Reflexões do pensamento de George Ivanovich Gurdjieff sobre a educação

Esteban Lopez Moreno

Fundação Cecierj e Programa HCTE-UFRJ

Não é uma experiência comum que os assim chamados mestres espirituais deleguem algumas palavras relacionadas à educação, especialmente a contemporânea, ou, quando o fazem, permanecem pouco conhecidas do público leigo. Aqui mestres espirituais serão tratados sem qualquer tentativa de proselitismo; não existe ensejo de convencimento ou de ampla defesa de seu conjunto de ideias, basta-nos apenas reconhecer que alcançaram relevância em seu meio e mantêm, ainda hoje, um grande séquito de discípulos e que possuem algo a nos dizer de um ponto de vista pouco usual. Um desses sábios, ainda modestamente conhecido no Ocidente, é o guru armênio George Ivanovich Gurdjieff (1866/77-1949).

Possuidor de uma fala incisiva e personalidade forte, Gurdjieff por vezes não fazia qualquer questão de ser agradável, em seus textos ou pessoalmente. Era o seu método de “pisar nos calos”. Em entrevistas com seus pretensos discípulos, deliberadamente vestia-se e comportava-se da forma mais desagradável possível para aquele tipo de personalidade com que iria se confrontar, fingindo, por exemplo, ser um mendigo fétido, um malandro inescrupuloso ou um esnobe príncipe russo. Essa era parte da propedêutica gurdjieffiana; ele não estava interessado em seus bons modos ou suas boas intenções, apenas na força da chama de interesse que deveria superar aquela lufada prévia. Se não fosse autêntica e se não resistisse, pouparia o seu tempo e o do candidato.

Não é difícil imaginar que Gurdjieff não manteve muitos discípulos ao longo do tempo; entretanto, cativou de forma marcante alguns escritores famosos, além do casal de músicos e compositores Olga Arkadievna (1885-1979) e Thomas de Hartmann (1885-1956), com os quais colaborou na produção de belíssimas obras musicais, e o diretor de cinema e teatral Peter Brook (1925-2022), que traduziu para as telas do cinema a bela autobiografia homônima de auspicioso nome: Encontro com homens notáveis. Nessa obra, nosso sábio protagoniza seus encontros e desencontros em sua busca inabalável por um saber superior, que regeria ou estava por trás de nossa chamada mecanicidade, termo que usava para se referir às pulsões muitas vezes nocivas que controlam a humanidade. Os textos gurdjieffianos são bastante impregnados por referências mecânicas – além de químicas, biológicas e físicas, refletindo, sem dúvida, seu forte interesse pela ciência da época, ainda que posteriormente passe a questioná-la, mas não como um saber desnecessário, apenas e tão somente parcial.

Foi no livro Encontro com homens notáveis que se narra um dos diálogos de Gurdjieff com dois discípulos de uma fraternidade secreta acerca de duas formas de ensinar. Em palavras simples e sinceras, os discípulos partilharam que “a qualidade do que é percebido, no momento da transmissão, depende, tanto para o saber quanto para a compreensão, da qualidade dos dados constituídos naquele que fala”. Essa qualidade se referia a dois tipos de compreensão: uma que agia apenas do intelecto, enquanto outra agia pelo ser. Tiveram essa constatação a partir dos encontros com dois idosos frades instrutores; um deles ensinava tudo de forma harmoniosa, “crer-se-ia ouvir o canto dos pássaros do paraíso”, de maneira que todos que o ouvissem naquele momento tinham plena compreensão daquilo que ele lhes dizia. Contudo, por ter sido transmitido intelectualmente, em poucos dias, aquele conhecimento se desvanecia até não ficar mais nada. Contrastava-se com um outro professor que não causava quase nenhuma impressão, mas que com o tempo sua essência tomava uma forma mais definida; de algum modo tinha deixado uma marca indelével em suas almas.

Nesses dois estilos pedagógicos está a marca da principal crítica à sociedade: o ser humano está apartado de sua essência e boa parte da educação serve justamente para mantê-la afastada. Dito de outra forma: a personalidade se contrapõe tão imperiosamente ante o desenvolvimento espiritual humano que ela não permite espaço senão para uma abordagem mecânica, demasiadamente rígida e que era exemplificada pelo primeiro preceptor. A fala da alma, por outro lado, parece conduzir a um movimento errático, sem qualquer direcionamento claro, a princípio; entretanto conduz a um conhecimento permanente. É preciso ter cuidado para não se criar sobre esse exemplo um modelo, o que seria contrário à acepção criativa gurdjieffiana. O que se ressalta é sempre o conteúdo da alma, não importa como se manifeste.

Não é preciso dizer que todos nós passamos e exercemos, como professores, por esses dois estilos de ensino. Boa parte das vezes, confessando aqui com os meus botões, não se passa nada além do insosso, do desagradável à alma, ainda que conveniente à estrutura que nos rege. Mas, em momentos de notável inspiração, conseguimos fazer os olhos de nossos discípulos brilharem, elevando os seus sentidos a uma natureza mais íntima e reveladora do mundo. Isso só é possível fazê-lo, no pensamento gurdjieffiano, se ainda houver alma, isso é, se ela já não tiver sido devidamente obnubilada pela personalidade. Ele não guarda palavras muito alentadoras a respeito. Para ele, boa parte da humanidade jaz como mortos vivos (seria esse o motivo de forte interesse dos jovens por filmes de zumbis?), e a personalidade é treinada – e se apraz por isso – a não perceber esse aspecto como um mecanismo de defesa necessário à sua própria sobrevivência. De alguma forma, é bom que seja assim, dizia; por outro, permanece o grande obstáculo ao desenvolvimento evolutivo humano, que é a busca da essência desde cedo apartada. Esta deveria ser a base da educação: ela deveria se pautar não apenas no conhecimento, mas em um estudo sincero e abnegado das causas objetivas necessárias para o desenvolvimento interior.

O primeiro grande obstáculo para o desenvolvimento da alma é o reconhecimento de que ela foi perdida. A carência dessa percepção é parte da enorme canalhice, conforme suas palavras, de nosso mundo. Quase todos acham que estão prontos, que somos seres humanos completos ou, mesmo quando percebem um vazio interior de incompletude, não dispõem de todas as ferramentas e recursos para o cultivo da alma. A personalidade, sempre escorregadia e astuta, se encarrega de inverter as prioridades, pois em última instância é ela quem deve ser sacrificada de seu papel ativo para que a essência volte a florescer. Dito de outra forma: nossa alma se perde toda vez que negamos encontrar mais momentos conosco, em trabalho interior (e longe dos dispositivos eletrônicos!) ou presentes em nossas relações de forma autêntica; reconhecendo as nossas limitações e os dissabores, mas também todas as nossas potencialidades. Essa identificação sincera e dolorida permite que o ser humano aprenda a se colocar no lugar do outro, de forma a compreender o que ele sente e pensa. Na medida em que somos ainda incapazes de possuir essa “consciência moral”, toda vez que projetamos algo nos outros estamos também matando a possibilidade de integração de nossa essência.

Penso que Gurdjieff vai de encontro a muitas posições pedagógicas atuais tidas como libertárias ou emancipatórias, na medida em que o fulcro dessa percepção e atitudes não são conciliatórias, senão por meio da criação de uma visão belicosa e já demasiadamente polarizada. Ainda que defenda que não seja assim em tese, é o que ocorre na prática. Para o sábio armênio caberia muito mais entender as injustiças como parte de um contexto maior da qual pertence o ser humano, não apenas pela sua historicidade, mas principalmente pelos padrões mecânicos que nos regem e dentro de uma perspectiva dos três centros: físico, emocional e mental. Isso de forma alguma reflete no abandono da busca pelo assim chamado desenvolvimento sociocultural, muito pelo contrário; entretanto deve-se buscar, sim e avidamente, as verdadeiras causas das injustiças começando a partir de si próprio para que as “duas extremidades de um mesmo bastão” possam ser reconciliadas. De outra forma apenas substituem-se os atores, que é o que costumamos perceber na educação, na sociedade ou na política ao longo dos séculos. Nesse intento, Gurdjieff ressalta a necessidade da orientação de um mestre espiritual ou de uma pessoa esclarecida, que possa de alguma forma manter-se apartado, por um breve tempo que seja, das correntes avassaladoras das vicissitudes da personalidade.

O pensamento de Gurdjieff é extremamente crítico quanto aos valores culturais estabelecidos pela sociedade e pelos seus representantes. Para ele, “escritores, atores, músicos, artistas, políticos, são, quase sem exceção, uns doentes” (!!!). Eles sofrem de uma “extraordinária opinião sobre si mesmos”, seguida de exigências de “apreciação” e “consideração”. Penso que vivemos tempos mais brandos nesse aspecto, quem sabe, quem sabe… Por outro lado, Gurdjieff se solidariza com o homem simples, que mantém contato com direto com a natureza e passa por vários desafios e, por isso, consegue manter-se mais presente com sua essência do que o homem urbano, por exemplo. Intuitivamente, esse deve ser o motivo, mas não apenas esse, de nosso apreço especial pelos povos indígenas.

Mas Gurdjieff não é contrário à personalidade, muito menos à cultura. A personalidade é parte fundamental e operante do desenvolvimento pessoal; sem ela não seria possível dar nenhum passo, mas ela deveria ser balanceada necessariamente com o cultivo da essência. A cultura é parte fundamental e integrante de nossa cosmovisão de mundo. Dizia-nos que estudar o cosmos e suas leis, seja qual for a sua perspectiva, deveria ser o objeto do mais elevado interesse em nossas escolas ou sociedade. Nossa espécie de alguma forma perdeu esse vínculo com o Cosmos e isso nos tornou uma raça extremamente destrutiva, como nenhuma outra existiu. Ainda que intelectualmente reconheçamo-nos como parte da Natureza, sensorialmente estamos presos ainda à nossa “cauda” individualista e terminantemente afastados do todo. Basta observar a nossa incapacidade de nos guiarmos pelas estrelas ou relacionar o nosso calendário ordinário aos ciclos naturais. Quando muito, mantemos uma relação provisória e insipiente com o tempo e espaço.

Estudar o Cosmos, seja qual for a sua escala, é, em todos os sentidos, libertar-se do egoísmo e da prepotência de nossa espécie, que têm nos sido tão arrebatadores em nossos últimos tempos, com o aquecimento global e a destruição de nossas florestas remanescentes, tangidas pela nossa “mecanicidade” consumista e pela “identificação”. Para que, afinal, precisamos de um celular novo se há muito mais beleza e alegria nas relações pessoais do que usualmente supomos?

A influência gurdjieffiana na pedagogia foi traduzida por Nathalie de Salzmann Etievan (1917-2007), filha de Alexandre e Jeanne de Salzmann, dois proeminentes discípulos, para as escolas com o Modelo Educacional Etievan. O trabalho educacional, nessa perspectiva, visa aprimorar o equilíbrio dos três centros por meio da educação do corpo, da mente e das emoções dos jovens. A partir dessa harmonização é possível potencializar o desenvolvimento de faculdades superiores, como criatividade e espontaneidade, próprias da alma. Sua metodologia passou a ser aplicada com grande reconhecimento em vários colégios da América do Sul (Venezuela, Peru, Chile, Equador e Bolívia).

Para saber mais sobre a obra gurdjieffiana, o melhor excerto de suas ideias encontra-se compilado pelo seu mais dileto discípulo, o escritor russo Ouspensky, em seu livro Fragmentos de um ensinamento desconhecido. Esperamos que traga boas inspirações.

Publicado em 13 de julho de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

MORENO, Esteban Lopez. Reflexões do pensamento de George Ivanovich Gurdjieff sobre a educação. Revista Educação Pública, v. 21, nº 26, 13 de julho de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/26/reflexoes-do-pensamento-de-george-ivanovich-gurdjieff-sobre-a-educacao

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