ao ensino para as pessoas com deficiência, de modo a não haver segregação social ou mesmo discriminação, conforme corrobora o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2015).

Nessa perspectiva, o relato de experiência aqui apresentado está relacionado à inclusão dos alunos da classe especial nas atividades da sala de leitura, e na escola como um todo, para além da leitura de literaturas. A escolha se deu levando em consideração a minha atuação nesse espaço (sala de leitura) e a minha prática docente. Sua relevância se respalda por nos fazer refletir acerca de uma classe especial isolada em “seu espaço” e que só tem um pseudoprotagonismo em datas comemorativas restritas, alusivas à inclusão.

Diante do exposto, torna-se mister apreender o espaço escolar como um espaço para todos, e isso não se deve limitar à leitura de palavras nem às deficiências de cada aluno. Desse modo, este trabalho busca apreender em que contexto se insere a Educação Especial, numa dimensão de Educação Inclusiva, com toda e qualquer particularidade, problematizando assim as relações que se estabelecem dentro do espaço escolar.

Metodologia

O presente artigo constitui-se em um relato de experiência (Lakatos; Marconi, 2010), com abordagem qualitativa (Minayo, 2010), com base em ações desenvolvidas pela regente de sala de leitura em parceria com outros profissionais da Educação. O estudo foi realizado no Ciep Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, localizado na cidade do Rio de Janeiro, e contou com a participação de três alunos da classe especial e de onze alunos com deficiência incluídos em classe regular em turmas distribuídas desde a Educação Infantil ao 6º ano.

Portanto, a pesquisa descreve como se dá a inclusão dos alunos da classe especial e dos demais alunos com deficiência nas diferentes atividades desenvolvidas pela escola, bem como a sua integração dentro desse espaço. Para tanto, lançou-se mão de fontes de evidências como: observação direta e participante e diário de bordo durante o ano de 2018, além de registros fotográficos e pesquisas bibliográficas.

Resultados e discussão

Com a recente política de Educação Inclusiva, uma nova proposta surge, preconizando a real inclusão de todos os alunos em classes comuns, não importando suas limitações físicas, sensoriais, intelectuais e do desenvolvimento para garantia dessa inclusão (Redig, 2010). Sendo assim, a instituição é que precisa se transformar para receber o aluno com deficiência, e não mais o aluno é que deve se adaptar à escola.

Nessa medida, a política de Educação Inclusiva, diferentemente da política de Integração, trouxe uma importante mudança de paradigma em relação à organização da Educação, pressupondo um ensino de qualidade para todos os alunos, garantindo ao aluno incluído sua socialização, a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo. E isso se dá pela elaboração de adaptações curriculares com a finalidade de que os alunos com deficiência também consigam acompanhar as atividades propostas, com base em aprendizagem centrada no sujeito, como preconiza a Declaração de Salamanca (Unesco, 1994).

Diante desse compromisso, durante o ano letivo de 2018 os alunos da classe especial foram inseridos em todas as atividades desenvolvidas pela sala de leitura (Figura 1). O cronograma de cada ação passou a priorizar o atendimento dos alunos com deficiência, garantindo sua participação nas diferentes atividades, tais como: cine-debates, oficinas, atividades culturais, aulas-passeio etc.

Figura 1: Sala de leitura

Ribeiro (2004, p. 106) defende que o espaço escolar “é carregado de significados compartilhados e expressos nas práticas sociais, e isso explica, de certa forma, o descaso que permeia muito dos espaços escolares públicos destinados aos segmentos sociais que têm pouco poder de pressão”. Todavia, a Educação Inclusiva incita-nos a refletir sobre tal negligência, ao passo que compreende que todo o ambiente escolar deve se constituir em espaço educador, favorecendo assim o aprendizado do aluno, ainda que este apresente algum tipo de deficiência.

Dessa forma, oportunamente, uma das atividades marcantes tanto para os alunos da classe especial quanto para os docentes foi uma visita à horta hidropônica (Figura 2), quando foi possível adentrar o espaço superando a dificuldade do uso da cadeira de rodas, que até então era vista como um obstáculo. A exploração de texturas das diferentes verduras e a degustação de alguns alimentos favoreceram a ampliação da fala de um dos alunos, que passou a expor os seus gostos e o interesse por algumas verduras cultivadas na horta escolar. O impacto foi percebido até durante a refeição, quando um dos alunos da classe especial convidava os demais colegas, que adentravam o refeitório, para experimentar a “alface gostosa”.

Figura 2: Vista à horta hidropônica da escola

De igual modo, outro fato que despertou a atenção foi o contato dos alunos com as codornas criadas também dentro do espaço escolar. Proporcionar esse contato, ampliando a exploração de outros sentidos, possibilitou um novo olhar para a classe especial, que tende a ficar confinada à sala de aula, resultando em pouca interação com as demais crianças e os educadores e com o próprio espaço escolar como um todo. Freire (2009), em consonância com essa perspectiva, afirma que a leitura de mundo precede a leitura de palavras.

A preocupação com a alfabetização não deve ser deixada de lado. Contudo, todo e qualquer aluno necessita aprender a ler o mundo ao seu redor, tendo em contrapartida a sua leitura de mundo considerada, e isso não exclui o aluno com deficiência, que pode e deve participar de experimentos científicos (Figura 3).

Figura 3: Evento do Espaço Ciência Interativa na sala de leitura

Na verdade, essa leitura de mundo é dialógica, uma vez que possibilita maior canal de comunicação entre a escola e o educando. Para tanto, a atividade docente “exige que sua preparação, sua capacitação, sua formação se tornem processos permanentes. [...] Formação que se funda na análise crítica de sua prática” (Freire, 2009, p. 19).

A ampliação do espaço escolar, com a aula-passeio (Figura 4), foi mais um fato que se evidenciou nessa experiência. Com a inserção da Classe Especial – e dos alunos incluídos – notou-se um grande desenvolvimento dos alunos, tanto na interação com os objetos de aprendizagem como na interação com seus pares. Ter a oportunidade de propiciar uma visita guiada com linguagem acessível, número reduzido de alunos e participação da família, em espaço não formal, foi bastante motivador, tornando visível a elevação da autoestima desses educandos. Havia, de fato, uma nova leitura, antes não pensada, sendo colocada em foco nesse momento ímpar, reafirmando a inclusão tão desejada.

Figura 4: Visita mediada ao Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB)

Ainda há muito por se fazer, porém ações como essas possibilitam refletir que o conceito de Educação Inclusiva não deve apenas substituir o de Educação Especial. Assim, “parte das lutas e bandeiras da Educação Especial, mas retoma a educação democrática para todos” (Nunes; Saia; Tavares, 2015, p. 1.109). Mesmo diante das dificuldades, observa-se que é possível e necessário que nossas práticas educativas não sejam desconexas de teorias tão atuais para a efetivação de uma educação de qualidade para todos.

Conclusão

A proposta revelou que, embora a família tenha o direito de optar por matricular seu filho com deficiência na classe especial, a escola deve desenvolver ações e elaborar estratégias a fim de integrá-lo a todas as atividades oferecidas, sempre com as adaptações possíveis, sem cerceá-lo estritamente ao espaço da sala de aula ou às datas comemorativas alusivas à inclusão.

Incluir, portanto, implica compreender que todos têm direito a uma educação de qualidade, independentemente de sua condição física ou social. Além disso, é importante ressaltar que a leitura de palavras é importante, mas nada deve superar a leitura de mundo de todo e qualquer cidadão.

Cabe à escola, portanto, buscar meios de ampliar e ressignificar cotidianamente uma Educação Inclusiva que se subscreve como uma educação democrática e humanitária, sem distinção, para todo e qualquer educando.

Referências

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Estatuto da Pessoa com Deficiência. Brasília, 2015.

FREIRE, P. Primeira carta. Ensinar – aprender leitura de mundo – leitura da palavra. In: ______. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho D’Água, 2009.

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de metodologia científica. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.

MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2010.

NUNES, S. S.; SAIA, A. L.; TAVARES, R. E. Educação Inclusiva: entre a história, os preconceitos, a escola e a família. Revista Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 35, nº 4, p. 1.106-1.119, out./dez. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v35n4/1982-3703-pcp-35-4-1106.pdf. Acesso em: 18 mar. 2019.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais Acesso e Qualidade. Salamanca: Unesco, 1994.

REDIG, A. G. Ressignificando a Educação Especial no contexto da Educação Inclusiva: a visão de professores especialistas. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: http://www.eduinclusivapesq-uerj.pro.br/images/pdf/AnnieRedig_Dissertacao_2010.pdf. Acesso em: 25 set. 2018.

RIBEIRO, S. L. Espaço escolar: um elemento (in)visível no currículo. Revista Sitientibus, Feira de Santana, nº 31, p. 103-118, jul./dez. 2004. Disponível em: http://www2.uefs.br:8081/sitientibus/pdf/31/espaco_escolar.pdf. Acesso em: 24 jun. 2019.

Publicado em 22 de junho de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

BRANDÃO, Cristiane da Silva. Educação e inclusão: lendo o mundo para além da sala de aula. Revista Educação Pública, v. 21, nº 23, 22 de junho de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/23/educacao-e-inclusao-lendo-o-mundo-para-alem-da-sala-de-aula

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