Reinações de Narizinho: análise crítica e política do capítulo “XI – A Rainha”

Laís Bifon Reczcki

Pós-graduada em Literatura Infantil e Juvenil e Contação de Histórias (Fatum/Ampére), licenciada em Teatro (Faculdade de Artes do Paraná), professora de Arte (Seed/PR)

Cleber Fabiano da Silva

Doutorando e mestre em Educação (Univali), graduado em Letras. professor de Comunicação e Expressão e Literatura Infantil na Faculdade de Pedagogia (ACE)

Este artigo foi elaborado com o objetivo de analisar, por meio do capítulo “XI – A Rainha”, de Reinações de Narizinho (editado inicialmente em 1931), a postura literária política e crítica do escritor Monteiro Lobato (1882-1948). Nessa escrita, foram considerados o contexto histórico, os conceitos de nação, socioeconômicos e culturais, as condições do próprio escritor e sua visão sobre essa realidade, além de sua atuação multifacetada como fazendeiro, escritor, editor, tradutor e empresário e seu perfil moderno, positivista e empreendedor. A análise parte das concepções literárias e culturais do autor diante da realidade do país e tem foco no capítulo citado acima, como uma tentativa de compreender que momento político era aquele e como o autor o concebe em suas obras.

É evidente que, ao descrever e criar o reino das abelhas, Lobato se mostra utópico, porém o que intriga é que atualmente, noventa anos após a publicação do livro, é possível se encantar e continuar a idealizar esse reino como se fosse uma saída para as arbitrariedades políticas que se mantêm em nosso contexto político, social e cultural atual.

Além de considerarem-se as amarras políticas e críticas escritas por Lobato no capítulo, também se busca analisar se a literatura é capaz de causar transformações conscientes e reflexivas no cerne do leitor quanto ao assunto, pois, quando ele descreve um formato político tão idealizado e humanizado, é improvável que não cause nada, seja qual for a reflexão do leitor.

Portanto, durante as páginas que seguem abaixo, existe uma extrema necessidade de compreender e refletir o quanto Lobato nos apresenta um reino, ou melhor, uma forma de governo/política eficaz, capaz de promover uma vivência social baseada na igualdade, na justiça e na honestidade com caráter humanizado, que foi suficiente para comover e encantar sua personagem Narizinho. “Narizinho ficou admirada daquelas ideias, e viu que era assim mesmo. ‘Que pena que também não seja assim na humanidade!’” (Lobato, 2005, p.40).

Sobre Monteiro Lobato

José Renato Monteiro Lobato, nome de batismo que mais tarde passa a ser José Bento Monteiro Lobato devido às iniciais do nome de seu pai gravados em uma bengala J. B. M. L., a qual passaria a ser herança. Intimamente, porém, era chamado pelos familiares carinhosamente de Juca. Nasceu em 18 de abril de 1882, na cidade de Taubaté/SP, de uma tradicional família de plantadores de café do já então decadente Vale do Paraíba. Filho de José Bento Monteiro Lobato e Olímpia Augusto Lobato era uma criança que vivia de acordo com sua época, em que nem existia automóvel, nem cinema e tão pouco televisão; era ele mesmo quem inventava seus brinquedos com sabugos de milho, chuchus, panos e qualquer material que lhe viesse à imaginação. Juca passava grande parte do tempo a brincar com suas irmãs, Ester e Judite, e, quando não estava com elas, estava a ler os livros de seu avô materno, o Visconde de Tremembé, que mais tarde assume o papel de tutor dele e de suas irmãs com a morte do pai em 1898 e de sua mãe no ano seguinte.

Aos 18 anos de idade, Lobato já se mostrava muito interessado pela literatura. Foram poucos os volumes literários para criança com os quais ele teve contato na infância, porém foram grandiosos a ponto de suscitar no menino o desejo encantador do mundo da fantasia e seu espírito político e humanizado. Os mais marcantes são relatados por Edgar Cavalheiro em Monteiro Lobato: Vida e Obra: “três obras de Laemmert, adaptadas por Jasen Muller, e dois álbuns de cenas coloridas – O Menino Verde e o João Felpudo. Havia ainda o Robinson resumido e certo livro de narrativas ingênuas intitulado Dez Contos, incansavelmente lidos e relidos” (Cavalheiro, 1955, p. 26). Com esse faro literário, o menino desejava entrar para a Escola de Belas-Artes, mas, por imposição do avô, acabou cursando a Faculdade de Direito, formando-se no ano de 1904. Para entender essa decisão tomada obrigatoriamente pelo avô de Lobato, é preciso entender também o contexto cultural, social e político da época. Descendente de uma família que pregava valores tradicionais e princípios políticos elitizados ainda presentes no século XIX – estamos a falar do neto de um “Visconde”, título de alta importância na corte, pois era sucessor direto do Conde – fica claro que Lobato deveria possuir um papel social e político à altura de seu avô, fortalecendo ainda mais o sobrenome da família, e não lhe cairia bem ser apenas um escritor num país recentemente abolicionista. Esse é outro fator importante na formação social de Lobato, que, mesmo vivendo a adolescência pós-escravidão, não podia negar que era filho de um momento escravocrata na história brasileira, o que o fez ser julgado, em alguns estudos da atualidade, como racista.

Em maio de 1907, foi nomeado promotor em Areias. No ano seguinte, casou-se com Maria Pureza da Natividade, a Purezinha, com quem teve os filhos Edgar, Guilherme, Marta e Rute. Passou a residir no interior, em cidades pequenas, sempre escrevendo e mandando caricaturas e desenhos para jornais e revistas. Em 1911, com a morte do avô, herdou a fazenda de São José de Buquira, para onde se mudou com a família. Lá, escreveu o personagem que viria a se tornar símbolo nacional: o Jeca Tatu. Por volta de 1918, já desgostoso com a vida de fazendeiro, Lobato se entregou à sua paixão pelos livros e comprou a Revista do Brasil. Passou a escrever jornais e abriu sua própria editora, Monteiro Lobato e Cia, que lhe proporcionou a carreira de escritor, dando-lhe o privilégio de escrever e traduzir aquilo que julgava interessante, e de expor sua visão crítica do universo social e político de meados do século XX.

Exemplo dessa escrita que, embora ficcional, apresenta ideais modernos e positivos para a época, é O Poço do Visconde (1937), obra literária infantil que relata, de forma científica, geográfica e política, a existência do petróleo no sítio, através das ideias do personagem central Visconde de Sabugosa, figura criada anteriormente para compor as obras ligadas ao Sítio do Picapau Amarelo.

Pedrinho fez como Lúcia pediu. Arranjou um bom sabugo, ainda com umas palhinhas no pescoço que fingiam muito bem de barba, botou-lhe braços e pernas, fez cara com nariz, boca, olhos e tudo – e não esqueceu de marcar-lhe a testa com um sinal de coroa de rei. Depois enterrou-lhe na cabeça uma cartolinha e lá foi com ele a casa da boneca (Lobato, 2005, p. 47).

Um ano antes, Lobato havia publicado O escândalo do Petróleo (1936), obra que se apresenta como protesto indignado à burocracia federal à entrada de capital estrangeiro para exploração do petróleo. A partir dessas duas obras, já é possível perceber a visão positivista e a grande tentativa de Lobato de apresentar formas de tirar o Brasil do atraso, comparando aos EUA, país que era muito admirado por ele quanto aos avanços modernos e aos pensamentos políticos e econômicos, pois o conhecera bem durante sua estada de 1927 a 1931. Considerando esse engajamento em sua escrita, não se podem analisar suas obras como mera literatura, pois, somado às constantes ações, o literário assumiu caráter político e atuante na construção de uma nova ideologia nas relações internacionais. No pensamento de Lobato, o Brasil tinha muito a oferecer em riquezas naturais e culturais, o capital estrangeiro era bem-vindo para o desenvolvimento industrial brasileiro, mas culturalmente tínhamos que possuir uma identidade própria. Sua luta pelo petróleo brasileiro não silenciou e ele chegou a ser preso em 1941, amando de Getúlio Vargas. Ele esboçou em sua literatura uma nação que só fazia se fortalecer e revigorar cultural, política e economicamente, ao contrário do Brasil República cheio de amarras e ditatorial, que se observa nos governos de Arthur Bernardes (1922-1926) e seus sucessores, bem como no de Getúlio Vargas em seu primeiro governo (1930-1945).

Com grandes reviravoltas em sua vida, Lobato nunca desistiu da literatura engajada e política, mesmo com a falência de sua editora. Em 1925, ele abriu a Cia. Editora Nacional com outros dez sócios e, em 1946, tornou-se dono da Editora Brasiliense. Publicou vários livros: Histórias Diversas, O Saci, Emília no País da Gramática, A Chave do Tamanho, História das Invenções e O Picapau Amarelo, entre outros. Mesmo nessa luta que o deixou desgastado, doente e sem recursos, Lobato se voltou para a literatura infantil; mas, devido a vários desgostos e à perda repentina de seus dois filhos homens, faleceu em 4 de julho de 1948, vitimado por um derrame.

“Ser núcleo de cometa, não cauda”, aconselhava o jovem Lobato, ainda estudante de Direito, a seu amigo Rangel, em carta de 1904. E isso ele sempre foi. Monteiro Lobato pode ser considerado uma das maiores, se não a maior, personalidade brasileira da primeira metade do século XX. Estudioso, polemista, arrebatado, inventivo, foi um homem inquieto, que se lançou de corpo e alma a múltiplos empreendimentos (Silva, 2009, p. 101).

Literatura infantil: Reinações de Narizinho

“Um país se faz com homens e livros”
(Lobato apud Silva, 2009, p. 101).

Para Vera Maria Tieztmann Silva, “a nossa literatura infantil não seria o que é se não tivesse existido um homem chamado Monteiro Lobato, uma das mais fascinantes personalidades que marcaram a primeira metade do século XX” (2009, p. 103). De fato, pode-se aceitar a afirmação da autora: a literatura infantil de Lobato não fazia parte apenas da literatura associada à escola, mas sim do lazer e da imaginação da criança daquela época. Não vinha como uma imposição, mas sim como um prazer, proporcionando um vislumbre entre o real e a fantasia.

O mais interessante de sua literatura não é apenas o prazer que proporcionava, mas também a presença da criança. É fato que, em suas obras, há personagens que realmente agem como crianças, que possuem desejos e qualidades que condizem com seus comportamentos, afinal a criança de Lobato tem suas ideias próprias, às vezes obedientes, outras rebeldes, curiosas, mas principalmente inteligentes e capazes de juízos críticos. É nesse ambiente literário que se percebe a autonomia que ele propõe a essas crianças, mostrando que, desde pequeno, o ser humano pode e deve assumir situações que lhe ampliem tanto o ser quanto o cidadão. Lobato instiga os pequenos a se questionarem e não apenas a brincarem, como também os conduz a um senso crítico de tudo que está a sua volta, indagando sobre sua realidade, buscando solução para os problemas. Talvez seja esse potencial que ele permite aos seus personagens infantis, que prove sua própria visão diante do mundo em que ele mesmo viveu. Sendo assim construiu seus ideais, sejam culturais, políticos e sociais, pois, ao ler suas obras, fica evidente a necessidade de apresentar a importância das experiências para a construção significativa desse ser criança em um ser adulto, capaz de tomar as rédeas de sua própria vida, de maneira crítica e reflexiva.

Constata-se então sua postura inovadora sobre a literatura. Lobato expressa ideias nacionalistas, modernistas, socialistas e revolucionárias, permitindo ao jovem leitor desenvolver um caráter crítico diante da sociedade, assim como ele próprio construiu seu pensamento crítico-político a partir da sua realidade. Ele acreditava que, por meio das crianças, poderia alcançar seu “caminho para salvação”, como disse em carta para seu amigo Godofredo Rangel, pois já estava desencantado de tentar atingir o público adulto. Talvez isso se deva ao fato de o adulto já estar condicionado a diversos maneirismos, muitas vezes encabeçados por um sistema desumanizado e despolitizado, o que torna difícil a ideia de mudança e melhorias.

Eis que surgem diversas obras, mas a principal para o enlace desse artigo é publicada em 1931: Reinações de Narizinho,considerada a locomotiva do comboio, o puxa-fila, em que a história começa. É nessa obra que se conhece Narizinho, Pedrinho, Emília, o Visconde, Rabicó, Dona Benta e tantos outros personagens que vivem diversas aventuras entre o real e a fantasia, entre o problema e a solução, entre o viver e o compreender. Na obra, Lobato descreve inúmeras situações e conflitos vividos por suas personagens, que as levam a buscar soluções e a indagarem suas próprias realidades. Fica forte a importância das experiências passadas por eles, para o crescimento individual e coletivo, que se apoia na construção de personagens reais, como a vovó Dona Benta e a Tia Anastácia, ou fantasiados, como Visconde e Emília, que servem como paralelos entre o certo e o errado ou até mesmo entre o bem e o mal, mas que, de certa forma, são importantíssimos para o crescimento de toda criança. “Mais do que ensinar conteúdos, os livros infantis da turma do Sítio ensinavam os seus leitores a pensar, a questionar, a tirar conclusões...” (Silva, 2009, p. 105).

Todo esse diferencial em sua literatura desenvolve no leitor o senso crítico, por fazer e permitir questionamentos acerca do mundo, da vida e dos problemas sociais e principalmente por dar essa autonomia à criança. Mesmo ao sair do contexto histórico em que foram escritas, essas histórias encantam crianças e leitores de todas as idades até os dias atuais. Suas obras literárias infantis ou não são reflexos de um contexto vivido e indagado por ele mesmo, possibilitando-o expor sua visão do que acreditava ser bom ou ruim politicamente, quanto ao governo, à economia e também à cultura no âmbito das relações sociais e suas organizações. Esses princípios apresentados por ele possuem, de fato, caráter humanizado, tornando o homem mais sensível e próximo de si mesmo, como dos demais.

Análise: "XI - A Rainha"

Em Reinações de Narizinho, mais precisamente no capítulo XI, temos a seguinte escrita, que será utilizada para análise crítica e apreciativa tanto em relação à política da época e seus impactos na atualidade, quanto a seu caráter conscientizado e humanizado.

– Não, senhora! – respondeu a abelha. Nós não temos governo, porque não precisamos de governo. Cada qual nasce com o governo dentro de si, sabendo perfeitamente o que deve e o que não deve fazer. Nesse ponto somos perfeitas (Lobato, 2005, p. 40).

É necessário lembrar o positivismo e o engajamento político que Lobato sempre estimou e acreditou ser de grande importância, principalmente para tornar o Brasil um país rico em todas as instâncias (política, econômica e cultural). Ele era um homem completamente a favor de mudanças sociais e acreditava em movimentos que pregassem a igualdade e a justiça. Havia nele uma inspiração e admiração pelas correntes socialistas e comunistas, pregadas ainda com certo fervor no início do século XX. Para que se entenda essa afinidade, é necessário compreender o que representavam os seguintes movimentos políticos. As expressões "comunismo" e "socialismo" recebem significados nem sempre muito precisos. No socialismo, a sociedade controlaria a distribuição de bens em sistema de igualdade e cooperação. O comunismo, movimento pregado pela teoria do sociólogo, historiador e economista Karl Heinrich Marx (1818-1883), seria um sistema de organização da sociedade que substituiria o capitalismo, implicando o desaparecimento das classes sociais e do próprio Estado, no qual todos os trabalhadores seriam os proprietários de seu trabalho e dos bens de produção. Segundo o marxismo, o “socialismo” é uma etapa para se chegar ao “comunismo”. Ambos os movimentos políticos empregam o ideal de igualdade e o fim da hierarquia.

Diante desse entendimento, percebe-se que Lobato, em suas obras, apresentava o interesse em ambas as correntes políticas, quanto à busca dessa igualdade social. Assim como Bertolino (2019) expõe em seu artigo alguns relatos do discurso de Lobato. Uma de suas falas (por telefone e ecoado no estádio do Pacaembu) – feita inclusive a favor do então candidato à presidência da República pelo Partido Comunista do Brasil, Luís Carlos Prestes, num comício em 15 de julho em 1945 – Lobato deixa clara sua admiração tanto ao candidato quanto aos seus pensamentos e correntes políticas, quando diz que Prestes é “símbolo de mudança social” e que “a nossa ordem social é um enorme canteiro em que as classes privilegiadas são as flores, e a imensa massa da maioria é apenas o esterco que engorda essas flores”. Não contente, ainda pronuncia que, embora tenha nascido em uma classe privilegiada, se envergonha dela e a repudia, pois ela usa de todas as armas para se manter no poder e evitar quaisquer mudanças. 

É com base nesse e em outros dizeres que, ao ler o capítulo XI, nota-se que ele dá à colmeia das abelhas um sistema político, que reforça seu discurso social, positivo e igualitário, transmitindo ao leitor não apenas uma forma de ensinamento, mas uma tentativa humanizada e de mudança social, capaz de tornar o indivíduo um ser crítico e político, assim como ele faz com suas crianças, personagens de suas obras. Lobato dá vida e poder de decisão ao público infantil. Tais decisões devem ser tomadas a partir de problemas e experiências vividas pelas crianças em cada aventura e que as fazem amadurecer e compreender de forma mais humana o mundo em que vivem.

Quando ele retira a decisão de poder das mãos de um único ser, no caso em questão a “abelha rainha”, e o distribui a toda a colmeia, enfatizando que todas, sem exceção, sabem realmente seu papel perante a sociedade/comunidade em que vive, ele, na verdade, aponta que a força política não se faz de maneira centralizada, mas sim de forma coletiva. Porém é claro e também se observa que não é apenas todas as abelhas cumprirem seus deveres, mas principalmente entenderem e compreenderem de forma crítica a importância de cada uma dentro da colmeia. Lobato concede senso crítico a essas pequenas abelhas e as faz ter discernimento político, para que tudo funcione de maneira que nenhuma seja prejudicada e, assim, não afete o bem-estar da prole. Dessa forma, todas convivem harmoniosamente, não pensando de forma egoísta em seu único bem, mas no bem coletivo e nos benefícios que isso gera para a colmeia, como por exemplo, o fato de não existirem nem pobres nem ricos, muito menos doentes, e de todas sempre estarem felizes, diferentemente do reino humano, onde não se sabe como um ser humano pode ser feliz existindo tantos infelizes ao redor.

Outra interessante proposta deste capítulo, além da organização funcional das abelhas, é o papel da própria abelha rainha que, para as abelhinhas, não passa de “mãe”. Provavelmente, o papel dela é semear o coletivo, pois é vista como uma mãe e não como uma rainha que serve apenas para dar ordens. Qual é o papel da mãe na sociedade, senão o de cuidar e ensinar? Talvez seja este o grande trunfo de Lobato para esse reino: estabelecer o papel da mãe e fortalecer os laços familiares, além do senso crítico. Se compreendido atentamente o período em que o autor vive, fica claro como era importante o papel maternal dentro das famílias, de orientação e também carinho. 

A abelha desempenha o papel de conduzir e orientar, e não comandar. Estamos nos referindo a uma política em que o governo está no cerne de cada um, ou seja, essas abelhas são ensinadas a pensar coletivamente, e não há um interesse manipulador, corrupto e nem de enriquecimento, a não ser que seja o bem-estar de todas.

Na própria literatura, temos a presença da vovó Dona Benta e da tia Anastácia, que, embora não sejam as mães das crianças, representam esse laço matriarcal. São elas que estabelecem as regras aplicadas em benefício das crianças e não apenas a si mesmas, agindo como mãe, cuidando dos  horários, da alimentação, dos deveres e, claro, do lazer.

Também existe significativamente a inspiração dos pensamentos do filósofo Jean-Jacques Rousseau, de quem Lobato recebeu relevantes influências, direta ou indiretamente, embora o cite muito pouco em sua obra, entretecida por ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Porém, é no capítulo em análise que vemos a presença de Rousseau.

Em Reinações de Narizinho, Rousseau é citado apenas uma vez, quando uma abelha explica o funcionamento da colmeia às crianças do sítio, falando que cada uma tem o governo dentro de si, e por isso não precisam receber ordens de ninguém. Narizinho associa essas ideias ao filósofo, lembrando-se das leituras de sua avó (Vasques, 2005, p. 2).

Provavelmente essa inspiração de Lobato vem principalmente da obra Do Contrato Social (Rousseau), com a constituição de uma sociedade em que a vontade de todos (ou pelo menos da grande maioria), cidadãos livres, é a autoridade soberana, como acontece na organização da colmeia que as crianças do Sítio do Picapau Amarelo visitam, onde todos conhecem suas funções e não há necessidade de autoridade. Dessa maneira, podemos afirmar o grande desejo que Lobato tinha em criar uma literatura não apenas de entretenimento, mas uma obra literária de caráter formativo, político e educativo, capaz de fluir de forma marcante na formação de inúmeros leitores que dela têm ou tiveram contato.

É excepcional o modo como Lobato descreve esse reino: consciência política, bem-estar coletivo, afetividade, laços familiares, e funcionalidade. Com certeza, o leitor pode se deleitar e fazer dezenas de reflexões quanto a essas indagações, tenha sido ele do século XX ou do contemporâneo século XXI. Coube ou cabe a cada um, com certeza, relacionar essa política/governo com sua realidade, estabelecendo quais são os benefícios e talvez malefícios que possam ser questionados e solucionados através do ideal empregado não só na literatura de Lobato, mas também no seu pensamento social, político e cultural.

Considerações finais

O principal propósito do artigo foi demonstrar uma visão crítica, fundamentada na própria vida do autor, de como há uma influência não apenas em seu modo de pensar socialmente, mas principalmente em seus anseios políticos muito bem definidos a partir de suas vivências e experiências, sejam elas sociais, culturais ou reflexivas quanto a sua realidade. Cabe ainda lembrar que Monteiro Lobato é considerado um marco na literatura infantil brasileira e que seu nome ficou gravado na memória coletiva do país como autor de livros infantis e, de fato, suas obras influenciaram e ainda influenciam seus leitores, devido ao fato de tratarem de assuntos voltados à construção individual ou social dos leitores, sendo então consideradas atemporais.

No Reino das Abelhas, capítulo de estudo, vemos uma preocupação do autor em relação ao trabalho e à construção social de cada abelhinha, que é intensificada justamente por desempenhar papéis importantes dentro da colmeia. Nesse caso, é o trabalho eficiente e focado que se torna capaz de trazer felicidade à colmeia, fazendo não existir mais a distinção entre rico e pobre, talvez considerada por muitos humanos como natural. Todo o produto do trabalho pertence a todos de forma igual, não sendo propriedade particular de ninguém, nem mesmo da abelha mãe, chamada pelos humanos de rainha, ou seja, o que é produzido é para o bem coletivo de todos. Novamente, conclui-se o pensamento de caráter comunista e socialista, muito forte no contexto histórico e social de Lobato. A harmonia desfrutada no Reino das Abelhas em nada se assemelha ao “mundo” humano, local onde, infelizmente, a menina e a boneca vivem.

Portanto, não há anseio algum em afirmar que não apenas este trecho em questão, mas toda a obra, assim como outras literaturas de Lobato conduzem o leitor a um universo de construção crítica, reflexiva e expansiva do mundo. Isso ocorre através de uma narrativa mágica e fantástica, que possibilita ao leitor averiguar diversas soluções para problemas reais. Além disso, sendo produto de determinado momento histórico, determinadas vivências, desejos e projetos do autor, além de instrumento de combate ou afirmação de certas ideologias e meio de difusão de ideais, sonhos e valores, a literatura infantil constitui fonte de grande valia para os estudos históricos, que podem e devem continuar fazendo parte do consciente coletivo, na busca efetiva por uma sociedade de fato humanizada.

Referências

BERTOLINO, Osvaldo. Monteiro Lobato e o Partido Comunista do Brasil. 2019.  Disponível em: https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/osvaldo-bertolino-monteiro-lobato-e-o-partido-comunista-do-brasil/. Acesso em: 11 jan. 2020.

CAVALHEIRO, Edgar. Monteiro Lobato – vida e obra. 2 v. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955.

LOBATO, José Bento Monteiro. O Poço do Visconde. 21ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.

______. Reinações de Narizinho. 48ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2005.

MEMÓRIA VIVA: HISTÓRIA RIMA COM MEMÓRIA. Monteiro Lobato. Disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/mlobato/lobato.htm. Acesso em: 14 maio 2015.

MUSEU MONTEIRO LOBATO. Vida e obra de Monteiro Lobato: primeiras letras. Disponível em: http://www.museumonteirolobato.com.br/. Acesso em: 14 maio 2015.

SILVA, Vera Maria Tietzmann. Literatura Infantil Brasileira: um guia para professores e promotores da leitura. 2ª ed. Goiânia: Cânone, 2009.

VASQUES, Cristina Maria. Descobrindo Rousseau em Reinações de Narizinho. II COLÓQUIO ROUSSEAU – IFCH/Unicamp. Anais... 2005. Disponível em: https://www.unicamp.br/~jmarques/gip/AnaisColoquio2005/cd-pag-texto-15.htm. Acesso em: 08 jul. 2015.

Publicado em 26 de janeiro de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

RECZCKI, Laís Bifon; SILVA, Cleber Fabiano da. Reinações de Narizinho: análise crítica e política do capítulo “XI – A Rainha”. Revista Educação Pública, v. 21, nº 3, 26 de janeiro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/3/ireinacoes-de-narizinhoi-analise-critica-e-politica-do-capitulo-rxi-r-a-rainhar

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