As Oficinas Dialógicas de Linguagem Musical como forma de promoção da saúde na Comunidade da Maré

Victor Ramos Strattner

Bacharel em Musicoterapia (Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro), especialista em Ciência, Arte e Cultura na Saúde e mestre em Ensino de Biociências em Saúde (Fiocruz), membro do Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino de Bioprodutos (Liteb) e do Núcleo de Estudos Arte, Cultura e Saúde (Neacs/Instituto Oswaldo Cruz)

Adrielle Fernandes

Graduada em Biomedicina (UFF), mestranda em Ensino de Biociências em Saúde (Fiocruz), membro do Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino de Bioprodutos (Liteb) e do Núcleo de Estudos Arte, Cultura e Saúde (Neacs/Instituto Oswaldo Cruz)

Christiane Moreira

Licenciada e bacharel em Letras (UFRJ) e em Dança (Faculdade Angel Vianna), especialista em Ciência, Arte e Cultura na Saúde (Fiocruz), membro do Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino de Bioprodutos (Liteb) e do Núcleo de Estudos Arte, Cultura e Saúde (Neacs/Instituto Oswaldo Cruz)

Nathalia Sena Sassone Perrone

Graduanda em História (UNIRIO), bolsista Pibic, membro do Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino de Bioprodutos (Liteb) e do Núcleo de Estudos Arte, Cultura e Saúde (Neacs/Instituto Oswaldo Cruz)

Márcio Luiz de Mello

Doutor em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), antropólogo e professor da especialização em Ciência, Arte e Cultura na Saúde (Instituto Oswaldo Cruz), membro do Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino de Bioprodutos (Liteb) e do Núcleo de Estudos Arte, Cultura e Saúde (Neacs/Instituto Oswaldo Cruz)

Este texto apresenta resultados de uma pesquisa sobre a relação da Música com a Promoção da Saúde, haja vista que se percebe ainda a prevalência de um modelo centralmente biomédico no campo da saúde (Mello, 2016). Assim, a pesquisa da qual ele decorre teve como objetivo analisar a interface entre música e saúde em oficinas de música, dando importância ao conceito ampliado de saúde que leva em conta o bem-estar físico, mental, social e espiritual a partir da criação coletiva da Oficina Dialógica de Linguagem Musical (ODLM). Aqui tentamos promover uma articulação teórica e prática entre a Art-Based Researche o fazer musical em conjunto, além de realizar o fazer musical como elemento para a Promoção da Saúde e o Autocuidado (Fragelli, 2008), investigar o perfil dos alunos do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) por intermédio das conversas e observar os processos performáticos em música e sua produção de dados para a pesquisa.

A pesquisa retrata a experiência das oficinas com jovens de 14 a 17 anos no CEASM e que estão na faixa etária de estudantes do Ensino Médio e que são estudantes das escolas da região, preparando-se para o Enem. Para analisar os dados produzidos nas oficinas, gravamos as conversas, transcrevendo os diálogos, tendo como metodologia de construção dos dados as conversas com a juventude (Souza et al., 2019).

Nossa abordagem metodológica é também a Art-Based Research, nela a pesquisa em questão é vivenciada por intermédio da performance artística (LEAVY, 2015), colocada em prática nas oficinas realizadas. A realização se deu no segundo semestre de 2019 e se direcionou às diversas estratégias de Educação Dialógica, uma vez que aliam a informação científica ao fazer artístico, fazendo com que, por meio do estímulo afetivo e sensorial proporcionado pela experiência artística, os Participantes desenvolvessem outra percepção dos elementos trabalhados nas oficinas.

Através dos exercícios de sensibilização musical, os participantes vivenciaram, por intermédio de um viés sociocultural, o estabelecimento de uma vivência plena do conceito ampliado de saúde, assim como do conceito da saúde sentida, que, segundo Nutbeam (1996), é “a interpretação que a própria pessoa (Participante) faz de suas experiências de saúde e seus estados precários de saúde no contexto da vida diária” (p. 401).

O nosso arcabouço teórico leva em conta o estado positivo de saúde no qual, a partir do fazer musical, podemos experienciar outros modos de ser e estar no mundo, o que possibilita a partir da sensibilidade com que os indivíduos reflitam sobre o modo como "sentem o mundo à sua volta" (Téliz, 2012). Para tal, enfatizamos uma indagação mais profunda de cunho filosófico sobre dois pontos: como podemos ser mais criativos na pesquisa e como ocorre o processo criativo (McNiff, 1998).

Ao compreender o fazer musical em si como performance, este torna-se dado da pesquisa, expandindo assim, as alternativas de uma pesquisa acadêmica ao olhar um mesmo fenômeno de diversos ângulos, do mesmo modo que promove meios de comunicação mais criativos, levando-se em conta cada caso investigativo, o que foi possível a partir das conversas.

Vale frisar (Leavy, 2015) que a música ainda não é muito utilizada na pesquisa social como um procedimento, mas a autora sugere que, a partir dos conteúdos ora discutidos, as capacidades únicas da música enquanto método de pesquisa possam ser mais exploradas.

Referencial teórico             

A Promoção da Saúde leva em conta fatores sociais, psicológicos e culturais que colaboram não só para prevenir a doença, mas para propiciar a qualidade de vida de indivíduos, bem como de grupos sociais (Czeresnia; Freitas 2003).

Nesse contexto, a partir da problematização do conceito mais primitivo de saúde, que é, resumidamente, não estar doente, a Promoção da Saúde passou a preconizar que a saúde não era mais ausência de doença. Nela considera-se importante desenvolver o próprio potencial e responder de forma positiva aos desafios do ambiente.

Segundo Oselame (2014), a Promoção da Saúde se apresenta atualmente como uma possível implantação de uma política transversal. É a partir desta lógica transversal que a Música se apresenta como terreno fértil, visto como uma zona híbrida sendo um espaço de criação tanto de novas formas de ser e de estar no mundo, quanto de experimentar formas de produção de outras sonoridades e como estas podem contribuir para a promoção de saúde dos indivíduos.

O educador musical Marco Téliz (2012) faz uma analogia da música como um veículo de promoção da saúde devido ao fato de possuir a capacidade de expandir o conhecimento, o que os torna mais adaptáveis às dificuldades do viver. O autor cita cinco princípios fundamentais em sua tese para qualquer proposta de utilização da música em programas de promoção da saúde, das quais aqui enfatizamos três. A primeira delas diz que “a prática deve sempre anteceder a teoria [...]. Só se lê ou escreve o que já foi cantado” (p. 26). Essa afirmação nos traz à reflexão de que se conseguirmos falar certa frase musical conseguiremos tocar, contanto que haja algum engajamento no instrumento musical. Já na segunda, o autor diz que “todas as formas de expressão humana (palavra, corporalidade, artes em geral, etc.) devem ser inseparavelmente integradas ao fazer musical” (idem). Dessa maneira, o instrumento deve ser encarado como uma extensão do próprio corpo do instrumentista, na qual a lógica da emissão do som é pensada de dentro para fora. A terceira, por sua vez, diz sobre a "valorização" dos processos de aprendizagem mais que dos resultados” (idem).

Os princípios de Téliz (2012) coadunam-se com a proposta da Art-Based Research (McNiff, 1998; Leavy, 2015), os quais valorizam mais o que acontece nas relações entre as pessoas e nas intervenções feitas por elas do que um resultado almejado independentemente de tais interferências.

Considerando tais questões, a definição da Art-Based Research, segundo Leavy (2009), consiste em

um conjunto de ferramentas metodológicas que [por meio da arte] incentiva as mais diversas expressões dos Participantes, sendo usada por pesquisadores qualitativos, entre as disciplinas durante toda a fase da pesquisa social, incluindo a coleta de dados, análise, interpretação e representação (Adaptado de Leavy, 2009, p. IX, prefácio).

As Oficinas Dialógicas de Linguagem Musical se basearam nestes princípios bem como naqueles de Educação Dialógica. Uma de nossas principais referências musicais, no que diz respeito à oficina proposta, é a Oficina de Linguagem Musical (OLM), que foi criada pelo educador musical Luis Carlos Csekö. A OLM de Csekö (1970) se posiciona em contraponto ao alijamento do processo de criação, à ausência de procedimentos contemporâneos experimentais e à abordagem mecanicista encontrada no campo da Educação Musical tradicional.

O nome oficina coloca-se como possibilidade de maneira mais ampla do que uma aula a partir da perspectiva da educação não formal (Gohn, 2007), ou seja, que ocorre fora do sistema formal de ensino, sendo complementar a este e por isso os resultados não precisam ser avaliados sob os mesmos princípios avaliativos que norteiam a educação formal.

Em consonância com os princípios da Educação Dialógica materializados no pensamento de Paulo Freire (1983; 1996) sobre a importância da autonomia do educando, ressaltamos que a oficina teve por intenção atingir em seu planejamento de formato os princípios adotados pelo autor.

Ressaltamos na oficina a importância da curiosidade (Freire, 1996), visto que a partir dela podemos desenvolver a criatividade e, dessa maneira, colocarmo-nos, impacientes, nos termos freirianos, diante do mundo que não fizemos, mas ao qual podemos acrescentar algo que fazemos a partir da constante ação-reflexão-ação (p. 32).

Postulamos a oficina proposta no decorrer da pesquisa como dialógica por estarmos em consonância com tais ideias de Freire (1983; 1996) e Csekö (2017) acerca de que o processo educativo é compreendido a partir do diálogo entre os saberes e os pares que os produzem, estabelecendo uma relação horizontalizada entre o educador e o educando.

Metodologia                

Segundo Dewey (2010), a experiência vivenciada se torna consciente quando os valores que acontecem no momento presente são extraídos de aspectos presentes na imaginação. Assim, pesquisadores que se utilizam da metodologia da Art-Based Research interrogam-se mais sobre o que a arte proporciona em processos de pesquisa, criando meios de comunicação sob um espectro mais inteligente e criativo (Leavy, 2009). Essa metodologia considera o fazer artístico como forma de conhecimento que possibilita significado por si só; isso quer dizer que nem sempre necessita de explicações verbais prévias sobre o fenômeno estudado (McNiff, 2014).

Como Leavy (2015) sinaliza, precisamos nos indagar como a música poderá servir para aprofundar um determinado tópico e em que área vamos buscar subsídios teóricos, assim como se a ênfase será em aspectos educativos, como, por exemplo, aprender um determinado instrumento, ou da própria performance como possibilidade de criação de "dados" de pesquisa.

Vale ressaltar que, para McNiff (1998), a possibilidade de ficar absorvido na experiência artística é considerada um ponto fraco da ABR, por isso ele aconselha a concentração na autoexpressão como um veículo de pesquisa e não como o principal objetivo. Dá ênfase para a ideia de que todas as pessoas realizam atividades criativas, visto que, em suas palavras: “a questão do talento é a maior defesa contra uma expressão mais livre” (p. 54).

É importante destacar que no caso da pesquisa em música torna-se necessário que o pesquisador tenha certo domínio da habilidade técnica dos instrumentos musicais escolhidos, visto que essa habilidade pode afetar os resultados, no que diz respeito ao engajamento dos participantes. McNiff (2003) dá exemplos de como a arte pode nos ajudar na interação com outras pessoas a olhar o mesmo objeto de estudo sob um novo ângulo, possibilitando assim formas originais de se trabalhar um determinado tipo de problema.

Materializamos então estes princípios da Art-Based Research em oficinas, as quais denominamos Oficinas Dialógicas de Linguagem Musical (ODLM), realizadas no Centro Educacional e Ações Solidárias da Maré, que fica situado no bairro de mesmo nome, na cidade do Rio de Janeiro. O curso oferecido pela instituição geralmente disponibiliza 150 vagas para os moradores. O público-alvo são pessoas entre 15 e 18 anos da comunidade.

No que diz respeito às práticas da ODLM, realizamos quatro oficinas nas quais focamos nas duas primeiras nos exercícios de sensibilização musical e nas duas últimas a relação entre imagem e música e memória afetiva a partir das músicas escolhidas pelos participantes nos períodos da infância (Piaget, 1975) e adolescência (Erikson, 1972). Na construção das últimas duas oficinas, organizamos o planejamento respondendo a partir das perguntas de McNiff (2008): Quais tópicos que se quer explorar? Como o pesquisador fará isso? Por que fazer desse modo? Como será útil para o pesquisador e para as outras pessoas?

Nas quatro oficinas, demos ênfase ao processo de investigação (McNiff, 1998) a partir da construção dialógica com os Participantes e ao estabelecimento de uma relação entre imagem visual e música (Austin; Forinash, 2005). Na primeira e na segunda oficina, e identidade sonora (Benenzon, 1995) na terceira e quarta oficina. Dessa maneira, a partir das atividades propostas, pode-se estabelecer uma analogia com um ponto importante que McNiff (1998) reflete, ou seja, de que a maioria dos profissionais artistas ainda não consegue ver os diálogos entre investigação artística e pesquisa formal.

Todas as quatro oficinas foram gravadas, optamos por utilizar o recurso tecnológico da gravação em vídeo com o intuito de captar momentos importantes da oficina, que pudessem passar despercebidos, bem como ter a possibilidade de ouvir diversas vezes a fala dos Participantes e analisar os dados (Amador, 2011; Pinheiro, Kakehashi; Angelo, 2005).

A partir da conversa com os quatro participantes, escolhemos trechos que dialogassem com a interface entre música e saúde, comentado a partir do referencial teórico. No que diz respeito ao procedimento de coleta de dados, também optamos por realizar uma conversa com quatro Participantes diferentes (Souza et al., 2019). Por conta de questões éticas, optamos por não nomear os participantes, sendo denominados Participante 1, 2, 3 e 4. Na análise, trouxemos recortes das conversas sendo analisadas à luz do referencial teórico adotado.

Das quatro oficinas propostas, foram realizadas três no CEASM e uma no Museu da Maré. Essas oficinas foram divididas em exercícios de sensibilização, trazendo aspectos teóricos a partir do diálogo com os participantes e a prática musical em conjunto. As oficinas tinham uma diretriz, assim como uma abertura para redirecionamento a partir dos diálogos que eram estabelecidos junto com os participantes.

 Descrição e análise dos dados            

No recorte dado aqui, é preciso sinalizar que optamos por trazer a análise das (e sobre) as conversas feitas com quatro dos jovens Participantes da pesquisa.  A justificativa para a escolha dos referidos estudantes foi porque, ao termos observado que dentro de quatro, dois estudantes participaram mais das atividades enquanto os outros dois participavam menos. Por tal razão, foi possível observar uma nuance bem variada de percepções sobre as oficinas a partir da ótica dos estudantes. Outra intenção importante das conversas foi buscar compreender quais irrupções, a partir da leitura dos jovens, era possível, entre a ABR, a vivência musical e a promoção da saúde. Para fins de esclarecimento, traremos quatro trechos de quatro participantes diferentes para esta análise.

O Participante 1 relata que, a partir das imagens, conseguiu ouvir as crianças brincando de ciranda. Esse depoimento foi o mais relevante dentre as quatro conversas realizadas porque foi possível perceber uma possibilidade imaginativa nesse participante. Nesse exercício de conversa, o Participante conseguiu trazer uma imagem na qual é possível perceber a materialização de uma cena, pode-se dizer, musical. Confirmando que a partir das imagens consegue ouvir as crianças brincando de ciranda.

Nesse trecho, temos a confirmação do Participante 1, de que a oficina abriu uma nova possibilidade mesmo que tenha respondido com dúvidas.

Pesquisador: Você acha que a oficina abriu uma nova porta, uma nova possibilidade para você?

Participante 1: Sim, eu acho que sim.

No momento em que perguntamos sobre a oficina ter possibilitado a abertura de novas portas, o Participante 1 relatou que gostou muito de aprender a tocar percussão e que as informações ligadas à música como forma de Promoção de Saúde foram algo novo e incomum.

Pesquisador: Interessante. E com relação à saúde, você pôde entender essa relação que a música pode trazer saúde também para você, depois da oficina? Assim, ajudou a ter esse pensamento?

Participante 1: Ajudou um pouco, mas eu não entendi muito, assim, a relação.

Essa pergunta foi elaborada com o intuito de entender o porquê de o Participante 1 não demonstrar interesse nos exercícios de sensibilidade musical, mas já na parte prática sobre os ritmos brasileiros ter tido maior interesse. Foi possível, a partir da conversa, compreender que a pouca participação do Participante 1 se deu pelo fato da parte teórica não ter feito sentido para ele, em outras palavras, podemos dizer que ele não entendeu muito bem a relação entre música e saúde.

Quando foi perguntado o que achava sobre música e saúde, e se a partir dos exercícios teve alguma emoção específica a relatar, respondeu que vivenciou apenas como um momento bem-estar, como demonstrado a seguir:

Pesquisador: E você sentiu alguma coisa, assim, diferente durante a oficina? Algum tipo de emoção ou algum aprendizado específico? Ou foi mais, assim, só um momento de bem-estar?

Participante 1: É, foi só um momento.

Nos chamaram a atenção as respostas rápidas e sem muita elaboração do Participante 1, o que pode sinalizar uma dificuldade de aprendizagem, desinteresse ou, como já foi mencionado, uma possível dificuldade em compreender o que estava sendo realizado.

Pesquisador: E você ficou com que instrumento, você lembra? Foi percussão, não foi?

Participante 1: Foi isso aí.

Pesquisador: E você tem vontade então de aprofundar, de aprender um pouco mais sobre a percussão nos próximos encontros? Que a gente vai ter mais dois encontros.

Participante 1: Sim.

Pesquisador: Seria interessante, né?

Participante 1: Hã-hã.

Pesquisador: Você gostou?

Participante 1: Gostei.

Pesquisador: Você acha que a oficina abriu uma nova porta, uma nova possibilidade para você?

Participante 1: Sim, eu acho que sim.

O depoimento ressalta a importância da prática de conjunto para a pesquisa em ABR e de como as performances podem produzir dados para a pesquisa científica (Leavy, 2015), visto que, através dela, conseguimos um maior engajamento do Participante 1, principalmente quando tocamos um ritmo e música que fazem parte da sua identidade sonora (Benenzon, 1995), embora o seu discurso tenha demonstrado uma dificuldade de compreensão, ou a exposição de algo totalmente novo.

Pesquisador: Você quer deixar alguma coisa para a gente? Falar alguma coisa? Finalizar? Alguma atividade que você gostaria de ter na oficina? [Bailão]?

Participante 1: Não, não. Não sei muito, assim, desses negócios ainda não, estou aprendendo ainda.

Pesquisador: Entendi, é novo.

Participante 1: Hã-hã.

Essa abertura para a sensibilidade que a prática musical em conjunto pôde trazer para o Participante 1 dialoga com o que Téliz (2012) afirma sobre o fato de a música ter a capacidade de refinar a percepção do indivíduo, assim como os torna mais adaptáveis às dificuldades do viver, o que, no caso do Participante 1, é marcado de incertezas e dúvidas devido a uma série de fatores que marcam o cotidiano deste estudante na comunidade.

A Participante 2, com um perfil bem diferenciado do participante anterior, mesmo morando na comunidade, tem uma trajetória um tanto quanto diferente. Isto se dá pelo fato de que ela tem um contato um pouco maior com as artes, principalmente com as artes que lidam com a performance. Tal aspecto faz com que a Participante tenha outra perspectiva tanto de respostas quanto de resposta frente às oficinas propostas. Neste sentido, queremos sinalizar que esta é uma das participantes que mais se integrou nas oficinas propostas para o coletivo de estudantes.

Pesquisador: Você conhece bastante a parte das artes, eu percebi, você já tinha um olhar sobre essa questão da música, o que ela pode trazer para a sua saúde?

Participante 2: Já, tipo, porque eu sou uma pessoa que, assim, eu gosto de fazer alguma coisa conforme o que eu estou sentindo naquele momento. Então, tipo assim, eu estou mal, eu vou e escuto música triste, se eu estou feliz, eu vou e escuto uma música feliz, porque sei lá…

A Participante 2 traz uma fala que podemos associar ao conhecimento do senso comum, quando se refere ao fato de que gosta de escutar "música triste" quando está se sentindo triste, já quando está alegre opta por escutar "músicas alegres". Este é um comentário que é bastante comum quando se associa a música a estados mentais ou emocionais. Habitualmente, os jovens tendem a trazer esta perspectiva de maneira muito contundente, ainda mais por se tratar de uma fase da vida na qual acontecem muitas mudanças.

Pesquisador: Você conhece bastante a parte das artes, eu percebi, você já tinha um olhar sobre essa questão da música, o que ela pode trazer para a sua saúde?

Participante 2: Já, tipo, porque eu sou uma pessoa que, assim, eu gosto de fazer alguma coisa conforme o que eu estou sentindo naquele momento. Então, tipo assim, eu estou mal, eu vou e escuto música triste, se eu estou feliz, eu vou e escuto uma música feliz, porque sei lá...

Pesquisador: Isso te fazia bem? Trazia um maior bem-estar?

Participante 2: Sim, porque eu não sei, parecia que... eu acho, assim, que a gente tem que sentir o que o nosso corpo está pedindo, se eu estou triste naquele momento, talvez eu precise estar triste naquele momento para tirar algo de mim. Aí, sei lá, se eu estou triste, eu vou e coloco música triste, às vezes isso me acalma, isso tira a tristeza de mim, se eu estou muito feliz, eu vou e coloco uma música, eu fico mais feliz. Sei lá, eu acho que isso contagia as pessoas.

Pesquisador: E isso já era uma coisa consciente ou você fazia, assim, quase que... porque você sentia vontade ou porque você já tinha esse conhecimento que música poderia fazer bem?

Participante 2: É, acho que já era um conhecimento, sei lá, acho que a gente vai fazendo e vai...

Em Musicoterapia, reconhecemos que devemos trabalhar com o paciente músicas que reflitam o estado do seu mundo interno no determinado momento pelo qual ele está passando. Para que ocorra uma identificação entre este e a música e, a partir desse estado, começar uma mudança gradual visando a um maior bem-estar físico, mental, social e espiritual, como preconiza a Organização Mundial de Saúde (Nutbeam, 1996).

Por “mundo interno”, quero significar o conjunto de aspectos que habita cada um de nós: sentimentos, emoções, desejos, dores, enfim, todas as nossas experiências internas, que podem ou não, ser expressas através da música, e que são o resultado da nossa interação com o mundo circundante (Barcellos, 2009, p. 22).

No que diz respeito à relação entre a música, “mundo interno” e a busca de um maior bem-estar da Participante 2, vale ressaltar que:

As expressões no espaço da música são vivenciadas e interpretadas como expressões da psique. Através da música, o paciente/pessoa mostra como se sente, e expressa, narra seu mundo interno; e o musicoterapeuta apoia o paciente/pessoa para colocar-se na música e explorar as possibilidades de mudança na música, já que as mudanças se constituem como o objetivo de qualquer terapia (Barcellos, 2009, p. 111).

Nessa citação, Barcellos (2009) refere-se a termos técnicos como paciente e musicoterapeuta, mas na pesquisa aqui empreendida podemos pensar na utilização da música pela Participante 2 não como Musicoterapia, mas sim uma maneira terapêutica de buscar um maior bem-estar através da música. Essa perspectiva terapêutica a partir da música conecta-se com o primeiro objetivo da pesquisa aqui empreendida. Nessa perspectiva, é possível trazer uma reflexão, de acordo com o trabalho de Areais (2016), sobre a relação entre música e saúde a partir das tecnologias leves, entendidas como produção de vínculo, acolhimento e maior sociabilização, que se demonstrou como um fator positivo na conversa.

A Participante 2 já se utilizava da música como suporte para ter mais foco nos estudos, optando por músicas calmas e sem letra.

Pesquisador: Como se dá esse processo?

Participante 2: A gente não é tipo: “vou escutar música, porque eu quero...”, sei lá, acho que é uma coisa natural, vai acontecendo, você vai percebendo.

Pesquisador: Você começou a perceber mais depois da oficina?

Participante 2: Sim.

Pesquisador: Você acha que teve essa mudança?

Participante 2: Sim, teve, tipo, eu comecei a perceber: “nossa, será que eu consigo fazer... eu consigo usar música para isso e tal?”. Porque, tipo assim, eu não conseguia me concentrar para estudar sem nada, eu sempre escutava música.

Nesse momento, podemos fazer uma reflexão teórica sobre a natureza polissêmica da música (Barcellos; Santos, 1995), que está correlacionada com a relação individual que o indivíduo tem com a música, de acordo com as experiências vividas, levando em conta fatores culturais, sociais e psicológicos.

Dessa maneira, não existe uma unanimidade na literatura sobre a ideia de que a utilização da música irá sempre ajudar a desenvolver um estado maior de atenção como se fosse um medicamento prescrito, ou seja, uma farmacopeia musical (Silva, 2015, p. 17). Mas no caso específico da Participante 2, demonstrou-se positiva, visto que ajudou a desenvolver um maior foco nos seus estudos.

Quando perguntada se o material científico da palestra oferecido pela equipe de pesquisa sobre o cérebro e a música lhe ajudou a ter uma maior compreensão dos benefícios da música para a saúde, a resposta foi positiva. Segundo a Participante 2, o conhecimento pode ficar mais concretizado e agora sua percepção é outra sobre essa temática, visto que o "cérebro" entende que a música a deixa mais focada (Areias, 2016). Como demonstrado a seguir:

Participante 2: Acho que a Adrielle falou um negócio que concentra mesmo para estudar, um negócio desses. Enfim, aí eu realmente, tipo, comecei a perceber que isso me ajuda mesmo, aí agora eu sempre escuto, porque isso me ajuda muito a focar, porque eu tenho esse problema de: eu estou estudando e aí passa uma formiga, eu me desconcentro e, sei lá, música me ajuda mais a focar.

Adrielle é mestranda da Fiocruz e membro da equipe em arte, cultura e promoção de saúde; na pesquisa, ficou encarregada de explicar a partir de uma palestra (3ª oficina) sobre a relação do cérebro com a música.

Vale ressaltar que, a partir da oficina, a Participante 2 ficou incentivada a conversar com outras pessoas sobre os possíveis benefícios da música que aprendeu, assim como desenvolver uma prática de autocuidado a partir dela.

O Participante 3, por sua vez, traz uma espécie de incômodo em relação ao fato de ter tido pouco contato com o mundo da música em sua trajetória de vida. Na sua fala inicial, o Participante sinaliza que ninguém na sua família tinha tido alguma trajetória musical. Num único episódio que ele relata, percebe-se uma vontade grande em enveredar para o campo da música, mas não era sempre que ele interagia com esta prática.

Pesquisador: Fala um pouquinho se você teve contato com algum tipo de instrumento ou alguém da sua família já tocava, ou você já gostava de música.

Participante 3: Ninguém da minha família tocava não. Eu já peguei em um instrumento, mas, tipo, não era sempre que eu pegava. Era muito difícil eu tocar alguma coisa, só quando era um evento na escola, assim, ou, tipo, eu vou para algum lugar que tenha instrumento, aí eu ficava lá brincando.

Pesquisador: E qual tipo de instrumento você gostava mais?

Participante 3: Ah, eu gostava de tambor.

Pesquisador: Tambor? Legal.

Participante 3: É, porque eu nunca tive uma oficina assim. Uma pessoa de fora vim dar uma atividade aqui para a gente.

Na entrevista do Participante 3, ao perguntarmos sobre o que ele aprendeu sobre saúde em nossas oficinas, ele se refere à importância da nossa atividade para ele como: "uma pessoa de fora vir dar uma atividade aqui para gente"; essa afirmação dialoga com o que Souza et al. (2016) e Czeresnia e Freitas (2003) refletem sobre o conceito de Promoção da Saúde, pois leva em conta a qualidade de vida dos indivíduos, assim como de grupos sociais para além da ausência de doença.

Outro conceito importante trabalhado foi o de empoderamento comunitário, que visa a uma maior equidade, ou seja, direito igual para todos, e que nos possibilitou aprofundar o conceito de Promoção da Saúde a partir de uma visão mais filosófica (Oselame, 2014).

Pesquisador: E sobre saúde, depois que a gente fez a oficina, o que mais te chamou atenção nas nossas oficinas? Teve alguma coisa que você pode relatar antes e depois que você aprendeu com a gente?

Participante 3: Não. Eu não percebi nada de diferente com as oficinas, mas foi bem interessante.

Pesquisador: Interessante.

Pesquisador: Entendi. E você já tinha pensado sobre música e saúde, como a gente falou? Ou foi uma coisa totalmente nova para você?

Participante 3: Nova.

Pela conversa com o Participante 3, podemos perceber que a relação da música com a saúde foi algo totalmente novo: ao ser perguntado como foi realizar os exercícios de sensibilização a partir do som, e se essas dinâmicas o ajudaram a entender melhor o conceito de saúde, ele faz uma afirmação positiva após o pesquisador sugerir a palavra “comunhão” como síntese para expressar os seus pensamentos. Percebe-se, a partir dessa resposta, uma possibilidade de outra relação da pessoa com o seu estado de saúde a partir de elementos ainda não muito convencionais na medicina tradicional, como afirmam Czeresnia e Freitas (2003).

Quando perguntamos se aquelas atividades ajudaram o Participante 2 a entrar em contato com ele mesmo e seus colegas, este referiu-se positivamente à palavra "comunhão". Aqui, podemos analisar essa afirmação como sendo de ordem da racionalidade mítica (Atlan,1986); vem do latim communione – participação das mesmas ideias, crenças e opiniões; uniformidade em ideias, opiniões, acordo e harmonia.

Pesquisador: E fala um pouquinho também das atividades que a gente fez de sensibilidade. Você lembra, quando você fechou os olhos, a gente trabalhou a confiança, aquilo você acha que ajudou de alguma forma, é... a entender melhor o que é a música e o que é saúde? Aquelas atividades ajudaram você a entrar em contato com você mesmo, seus colegas? Você acha que aquilo pode ter ajudado na relação também com os colegas?

Participante 3: Sim.

Pesquisador: Uma comunhão.

Participante 3: Sim, porque, tipo, estava todo mundo de olho fechado, aí ninguém sabia o que estava acontecendo. Só ouvia a voz de uma mulher que esqueci o nome, aí tocando violão. Aí ninguém encostava na gente, nem nada, aí a gente tinha que confiar nas pessoas, né? Aí cada um confiou no outro, no próximo, aí [concluiu] a atividade.

Outro ponto importante na conversa do Participante 3 foi quando lhe perguntamos se já havia tocado algum instrumento antes, e ele responde que sim, mas é difícil "eu tocar um instrumento assim". A partir dessa resposta, percebemos que ele já tinha tido contato com instrumento de percussão antes, mas nunca fora musicalizado da maneira como foi realizado na segunda oficina.

Pesquisador: Eu vi que você gostou de pegar instrumentos de percussão lá no dia, tocou pra caramba, você já tinha tocado algum instrumento?

Participante 3: Já, mas, tipo, é difícil eu tocar um instrumento assim.

Pesquisador: Mas você acha que você se conectou mais, foi... você conseguiu ter um conhecimento melhor depois da oficina?

Participante 3: Sim, por causa daquele dia que a gente estava nessa sala aqui do lado, aí ele foi lá e fez a gente tocar os tambores lá que tinha, aí ele falou o que a gente tinha que fazer para sincronizar, aí ficou melhor. Porque antigamente eu não tinha esse pensamento de fazer certinho, tal.

Em seguida, perguntamos se foi possível para o participante ter um maior conhecimento de como se tocava o instrumento de percussão após a oficina. Ele falou que sim, devido ao fato de ter sido dada uma explicação sobre como se tinha que fazer para sincronizar os ritmos dos diversos instrumentos, visto que antes dessa explicação ele não tinha esse pensamento de “fazer certinho o ritmo”.

Aqui podemos refletir sobre um ponto importante que McNiff (2012) levanta, como, por exemplo, se é necessário que o pesquisador tenha um conhecimento artístico prévio no que diz respeito à qualidade da pesquisa empreendida na ABR. A partir do exposto acima, foi importante que o facilitador tivesse um conhecimento musical prévio, visto que esse possibilitou que o grupo, que na sua maioria nunca tinha tido contato com instrumento de percussão, conseguisse sincronizar o ritmo em uma mesma pulsação.

Participante 3: É, porque eu nunca tive uma oficina assim. Uma pessoa de fora vir dar uma atividade aqui para a gente.

No que diz respeito à frase "uma pessoa de fora vir aqui e fazer a oficina com a gente”, sugere que partilhamos ideias em comum com o Participante 3. Nesse momento, podemos nos aproximar do conceito da racionalidade mítica, que, segundo Atlan (1986), diz respeito à produção de conhecimentos que promovem um caráter único da experiência, levando em conta o pensamento mítico e transcendente que o fazer musical pode proporcionar. Essa maneira de pensar tem um apelo forte à intuição, levando em consideração o corpo como fonte primária do conhecimento (Leavy, 2018). O que Atlan sugere então é uma atitude intercrítica entre as interlocuções científica e mítica, na qual se privilegiam as diferenças e não as similitudes, dessa maneira complexificando e enriquecendo o entendimento de um determinado fenômeno por diversos pontos de vista, que nesse caso foi sobre a relação entre música e saúde.

Nessa perspectiva é que a música pode contribuir como um elemento central nas pesquisas em saúde, visto que potencializa os indivíduos a serem autores da sua própria saúde de modo a estabelecer possibilidades criativas em se produzir maior sensação de bem-estar (Nutbeam,1996) e de empoderamento social (Stige, 2002).

A conversa com o Participante 4 transcorreu da seguinte forma:

Participante 4: Eu sempre botei os estudos na frente de qualquer coisa, inclusive minha saúde, tanto que eu ganhei atestado para faltar na segunda-feira no curso e na escola, mas eu fui mesmo assim. E até mesmo a minha segurança, porque quando está dando tiro, eu teimo ainda em sair de casa. E eu moro na divisa.

Pesquisador: Garoto!

Participante 4: Eu simplesmente cago se eu vou morrer ou não, eu só quero conseguir estudar. Porque eu acho que é a coisa que mais me entretém, já que meus amigos imaginários foram jogados de lado depois que eu cheguei na adolescência, agora os estudos é minha companhia.

O Participante 4 dá muita ênfase aos estudos e se considera um bom aluno, inclusive enfatiza que enfrenta problemas como a violência, devido ao fato de morar na região conhecida como "divisa" , situada entre a Nova Holanda e a Baixa do Sapateiro, para conseguir estudar todos os dias, e independentemente de tiroteio ou ausência de saúde, sempre faz questão de ir para o preparatório CEASM.

A "divisa" fica situada no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio. Essa região também é conhecida como "Faixa de Gaza Carioca" ou "Fogo Cruzado", sendo a rua que divide as favelas da Baixa do Sapateiro e Nova Holanda comandada por duas facções distintas, respectivamente Comando Vermelho (CV) X Terceiro Comando Puro (TCP).

Participante 4: Assim, porque meio que... A música me ajudava muito em um monte de coisas, tipo estudar para prova: eu sempre tive minha técnica de pegar uma música, começar a tocar só essa música, todo o tempo, botava para repetir, e ficar estudando. E quando chegava na hora da prova, eu começava a cantar na minha cabeça e eu lembrava da matéria inteira. E também eu era uma pessoa meio doida, assim, que não tinha muito... como eu posso dizer? Eu não tinha muito ritmo para as coisas, muita coordenação motora. E aí com o ritmo da música, que eu acho que comparando tudo da música, eu acho que o que mais me prende a ela é o ritmo, *com o ritmo eu comecei a conseguir ter uma coordenação motora melhor, consegui fazer um monte de coisas junto ao mesmo tempo.

Quando é perguntado sobre o conhecimento da relação entre música e saúde, fala que a música o ajudava a estudar melhor para a prova, porque a utilizava como uma maneira de decorar algum conceito a partir da repetição de uma música visando a memorização do conteúdo. O Participante 4 reflete ainda que, de todos os elementos que compõem a música, dá maior importância ao elemento ritmo em sua vida. A partir do entendimento sobre o que é ritmo em música, passou a perceber que conseguia fazer um "monte de coisas" ao mesmo tempo e que já tinha essa prática antes da oficina, mas que de certa maneira, após o contato teórico/prático, esse conhecimento se modificou, fazendo com que melhorasse a sua "habilidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo".

Pesquisador: Eu queria que você falasse... você falou que é um garoto que bota o estudo acima de tudo. Mas eu queria saber o que é saúde para você. Você falou que bota o estudo acima do seu bem-estar. O que seria saúde para você?

Participante 4: No caso, estar bem. Tem a saúde mental, a física... E, tipo, a saúde é praticamente estar bem.

Pesquisador: E após a oficina, você sentiu que mudou alguma coisa com relação a esse conceito? Por exemplo, você já tinha feito alguma atividade que relacionam música e saúde?

Participante 4: Não.

Pesquisador: Foi uma coisa nova?

Participante 4: É, a primeira vez. Eu acho que a minha saúde mental começou a ficar melhor, porque eu comecei a perceber o quanto a música faz diferença na minha vida e comecei a me tornar mais alegre. Porque antes, tipo, antes mesmo do CEASM eu já era uma pessoa meio melancólica. Aí depois veio o CEASM, eu fiquei um pouco mais feliz. E aí veio a música, a oficina, e me deixou mais alegre ainda.

Fica explícito que se refere à oficina como algo totalmente novo e acha que sua saúde mental começou a ficar melhor pelo fato de ter percebido o quanto a música faz diferença em sua vida. O Participante 4 alega que se sentia uma pessoa melancólica antes do início das aulas no CEASM e foi melhorando ao entrar no preparatório e, após ter tido a experiência da oficina com a música, esta o deixou muito feliz.

A partir dessa discussão, também é relevante pensar sobre o conceito de saúde sentida (Nutbeam, 1996), ou seja, "a interpretação que a (própria) pessoa faz de suas experiências de saúde e seus estados precários de saúde no contexto da vida diária". Esse conceito se mostrou presente no modo como a relação do Participante 4 foi-se modificando desde quando ele entrou no CEASM até o final das duas oficinas.

Considerações finais          

A abordagem metodológica da ABR foi de extrema importância para o desenvolvimento desta pesquisa por incentivar a criatividade, dar abertura para o novo e por não separar o "eu" artista do "eu" cientista (Leavy, 2015). Por outro lado, trabalhar com a ABR trouxe alguns desafios ao longo do processo. Os embaraços vão na direção de apontar quais foram as dificuldades na aplicação da metodologia da ABR em contextos educativos e dialógicos.

Dar ênfase ao processo da pesquisa em vez de um resultado específico, abertura para reorientar aquilo que foi planejado e a dúvida se iríamos validar a própria performance como dado de pesquisa ou iríamos partir de uma perspectiva qualitativa foram os principais desafios.

Ao refletirmos sobre o processo de realização da pesquisa, podemos destacar que nas duas primeiras oficinas as expressões artísticas e de sensibilização ocorreram ao longo de todo o encontro. Já nos dois últimos encontros, após a leitura do trabalho de McNiff (2012), realizamos as performances musicais como um veículo de pesquisa, e não como o principal objetivo.

No que diz respeito às conversas com os participantes chamamos a atenção para o fato de que certos assuntos foram compreendidos, tais como a importância do autocuidado, assim como a possibilidade da música em proporcionar saúde. 

A pesquisa também sugeriu caminhos possíveis para refletirmos sobre a interface entre música e saúde. Levando em conta conceitos como identidade sonora (Benenzon, 1995) e saúde ampliada (Nutbeam, 1996), a partir das análises dos dados, foi possível entender que a relação que estabelecemos, enquanto sujeitos, com a música se dá de forma profunda e polissêmica (Barcellos, 1995).

Compreendemos, por fim, a diferença entre refletir sobre a performance musical como meio de pesquisa ou fim em si mesma (McNiff, 1998), na qual percebemos a importância de enfatizá-la como meio de pesquisa após a experimentação de ambos os casos. Percebeu-se também que a música nunca é isenta de múltiplas intenções, assim como de uma perspectiva de promoção de saúde.

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Publicado em 17 de agosto de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

STRATTNER, Victor Ramos. As oficinas dialógicas de linguagem musical como forma de promoção da saúde na Comunidade da Maré. Revista Educação Pública, v. 21, nº 31, 17 de agosto de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/31/as-oficinas-dialogicas-de-linguagem-musical-como-forma-de-promocao-da-saude-na-comunidade-da-mare

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