A consciência na inconsciência do dançar

Ingrid de Melo Labeta

Especialista em Neurociência Pedagógica, graduada em Dança (UCAM), bailarina, ensaiadora, pesquisadora e professora

A dança, à primeira vista, possui sempre a árdua missão de romper barreiras e preconceitos. É no refletir sobre a dança, o ser humano e seus diálogos que a dança permeia e pode chegar. Visando a dança como meio facilitador para o processo formativo do ser humano que este projeto pretende iniciar uma reflexão sobre a consciência e o pensamento crítico por meio da dança.

O processo de criação em dança perpassa uma ideia de definição de ser, embora já o seja em sua plenitude, não existindo qualquer fórmula que possa restringir o seu processo, muito menos a sua contemplação. Defini-la descritivamente como arte talvez seja possível apenas dançando. Reduzir o fazer artístico a uma única forma de criação pode ser condenar o artista ao seu não viver. O estado de criação e o diálogo com seu imaginário expõem uma espécie de comunhão entre meio ambiente e sujeito, uma imersão em seu inconsciente que pode assumir uma materialização mediante a expressão pelo corpo. Dessa forma, o corpo se torna sujeito, objeto e veículo para comunicar aquilo que em um primeiro momento é incompreensível e impronunciável.

A dança como obra de arte torna-se ainda maior que o seu artista-criador, se estende para além dos limites pessoais da existência do artista. Quando é dito que a dança é uma ótima ferramenta para adquirir consciência do corpo – e o é –, pode-se estar falando da compreensão ou organização das próprias emoções e sentimentos – se isso pode de fato ser possível –, tornando o indivíduo consciente de si, evidenciando essa organicidade acima da própria compreensão e da reorganização postural (em um entendimento na sua forma física e mecânica apenas).

É pelo conceito de dança que o corpo pode se expressar, aprender através dele e posteriormente até criar verdadeiras obras-primas. A partir dessa premissa, pode ser possível educar por meio de processos físicos, cognitivos, emocionais e socioculturais, da dança e das experimentações pelo movimento, em que a apreensão e a compreensão daquilo que o cerca são estimuladas, embora já estejam indissociáveis do ser humano.

A expressão através de movimentos acompanha todo o desenvolvimento humano. Por outro lado, é importante refletir o fazer e o pensar na dança como práxis, na maneira como pode construir um planejamento profundo e consciente, bem como a utilização das relações inter e transdisciplinares que permeiam o conhecimento, as habilidades e as competências, além da própria consciência do corpo sobre as individualidades e limitações de cada ser humano.

Deve-se destacar logo aqui que o ser humano é um corpo e através dele é possível aprender. É quase certo que se saiba ou tenha lido algo a respeito de que uma pessoa para aprender a ler e escrever precisa desenvolver lateralidade, coordenação global, coordenação fina, estruturação espacial e de tempo, discriminação visual e auditiva, dentre outros aspectos. Entretanto, o que se faz na dança se não tudo isso?

Para Damásio (2012), a consciência é evolutivamente posterior e intimamente dependente das emoções e dos sentimentos humanos. As emoções são definidas como reações orgânicas, em parte observáveis, ou ainda como conjunto complexo de reações químicas e neurais em face da percepção de um objeto externo ou interno. Os sentimentos seriam, portanto, resultados da percepção dessas emoções e acessíveis apenas na perspectiva pessoal. A consciência surgiria como um sentimento do sentimento, aquilo que seria sentido, percebido e internalizado em decorrência do processo histórico-cultural.

Lukács (2010) aponta que a arte, como outros campos da ciência, é determinada pelo curso de toda a história da produção social em seu conjunto. Karl Marx, em seus Manuscritos econômico-filosóficos (2010), já contribuía para a reflexão sobre a arte como educadora dos sentidos humanos. Como o célebre trecho em 18 de brumário de Luís Bonaparte (2011), dizendo inicialmente que os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, é possível associar diretamente aos estudos do início do século XX, iniciados por Lev S. Vygotsky, que de maneira heurística e científica, constatou que não existe natureza humana apartada do meio. As atividades da consciência humana estão associadas ao meio externo e os seus mais variados estímulos influenciam os processos cognitivos.

Por um corpo vivido através de movimento, afetado pelo seu meio, é possível explorar o mundo que o cerca construindo conhecimentos sobre os objetos, os ambientes e as pessoas que estão em seu entorno, permitindo compreender as relações que poderá ser possível estabelecer com eles e aprender sobre seus limites pessoais e interpessoais. "Somos o que vivenciamos, experimentamos e lembramos"; essa frase, muito presente nas exposições e escritos da professora Marta Relvas, remete à reflexão dessa questão. As informações advindas de canais sensoriais são levadas ao tálamo e reenviadas a áreas específicas do cérebro responsáveis pela elaboração, decodificação e associação das informações. A própria motivação está ligada ao significado do estímulo recebido e percebido; dessa forma, é importante pensar sobre a emoção a fim de tornar a aprendizagem, em todos os seus espaços, cada vez mais prazerosa e, consequentemente, efetiva.

O envolvimento emocional e motivacional acaba influenciando tanto funções cognitivas quanto executivas, e dessa forma as emoções estimulam as funções da memória e consequentemente interferem na aprendizagem. Sabendo que o sistema límbico é um complexo conjunto de áreas interconectadas do cérebro que acabam integrando informações sobre estímulos sensoriais, mnemônicos e planos cognitivos, é necessário atentar para esses fatores que estão intimamente ligados por serem capazes de mudar o comportamento do indivíduo.

O ensino da Dança é enriquecido de uma amplitude que envolve de forma integral o físico, o psíquico, o cognitivo e o emocional. E, de acordo com as ações pedagógicas utilizadas, elas podem permitir infinitas experiências e vivências mediante o movimento integrado às habilidades corpóreas e criativas do indivíduo em seu processo de desenvolvimento cognitivo. A partir dessa premissa, pode ser discutida a dança nos espaços dedicados à Educação, compreendendo os processos físicos, cognitivos, emocionais e socioculturais em diferentes habilidades. Por meio da dança e das experimentações através do gesto e do movimento, a apreensão e compreensão daquilo que está no entorno são estimuladas. Os indivíduos não só podem desenvolver a consciência de si como também um entendimento social e cultural de onde estão inseridos.

Discutir a respeito da dança é também refletir acerca do corpo, das mudanças sofridas por ele, sejam estéticas ou culturais, e das próprias transformações sociais advindas de novos conhecimentos, mudanças de hábitos, tecnologias e tantos outros fatores que podem ser abordados como fatores modificantes do ser humano e, como efeito, também à dança. Observando a evolução biocultural do ser humano, a transformação dos padrões sociais, econômicos e os diferentes contextos em que as manifestações da dança foram adquirindo novas visões e diferentes concepções sobre a arte e o próprio corpo, é possível notar a preocupação sobre o entendimento desse corpo e o ambiente no qual está/estava inserido.

Todo o processamento que envolve e enriquece a dança em seu processo pedagógico ou artístico, sejam motores, cognitivos, emocionais, colabora para o desenvolvimento e o conhecimento do ser humano. A dança se torna um mecanismo a fim de compreender e (re)conhecer a si e ao meio, ampliando a percepção dos estímulos que são ofertados consciente ou inconscientemente. Seja para fim pedagógico, terapêutico ou puramente artístico, a dança se torna a celebração da plenitude, uma vez que oferece uma compreensão de um universo interno e externo.

Konder (2013), fazendo uma analogia entre o pensamento hegeliano e a arte, afirma que a consciência de si pode ser alcançada de duas maneiras: a primeira, através da reflexão, no âmbito da interioridade; a segunda, através da exteriorização, reconhecendo o espírito na representação de si mesmo que se oferece; esta última corresponde ao modo pelo qual a arte adquire essa consciência: por meio da humanidade. Esse autor destaca que a arte pode contribuir para a suavização da “grosseria primitiva dos homens”, mas que objetivando os sentimentos na arte é possível, por vezes, assumir atitudes mais serenas e superar um certo modo cego de imediaticidade. Dessa forma, a arte apresenta evidentes implicações morais; no entanto, ela não seria uma serva da moral. O que será debatido posteriormente é que Hegel enxergava a consciência humana como uma Ideia Absoluta, o Espírito Universal. A “arte aparece como expressão de um estágio já superado da consciência humana em seu caminho para a racionalidade absoluta” (2013, p. 37). A arte estaria, portanto, apenas em um estágio de preparação sensível para o conhecimento filosófico. Ainda de acordo com Konder, Marx entende que o ser humano se afirma no mundo através de uma práxis prático-sensorial, não sendo essa práxis humana concebível sem a atividade dos sentidos.

Para o refletir sobre a produção do saber e o seu compartilhamento que a arte se faz presente para o resultado de uma racionalidade – mesmo que aqui não tenha o intuito de aprofundá-lo –, é necessário retornar à interação do ser humano e seu meio entrelaçado ao seu contexto histórico e cultural. “Os signos são os instrumentos que, agindo internamente no homem, provocam-lhe transformações internas, que o fazem passar de ser biológico a ser sócio-histórico. Não existem signos internos, na consciência, que não tenham sido engendrados na trama ideológica semiótica da sociedade” (Neves; Damiani, 2006, p. 6).

A própria cultura nunca esteve apartada das mudanças ideológicas no decorrer da história. O caso específico da dança não pode ser visto diferente; a exemplo disso há novas perspectivas fazendo com que seja exigida dos trabalhos atuais uma reavaliação de valores e problemáticas anteriormente não imaginadas. Tanto para produto quanto processo, a dança está sendo impactada pelo meio porque o ser humano que a compõe o é, estando consciente disso ou não. Todo conhecimento foi adquirido por meio de um processo de aprendizagem. Uma vez captada a informação pelo cérebro, são extraídas as características sensoriais para ser interpretado o significado até ser emitida uma resposta durante o seu processamento.

Paulo Freire (2015) parece deixar bastante evidente a existência do diálogo entre o meio interno e o externo desde as primeiras palavras escritas no livro Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Em alguns trechos trata de a temporalidade e o se fazer presente no mundo serem possíveis apenas pelos seres humanos, pois, sendo eles seres históricos, são capazes de optar, decidir, valorar e se mover nele. Para a questão específica da consciência, uma atribuição humana, para iniciar a segunda parte do livro, o título "Ação cultural e conscientização" e o subtítulo "Existência em e com o mundo" já demonstram essa interligação que corresponde bem ao pensamento e à ação na práxis que ao longo de suas obras foi desenvolvido o seu pensamento sobre uma pedagogia crítica. De acordo com Freire (2015, p. 107),

O ponto de partida para uma análise, tanto quanto possível sistemática, da conscientização deve ser uma compreensão crítica dos seres humanos como existentes no mundo e com o mundo. Na medida em que a condição básica para a conscientização é que seu agente seja um sujeito, isto é, um ser consciente, a conscientização, como a educação, é um processo específico e exclusivamente humano. É como seres conscientes que mulheres e homens estão não apenas no mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres, como seres “abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora. E é enquanto são capazes de tal operação, que implica “tomar distância” do mundo, objetivando-o, que homens e mulheres se fazem seres com o mundo. Sem essa objetivação, mediante a qual igualmente se objetivam, estariam reduzidos a um puro estar no mundo, sem conhecimento de si mesmos nem do mundo.

Para Vygotsky (1930), a transformação do ser humano se inicia nas relações sociais, e junto com elas – dentre outras, mas em especial – as ideias e os padrões de comportamento irão mudar, pois a personalidade humana é formada fundamentalmente pelas influências das relações sociais. Para o autor, uma mudança no sistema global dessas relações também irá conduzir inevitavelmente a uma mudança na consciência. Engels e Marx (2007, p. 35) deixam explícito que a consciência é um produto social e continuará sendo enquanto existir o ser humano. "Minha relação com meu ambiente – diz Marx – é a minha consciência".

Somente agora, depois de já termos examinado quatro momentos, quatro aspectos das relações históricas originárias, descobrimos que o homem tem também “consciência”. Mas esta também não é, desde o início, consciência “pura”. O “espírito” sofre, desde o início, a maldição de estar “contaminado” pela matéria, que, aqui, se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, sob a forma de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens. Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens. A consciência é, naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio sensível mais imediato e consciência do vínculo limitado com outras pessoas e coisas exteriores ao indivíduo que se torna consciente (Engels; Marx, 2007, p. 34-35).

Apesar de essas reflexões estarem de acordo com o seu tempo – Vygotsky por volta do início da década de 1930 e Engels e Marx em meados da década de 1840 – ambas são bastante assertivas quando refletidas com base em pesquisas atuais como, por exemplo, a plasticidade neural. Através desta, a própria aprendizagem pode ser compreendida como mudança de comportamento decorrente dos processos cognitivos inatos do ser humano e oriundos de fatores biológicos somados à relação com o meio ambiente. A dança não está inserida socialmente apenas como ferramenta capaz de estimular essa interação, a dança é parte dela, e só existe porque os seres humanos existem e foram capazes de cria-la e desenvolvê-la e continua sendo desenvolvida engendrada à sua própria existência. Mesmo que a dinâmica da sociedade não represente uma totalidade simples e uniforme, toda essa mudança capaz de, por vezes, determinar o que é a consciência humana se dá por uma das funções mais significativas do cérebro: a memória. Segundo Relvas (2009), sem memória não há aprendizagem, pois ela é a base de todo saber e de toda existência humana por garantir a individualidade pessoal e coletiva. É necessário destacar que a memória, para além da capacidade de recordar, é a capacidade de abstração, planejamento, atenção e julgamento crítico.

A dança faz parte da cultura e inevitavelmente participa da transformação histórica e cultural numa perspectiva sociogenética, interferindo nas funções cognitivas, sem deixar de levar em consideração fatores do próprio desenvolvimento biológico. Dessa forma, o desenvolvimento histórico, cultural, econômico e especialmente o social acaba proporcionando uma tomada de decisão com base no pensamento abstrato e do raciocínio lógico, como pensamento generalizante, da sua época. A concepção dialógica entre a consciência e a dança está na própria compreensão da sua práxis. A dança, como atividade que dialoga, estimula e pode resultar em diferentes transformações ao relacionar-se com o meio através do qual o indivíduo não só se relaciona com o outro, mas garante acesso à informação e à produção de conhecimentos e saberes, construindo uma visão de mundo, de si e do outro. Permite, portanto, uma compreensão mútua. Esse diálogo é que permite a apreensão e a compreensão daquilo que o cerca como também do seu próprio corpo em relação ao meio. A dança, dessa forma, contribui não apenas para a compreensão histórica e cultural como sociedade, mas também como sujeito consciente de sua própria natureza.

Referências

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. 

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 15ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico de algumas            tendências da estética marxista. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

LUKÁCS, György. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. In: MARX, Karl. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

______. Manuscrito econômico-filosófico. São Paulo: Boitempo, 2010.

NEVES, R. A.; DAMIANI, M. F. Vygotsky e as teorias da aprendizagem. UNIrevista, São Leopoldo, v. 1, nº 2, p. 1-10, 2006.

RELVAS, M. P. A neurobiologia da aprendizagem para uma escola humanizadora: observar, investigar e escutar. Rio de Janeiro: Wak, 2017.

______. Fundamentos biológicos da educação: despertando inteligências e afetividade no processo de aprendizagem. Rio de Janeiro: Wak, 2009.

VYGOTSKY, L. S. A transformação socialista do homem. Varnitso, 1930. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/vygosky/1930/mes/transformacao.htm. Acessado em: 16 dez. 2020.

______; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 10ª ed. São Paulo: Ícone, 2006.

Publicado em 20 de julho de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

LABETA, Ingrid de Melo. A consciência na inconsciência do dançar. Revista Educação Pública, v. 21, nº 27, 20 de julho de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/27/a-consciencia-na-inconsciencia-do-dancar

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