Ensaio sobre a obra “Relato de um certo Oriente”

Lyjane Queiroz Lucena Chaves

Mestranda em Educação (UERR), especialista no Ensino de Língua Portuguesa e Literatura (UERR) e no Ensino de História e Geografia (Faculdade Claretiano), licenciada em História (UFRR)

Considerado um dos grandes escritores vivos do Brasil, Milton Hatoum nasceu no dia 19 de agosto de 1952, na cidade de Manaus/AM. Descendente de libaneses e residindo atualmente em São Paulo, é escritor, tradutor e professor; sua obra mais famosa, Relato de um certo Oriente, foi publicada pela Companhia das Letras em 1988. Outra obra do autor bastante conhecida é Dois irmãos, que já foi adaptada para uma minissérie na Rede Globo de Televisão.

Relato de um certo Oriente se baseia em narrações de uma mesma história a partir de diferentes vozes. Nesses relatos são abordados os dramas, costumes, segredos, infância, cheiros e cores de uma família de libaneses e seus descendentes que moram em Manaus. A obra não segue a ordem cronológica; está sempre indo ao passado: “Outras vezes, naquela manhã, ela brincava com a boneca de pano confeccionada por Emilie”, e presente: “Fiquei tão surpresa com a reação do tio Hakim, que não notara a chegada de amigos de Emile”, o que dificulta a leitura num primeiro momento.

A família retratada na obra conta com a matriarca Emilie; árabe e bastante católica, ela é a base de união da família. Casada com um árabe e muçulmano, cujo nome não aparece, tiveram juntos quatro filhos: Hakim era o filho mais velho, que aparenta ser o mais próximo da mãe, inclusive é um dos três narradores homodiegéticos, parte essencial da história e conversa com sua irmã adotiva. “Tu e teu irmão conheceram Dorner. Não sei se naquele tempo foste aluna dele, mas sabes o quanto era distraído”. A outra filha era Samara Délia, que teve uma filha, Soraya Ângela, que era surda e muda e morreu precocemente num acidente. As duas eram constantemente humilhadas por seus outros dois irmãos “inomináveis”, causadores de brigas e discórdias constantes na família. Além desses filhos, Emilie e seu marido adotaram mais dois, uma que é a narradora principal e seu irmão; durante a história, os dois conversam por cartas, pois ele mora em Barcelona.

Essa filha adotiva de Emilie decide voltar a Manaus para visitar sua mãe e fazer um relato de memórias de sua infância, da casa, da cidade em que cresceu e passar para seu irmão; ou seja, assim como Hakim, ela é parte integrante da família. “Já eram quase sete horas quando resolvi sair de casa. Retirei do alforje o caderno, o gravador e as cartas que me enviaste da Espanha e coloquei tudo sobre minha mesinha de ônix, ao lado do desenho afixado na sala”. Até então podemos perceber que o foco narrativo é contado por vários narradores. Um dia após a chegada da narradora a Manaus, Emilie falece, e sua filha adotiva decide ir em busca da infância e da vida de Emilie para juntar numa espécie de relato de memória e narrar para seu irmão. Para isso ela utiliza de fontes orais, conversando com Hakim, Hindié (melhor amiga de Emilie) e Dorner, um fotógrafo estrangeiro, que lança um olhar sobre a família com base em fotos.

Como a intenção é juntar relatos sobre a família, com destaque para Emilie, destacam-se muitos episódios; podemos citar o suicídio de Emir, irmão de Emilie, narrado por Dorner, “percebi, então, que esquecera a Hasselblad no restaurante, e a apreensão do esquecimento se mesclou à certeza de que Emir não seria encontrado com vida”; há também um conflito religioso interno: “na manhã seguinte, ao passar pela loja, antes de sair para a escola, reparei que meu pai guardava sigilosamente duas estátuas de santo no armário das grinaldas para noivas”; e a vida de Emilie: “na manhã da despedida, em Beirute, ela se desgarrou dos irmãos e confinou-se no convento de Ebrin, do qual sua mãe já lhe havia falado”.

Os lugares privilegiados se alternam entre Manaus e o Líbano; daquele país não são descritos os detalhes, uma vez que o foco é a família, sua casa e sua memória. Também são descritos os personagens secundários, como Hindié, Emir, Emílio, e alguns vizinhos; contudo, são citados fazendo referência à vida de Emilie.

O livro é de narração, mas também possui descrições, pois são descritos com detalhes o passado e o presente dos integrantes da família. O narrador emite opiniões, sobretudo por fazer parte da família e pelo motivo que deu origem ao trabalho, criar um relato de memória sobre sua mãe, “assim, os depoimentos gravados, os incidentes e tudo o que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado”.

A vida de Emilie é sem dúvida a atração principal do livro, pois a partir dela podemos descobrir o cotidiano de uma família estrangeira no Brasil, a infância, o Natal os costumes e tradições, como o uso do narguilé. Mas, mais do que isso, foi possível comparar com nosso cotidiano, com a mistura de culturas presentes no Brasil, com questões familiares –conflitos, dramas, segredos, união e memória – que tem em toda família. Hakim é responsável por apresentar sua irmã adotiva com mais detalhes sobre a vida de Emilie, e ele que encontra um baú que conta a história do dia em que ela ingressou num convento, mas também cartas do passado, vestidos e outros aspectos.

Os relatos de memória dessa família, a partir da vida e morte de Emilie, nos prendem a atenção, pois são descritos com detalhes e embasados em saudades de uma época boa entre os familiares e amigos da matriarca:

Todos se reuniam na copa do casarão rosado, com a exceção de meu pai, que se ilhava no quarto ou ia passear na Cidade Flutuante, onde ele entrava nas palafitas para conversar com os compadres conhecidos, com os caboclos recém-chegados do interior, e depois caminhava até o porto para visitar armazéns e navios (Hakim).

Hakim continua relatando: “antes do amanhecer Emilie me acordava para colhermos as flores do jardim”; “num dos cantos da sala o pinheiro que imitava o cedro estava repleto de penduricalhos e caixas transparentes com presentes embrulhados em papel de seda”.

Podemos concluir, assim, a partir de “Relato de um certo Oriente”, que a história oral é fonte imprescindível na construção de memória; ela nos permite voltar ao passado e, independente de fazer parte ou não dos acontecimentos, é possível adentrar na história, nos relacionarmos com os personagens, sentir os cheiros, visualizar a decoração da casa e do comércio parisiense, com a mistura de toques brasileiros e orientais. É uma obra apaixonante e que, no desenrolar dos acontecimentos, nos deixa curiosos sobre os dramas familiares e as alegrias compartilhadas em uma noite de Natal, por exemplo.

Referência

HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Publicado em 10 de agosto de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

CHAVES, Lyjane Queiroz Lucena. Ensaio sobre a obra “Relato de um certo Oriente”. Revista Educação Pública, v. 21, nº 30, 10 de agosto de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/30/ensaio-sobre-a-obra-rrelato-de-um-certo-orienter

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