Wittgenstein e os jogos de linguagem

José Luís Ferraro

Doutor em Educação (PUCRS), professor dos Programas de Pós-Graduação em Educação (Escola de Humanidades) e Educação em Ciências e Matemática (Escola Politécnica) da PUCRS, professor visitante da University of Oxford (Reino Unido) e da Universidade de Coimbra (Portugal)

Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889-1951) foi um filósofo austríaco que atuou no campo da Filosofia e da Linguística durante a primeira metade do século XX. Sua importância é destacada por sua participação no movimento filosófico denominado “virada linguística” – ou “giro linguístico” –, que possibilitou a aproximação entre as dimensões linguística e filosófica.

A partir disso, a linguagem passa a ser concebida como elemento constituinte da realidade, ao contrário do que ocorria no interior da tradição metafísica, em que se acreditava que as palavras eram apenas rótulos para elementos “reais” que, por sua vez, existiriam, verdadeira e originariamente, apenas em um plano metafísico. Assim, partindo dessa nova/outra maneira de nos relacionarmos com o mundo – agora por meio da linguagem –, compreende-se que a totalidade daquilo que é pensado por nós está estruturado a partir de um sistema de signos; de símbolos que estruturam a língua e a colocam em movimento como linguagem. Logo, o que estaria “fora” da linguagem – sem nome, designação ou forma de representação – se torna inconcebível em uma dimensão do real, o que vai ao encontro da afirmação de Ferdinand de Saussure que sustenta a impossibilidade de qualquer conceito que não possa ser nominado e, portanto, (res)significado.

O pensamento de Wittgenstein está dividido em dois momentos. O “primeiro Wittgenstein” é o filósofo da obra Tractatus Logico-Philosophicus (1921); o “segundo” está marcado pela publicação do livro Investigações filosóficas (1953). Em sua primeira fase, o autor procurou mostrar como – para além da Epistemologia – as relações entre lógica, pensamento e linguagem podem ser utilizadas para construção de representações de mundo. Destarte, o que foi referido por ele como “proposições linguísticas” dotadas de sentido seriam aquelas que, de alguma forma, conseguem espelhar fatos reais, ou seja, capazes de promover uma distinção de fato entre o verdadeiro (representado pelas tautologias) do falso (representados pelas contradições) – esboçando sua “teoria pictórica do significado”, que estabelece um isomorfismo entre linguagem e realidade.

Em sua “segunda fase”, Wittgenstein aponta uma espécie de dissolução da lógica na linguagem, optando pela utilização do termo “jogos de linguagem”. Nessa perspectiva, o significado não seria mais estabelecido pela forma como é proposto conceitualmente, mas pelo uso que se faz das palavras, dos significantes, no interior de determinado contexto. Assim, em múltiplos contextos, a maneira como as palavras passam a ser empregadas é que torna uma série de distintas conotações possíveis – o que se torna perceptível quando afirmamos, por exemplo, que o significado de uma palavra emerge a partir de seu uso na linguagem.

Considerando que as palavras são formadas de signos e que, para Wittgenstein, todo o signo, isolado, é um elemento morto, a ideia de observar a linguagem em movimento é crucial para a compreensão da proposição dos jogos de linguagem. Nesse sentido, não nos caberia perguntar sobre o significado das palavras, mas sobre a multiplicidade de seus usos e, a partir deles, a constituição de múltiplas possibilidades para a própria linguagem como forma de agenciamento da língua com o contingente. Então, nessa perspectiva e de acordo com Wittgenstein, o que costumamos chamar de “a” linguagem consistiria em um conjunto de distintos jogos de linguagem.

O filósofo utiliza o termo jogo porque compara a linguagem a um jogo de xadrez, considerando as palavras como peças do tabuleiro e a escolha de cada uma delas como sendo uma jogada, um lance a ser executado. Para compreender um movimento no xadrez é preciso observar as contingências que levam o jogador a realizá-lo – as situações; isso serve para analisar o emprego de uma palavra em determinado contexto, considerando as especificidades situacionais em que ela foi, é ou será empregada. Disso resulta que cada escolha ou proposição relacionada à linguagem, ao uso de uma palavra em específico, forma um tipo de segmento que corresponde a um “jogo de linguagem”.

Trata-se, então, de considerar, para além do campo semântico, também um certo pragmatismo expresso pela atribuição de um sentido prático para as palavras. Assim, toda linguagem se apresenta como uma atividade – o que remonta em certa medida à relação que Michel Foucault, filósofo francês, estabelece entre o discurso e a dimensão das práticas, neste caso discursivas –, ocorrendo em um contexto de ação em que só aí deve ser analisada. Se para Foucault o discurso regula as práticas, para Wittgenstein diferentes contextos é que acabam por regular as práticas e, portanto, o uso da linguagem: essa é a materialização do agenciamento linguagem-realidade.

Assim, por constituírem diferentes contextos de ação, os jogos de linguagem que se produzem remetem à representação de distintas formas de vida, segundo Wittgenstein, havendo tantos jogos de linguagem quanto formas de vida. Nessa perspectiva da linguagem como atividade, o significado de uma palavra corresponde ao seu lugar, considerando as especificidades do “jogo de linguagem” que a mobilizam.

Quando se tenta compreender determinada escolha ou emprego de uma palavra em específico, deve-se considerar não apenas os sentimentos – os pensamentos que envolvem a tomada de decisão para a sua escolha –, mas as contingências que levaram quem escolheu e a inseriu em determinado contexto a fazê-lo, tal qual o movimento estratégico que caracteriza as formas de jogar quaisquer jogos. Essa comparação surge em Wittgenstein pelo fato de a atividade – assim como o jogo – ser um acontecimento social, em que os jogadores/participantes mobilizam-se ao exercer diferentes papéis, considerando suas respectivas funções, tendo que observar determinadas regras: as regras do jogo.

Nesse sentido, e paradoxalmente, percebe-se a linguagem como um conjunto de regras, ao mesmo tempo que não existe “a” regra, mas uma flexibilização das regras: o que existe são regras em contexto. Por exemplo: um signo que representa uma flecha pode representar muitas coisas, dependendo de uma série de condições e possibilidades de sua representação – em um sinal de trânsito, por exemplo, pode significar outra série de coisas. Com relação à regulação da linguagem ou dos distintos jogos de linguagem, Wittgenstein distingue o que chama de “gramática superficial” (a doutrina da gramática com suas regras oficiais) da “gramática profunda” (que regula a multiplicidade das possibilidades de emprego de palavras ou frases em diferentes contextos). Esta, por sua vez, é a gramática que devota seu olhar e, portanto, seu interesse ao sentido das palavras em múltiplos contextos.

Daí depreende-se que o ideal da linguagem sempre deve ser procurado na própria realidade onde – e como – ela ocorre. Como definir ou explicar, por exemplo, o que é “vida”, “tempo” ou “dor”?Em uma passagem das Confissões de Santo Agostinho (obra escrita entre o final do século IV e o início do século V), ele afirma que, se lhe fosse perguntado “o que é tempo?”, ele saberia esboçar uma resposta satisfatória pelo fato de ter construído as noções de presente, passado e futuro; mas quando pedem para que ele conceitue o tempo, ele não saberia responder. Em que pese a polissemia atribuída aos conceitos de vida, tempo ou dor, Wittgenstein, a partir desse exemplo, chama a atenção de que é o efeito dos jogos de linguagem que nos permite construir uma noção sobre as coisas. É a isso que se refere como sendo a “atividade”e o “sentido prático” da linguagem, já referidos.

O autor afirma, então, que nos comunicamos com base em conceitos vagos e que sua precisão está no uso que fazemos deles. Assim, os jogos de linguagemcomo formas de vida são também modos de produção e condução subjetiva. Existem sujeitos que participam dos mesmos jogos de linguagem, outros não. Nessa perspectiva, não deveríamos perguntar pelo significado das palavras, mas por seu uso em um contexto social. Essa observação como forma de percepção da linguagem tem efeitos sobre as relações sociais, definindo, entre outras coisas, o compartilhamento de significados que define o conceito de cultura; isso viria a ser proposto pelo campo dos estudos culturais.

Com isso, Wittgenstein aponta a diferença entre “significado” e “compreensão”. O significado seria dado pela circunstância – descrição da dor, da vida ou do tempo, por exemplo –, enquanto a compreensão implica o domínio, o saber sobre alguma coisa, que acaba coincidindo com uma espécie de aprendizagem sobre algo. É nesse sentido que refletir sobre os jogos de linguagem também é um convite à reflexão sobre os processos de ensino e de aprendizagem, tendo como foco a perspectiva da esfera comunicacional.

Apre(e)nder os jogos de linguagem é uma outra questão importante a ser debatida. Palavras são fáceis de serem ensinadas; mas como uma criança aprende a dominar os jogos de linguagem? Wittgenstein acredita que a criança não desenvolve esse domínio pela explicação, mas sim pelo adestramento, pelo treinamento; o único jeito para essa aprendizagem seria constituído pela prática. Como explicar, por exemplo, o significado de “regular”, “uniforme” ou “igual” sem desenvolver uma noção prática desses conceitos? Assim o adestramento, o treinamento pode se valer tanto de práticas verbais quanto não verbais.

Uma criança pode compreender palavras ou frases que nunca ouviu quando inseridas em um contexto, acompanhadas de algum gesto ou imagem. Wittgenstein afirma que a maior parte de nossa experiência como falantes e ouvintes se dá por meio de novas palavras e frases, o que denota a faculdade e o potencial criativo da linguagem. A partir da experiência do real, do contato com novas/outras situações contextuais, a criança usa sua intuição de diferentes maneiras, empregando assim diferentes palavras na resolução de sua comunicação. O jogo da linguagem, assim, só é dominado quando jogado, lembrando que uma pessoa pode aprender, por exemplo, as regras de um esporte qualquer simplesmente acompanhando uma série de partidas, observando os gestos de jogadores, árbitros e como reagem os demais envolvidos.

A partir disso, percebe-se que as formas de vida se constituem como a totalidade de práticas em uma comunidade linguística, e exatamente por isso é que essas maneiras distintas de representação correspondem aos jogos de linguagem. Tais jogos podem ser representados como o estudo das formas de (aquisição da) linguagem. Em muitos casos de suas formas primitivas, é como as crianças que aprendem a ir usando as palavras e começam a adicioná-las a seu vocabulário, observando adultos falando e as situações em que empregam certas palavras.

Wittgenstein permite refletir sobre o uso da linguagem em múltiplos contextos educacionais. Nesse sentido, a discussão torna-se pertinente a uma reflexão por parte dos docentes que, ao ensinar, operam fundamentalmente com a dimensão linguística, independente de área ou disciplina das quais são provenientes ou se inserem. Assim, considerando o que foi exposto até o momento, os jogos de linguagem em Wittgenstein constituem um conceito relevante nos processos analíticos de uma linguagem viva em situações contextuais que nos conduzem a considerar seu sentido prático em que está mobilizada; encontra-se em movimento pela atividade própria da linguagem.

Referências

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SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2008.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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ZILLES, Urbano. O racional e o místico em Wittgenstein. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.

Publicado em 10 de agosto de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

FERRARO, José Luís. Wittgenstein e os jogos de linguagem. Revista Educação Pública, v. 21, nº 30, 10 de agosto de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/30/wittgenstein-e-os-jogos-de-linguagem

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