Língua e sociedade: ensino que liberta

José Inácio Júnior

Graduando em Letras – Língua Portuguesa (UERN)

O ensino de Língua Portuguesa, desde muito tempo, é indagado quanto à necessidade de melhorias no seu ensino público em todo o território nacional. Os problemas enfrentados em sala de aula, desde o primeiro ano do Ensino Fundamental até o Ensino Médio, refletem um aprendizado cada vez mais defasado. Por isso existe um esforço comum em buscar cada vez mais novos métodos, bem como a consolidação das boas proposições já existentes que façam o ensino melhorar. Discussões como esta, com certeza, auxiliam no desenrolar de uma busca séria para com o pleno estabelecimento de específicas concepções ainda mais reflexivas e oportunas para o desenvolvimento de práticas pedagógicas que consolidem um ensino melhor.

A sala de aula provoca a confluência de múltiplos caminhos de saber e as mais plurais visões em relação ao ato de ensinar/educar. Com o ensino da língua (em especial a nossa língua materna) não é diferente. Mesmo com os significativos avanços dos últimos anos, graças aos sérios investimentos na estrutura escolar e no próprio profissional de Educação durante governos de centro-esquerda, não foi possível sair do lugar, significando assim que houve melhorias, mas não as suficientes. Por isso, hoje não é raro encontrar estudantes que, quando indagados sobre a disciplina de Língua Portuguesa, respondem que não sabem falar português ou que é a disciplina que mais apresenta dificuldades. Nesse sentido, são levantadas algumas questões: como anda o ensino da Língua Portuguesa nas escolas públicas de nosso país? Como o ato de ensinar a língua/linguagem pode ser confundido com o de ensinar gramática? Qual o tipo de gramática ensinada? A gramática das salas de aula mais divide do que agrega? O que fazer para mudar a realidade constatada? Existe realmente solução?

O presente artigo tem o objetivo central de responder tais questionamentos sob a perspectiva da relação da língua com a sociedade, colocando-a sob determinadas concepções de ensino que libertam e provocam o raciocínio crítico tanto dos alunos como dos professores. Para tanto, o artigo se estrutura em quatro partes: o desenvolvimento de concepções acerca do que significa ser professor; o estabelecimento do entendimento da relação entre língua, sociedade e ensino; a proposição de questionamentos acerca do ensino de língua/linguagem nas escolas públicas, bem como a própria análise prática disso por meio de um relatório advindo de uma atividade observacional; por fim, a construção de uma resposta aos problemas apresentados, sempre levando em consideração alunos e professores da rede pública. Para começar, vejamos um pouco o papel do/a professor/a de Língua Portuguesa e como ele/a deve ser encarado.

O/A professor/a professora de língua portuguesa

O clichê envolto nas noções a respeito do profissional de educação da língua/linguagem pode trazer uma certa precipitação com relação à forma como ele deve ser encarado na sociedade, bem como o grau de valorização que deve receber. Talvez por isso a valorização do professor ocorre apenas no campo das ideias e quase nunca na prática. Um dos responsáveis por esse problema é a confusão feita com as atribuições que o professor ou a professora devem ter. Alguns acreditam que é dever de tal profissional tutelar o estudante de forma familiar, “vomitar” teorias e conteúdos e/ou enchê-los de listas e mais listas de atividades decorativas. 

Paulo Freire afirma que esse tipo de pensar, equivocado para com o real papel do professor, é uma das grandes mazelas do ensino, pois tal visão faz com que o papel do educador seja o de “imitar o mundo. O de ordenar o que já se faz espontaneamente. O de ‘encher’ os educandos de conteúdos. É o de fazer depósitos de ‘comunicados’ – falso saber – que ele considera como verdadeiro saber” (Freire, 1996, p. 41).

Mas, afinal, qual o papel do professor de Língua Portuguesa? O que é dever desse profissional? O professor é muito mais do que um teórico que “vomita” conhecimento sobre seus estudantes ou uma espécie de máquina “Control+C/Control+V” de conteúdos programados e estáticos. O professor pesquisador é acima de tudo um educador em metamorfose progressiva e evolutiva. É um guia que auxilia seus educandos a desbravar os conhecimentos da língua (isso implica o entendimento da diferenciação do ato de ensinar língua e ensinar gramática) e suas pluralidades significativas.

O professor está no campo do fazer, do agir. Para fazer e agir, é necessário pesquisa e estudo. Paulo Freire, o patrono da educação brasileira, diz:

Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino [...]. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar; constatando, intervenho; intervindo, educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade (Freire, 1996, p. 14).

O professor/pesquisador se educa e educa outros. Ele interage com seus alunos e faz muito mais do que tutelar a passagem de conhecimento, ele mostra de forma prática como esse conhecimento pode transformar realidades. De certa forma, ele até mesmo dá esperança àqueles que já não acreditam em mais nada. Paulo Freire registra, no livro Pedagogia da Autonomia: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (Freire, 1996, p. 12). O/A professor/a que se mune da pesquisa e do estudo, além de suas particulares atualizações, progride no caminho do autoconhecimento e da autodescoberta de seus pensamentos e, consequentemente, de sua forma de educar outros, melhorando cada vez mais a promoção de boas práticas educacionais. Por isso, o professor que pesquisa, além de ser um simples mediador, se torna o próprio produtor, no aluno e nele, de uma força motivadora, fazendo com que o conhecimento ensinado passe a ser vivenciado, passe a ser testemunhado tanto pelo professor como pelo aluno. 

É nesse sentido que o educador de idiomas deve se colocar como vetor de real significância na realidade de seus alunos. Mas por que tal conscientização é deveras importante? Ora, porque o fato de o professor de língua/linguagem ter consciência de si, bem como de sua relevância, pode determinar o grau de motivação ou de desmotivação do/a estudante para com os estudos linguísticos e seus consequentes impactos no âmbito social. No livro Pedagogia do Oprimido, nosso mestre educacional, Paulo Freire, critica a chamada educação bancária, isto é, aquela educação que busca apenas depositar, em um ensino decorativo e excessivamente restritivo, um conhecimento raso/superficial na mente dos alunos, que só os afasta do prazer de estudar língua/linguagem e os mantém cativos de algumas prisões construídas por uma sociedade cada vez mais segregacionista e excludente, em que o ato de falar e de como falar importa mais do que o caráter.

Freire incentiva o estabelecimento de uma educação em que “educadores e educandos se fazem sujeitos do seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando o autoritarismo do educador ‘bancário’, supera também a falsa consciência do mundo” (Freire, 1987, p. 49). No que diz respeito ao professor de Língua Portuguesa, tais traços não mudam. O professor deve pesquisar para educar e deve guiar no verdadeiro caminho do ensino da língua e de sua relação com a sociedade, não de uma forma bancária, é claro, mas de um modo que instigue o estudante. É justamente por isso que este artigo propõe o ato de investigar a relação entre língua e sociedade e assim tentar encontrar os problemas do ensino linguístico que mais aprisiona do que liberta, bem como propor específicos caminhos de mudanças, claro, sempre com base nos mais renomados autores e autoras da área, como Paulo Freire, Sírio Possenti e Irandé Antunes, dentre outros.

Língua, sociedade e ensino

Para começar nossa investigação, perguntemos: o que a língua/linguagem tem a ver com a sociedade? Para Ferdinand de Saussure, a língua é um conjunto de elementos que podem ser estudados tanto na associação paradigmática como na sintagmática, intentando em dizer que um elemento depende do outro para ser formado. Saussure diz que a linguagem é social e individual, é psíquica e física; a língua é justamente a parte social da linguagem. A língua é, de fato, um conjunto de convenções sócio-historicamente construídas que permite através dos séculos em suas múltiplas particularidades a realização da comunicação na sociedade humana (Lira, 2020).

Tal função (de permitir comunicação entre pessoas) se constitui como relação direta e inseparável entre língua e sociedade, haja vista que para o pleno estabelecimento do que convencionalmente se conhece por sociedade se faz necessária a existência de indivíduos convivendo em harmoniosa e compreensível comunicabilidade. A língua e a sociedade não são faces opostas da mesma moeda; são faces que se complementam, que juntas permeiam a própria constituição do que é ser social e vivido. A língua, em suas múltiplas particularidades e saberes científicos, propõe com todos os seus mistérios e segredos continuar funcionando perfeitamente (ou não) como uma rede emaranhada e sutilmente organizada, que por sua vez se expande sempre que pode a fim de comportar cada vez mais falantes e suas comunidades, cada vez mais seres vividos, bem como suas civilizações e sociedades.

No texto “Concepções de linguagem e ensino de Português”, do livro O texto na sala de aula, Geraldi ressalta três pontos principais correspondentes a grandes correntes dos estudos linguísticos. Em sua construção, Geraldi dá ênfase à última concepção apresentada, a de linguagem como forma de interação, pois acredita que ela traz consigo um novo método de ensino, baseado nas relações sociais que existem entre os falantes (Geraldi, 2011). Essas relações se dão basicamente por meio da interlocução, assumindo dessa forma que a fala é puramente um jogo de compromissos e que cabe a nós saber como jogá-lo. A pluralidade linguística, quando em sala de aula, é a genuína representação do jogo que praticamos no âmbito social, e tal variedade é essencial para o desenvolvimento cognitivo de cada indivíduo. Entretanto,

cabe ao professor de Língua Portuguesa [...] oportunizar aos seus alunos o domínio de outra forma de falar, o dialeto padrão, sem que signifique a depreciação da forma de falar predominante em sua família, em seu grupo social etc. (Geraldi, 2011, p. 36).

O ensino da norma culta da língua portuguesa é de grande relevância para a transformação das realidades dos/as estudantes. A utilização da norma culta no ambiente escolar rompe com o bloqueio de acesso ao poder formado por meio de uma adequação histórico-econômica ocorrida dentro da língua e que resulta na segregação social entre classes.

O pleno estabelecimento do entendimento acerca da relação entre língua, sociedade e ensino é o grande ponto aqui traçado. Milton José de Almeida, no texto “A língua: uma produção social”, também inserido no livro citado, O texto na sala de aula, diz:

Numa sociedade como a brasileira – que, por sua dinâmica econômica e política, divide e individualiza as pessoas, isola-as em grupos, distribui a miséria entre a maioria e concentra os privilégios nas mãos de poucos –, a língua não poderia deixar de ser, entre outras coisas, também a expressão dessa mesma situação (Almeida, 2011, p. 16).

Em um Brasil repleto de desigualdades, não é de se espantar que os que detêm o domínio da variante padrão também detenham maior possibilidade de ascender social e financeiramente. É aí que entra o ensino como ponte entre as duas coisas, língua e sociedade. O ensino da Língua Portuguesa por parte do educador e de todo um sistema deve proporcionar maior autonomia do processo de aprendizagem. O ensino da Língua Portuguesa deve ser libertador, deve ser pioneiro no processo de desmistificação dos preconceitos e das arbitrariedades impostas pelos que aprofundam o abismo social existente no nosso país.

O ensino da Língua Portuguesa deve prover aos alunos o domínio da variedade padrão, da norma culta e do verdadeiro ato de raciocínio para a utilização deles. Sim, o estudante deve ter as devidas competências linguísticas condizentes com os mais variados locais que ele/a frequenta. Da parte do/a professor/a, ele deve entender que o ensino da variedade padrão e da norma culta não deve em hipótese alguma se sobrepor severamente a outras variedades, fazendo com que a grande sacada do ensino seja justamente a utilização do equilíbrio. O ensino que liberta é o ensino que dá condições ao estudante para a absorção das mais plurais variações linguísticas e seus usos, o que consequentemente culmina na melhor possibilidade de ascensão social (logicamente tal ascensão dependendo de muitos outros fatores). A questão que marca a escrita deste artigo é justamente a da boa visibilidade acerca da relação entre língua, sociedade e ensino. Tal questão deve ser vista com base em outro ponto de percepção, em um outro questionamento: o ensino da Língua Portuguesa liberta ou aprisiona?

Ensino que liberta?

Se perguntarmos a algum aluno o que ele acha da aula de Língua Portuguesa, podemos ter certeza de que a resposta será, na maioria das vezes, uma sentença negativa em relação à forma de ensino nas salas de aula hoje. Segundo um estudo trazido por Camila Guimarães na revista Época, “88% não conseguem apontar a ideia principal de uma crônica ou de um poema” (Guimarães, 2015). E é justamente o amontoado de regras, o excessivo controle da fala e a consequente segregação para com as variantes linguísticas faladas pelos estudantes que são (dentre outros) os principais problemas apontados dentro das quatro paredes de uma sala de aula. A questão que permanece e que move muitos em uma busca constante por transformação é que o ensino engessado e precário (principalmente em infraestrutura) mais aprisiona do que liberta, restando assim tentar entender o problema e projetar e aplicar novas e velhas possibilidades de mudança.

Lecionar Língua Portuguesa com certeza é um grande desafio. Ensinar Língua Portuguesa em uma escola pública, negligenciada pelo Estado, com salários baixos e/ou atrasados e com estrutura em condições precárias, é quase uma tarefa impossível. Infelizmente essa é a realidade das nossas escolas. Camila Guimarães, no texto “O ensino público no Brasil: ruim, desigual e estagnado”, traz uma fala do coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara: “No Brasil, a desigualdade está ligada à infraestrutura das escolas” (Guimarães, 2015). Ele continua: “Redes maiores, com estruturas adequadas, laboratórios e bibliotecas e professores com melhor formação, são mais eficientes”. Uma realidade um tanto longínqua da educação pública, haja vista a falta de estrutura adequada, de educadores com melhor formação, de laboratórios e de bibliotecas e, às vezes, até mesmo de merenda. É nesse contexto que os professores fazem o que está ao alcance para tentar burlar tais problemas e estabelecer uma base de ensino suficientemente satisfatória para com o aprendizado, o que muitas vezes não se concretiza de fato em virtude de diversos fatores exteriores e interiores.

O ensino da gramática nas aulas de Língua Portuguesa é um dos pontos essenciais no que diz respeito aos fatores influenciadores. Tal ensino é o grande pilar do estudo dos alunos hoje, levando em consideração a grande confusão feita por muitos alunos no que diz respeito à diferenciação entre ensinar/aprender língua e ensinar/aprender gramática. No livro Por que (não) ensinar gramática na escola?, Sírio Possenti (2010) considera o ensino regular das escolas como arcaico; consequentemente, provoca da perda de tempo, haja vista a presença do ensinamento de regras gramaticais que os estudantes já sabem. Possenti destaca a existência de três tipos de gramáticas que devem ser abordadas em sala de aula de forma equilibrada: a gramática tradicional, a gramática descritiva e a gramática internalizada.

A gramática tradicional ou normativa é um montante de regras que impõem a variante padrão da língua, uma norma culta que não aceita outras variantes, fazendo surgir assim o preconceito linguístico. Esse tipo de gramática prescreve o que é certo e o que é errado no que se refere à escrita e à fala da língua. Sobre essas regras, Possenti diz: “As regras de uma gramática normativa se assemelham às regras de etiqueta, expressando uma obrigação e uma avaliação do certo e do errado” (Possenti, 2010, p. 73).

A gramática descritiva apenas descreve. Ela analisa e explica as diferentes formas de variação da língua, sem prescrever o que é certo e o que é errado, visando assim às características em comum dessas variações. “As regras de uma gramática descritiva se assemelham às leis da natureza, na medida em que organizam observações sobre fatos sem qualquer conotação valorativa” (Possenti, 2010, p. 73).

A gramática internalizada, por sua vez, encaixa como os conceitos linguísticos são absorvidos através da repetição da língua por meio da fala, o que qualifica o aprendizado durante o crescimento da criança.

A terceira definição de gramática — conjunto de regras que o falante domina — refere-se a hipóteses sobre os conhecimentos que habilitam o falante a produzir frases ou sequências de palavras de maneira tal que essas frases e sequências são compreensíveis e reconhecidas como pertencendo a uma língua (Possenti, 2010, p. 67).

Saber a diferença entre os três tipos de gramática é fundamental para o melhor desenvolvimento de boas práticas educacionais, bem como suas respectivas aplicações. É por meio da junção do estudo dessas três concepções gramaticais em meio ao ensino aplicado e sensível ao que o aluno já sabe que o educador possibilitará em sala de aula a construção de tais práticas pedagógicas. Possenti fala que o/a aluno/a não erra tanto quanto pensamos; ele afirma que tudo que o/a estudante viveu e vive (com relação à língua e a outras áreas de saber) é importante para montar uma base para ensinamentos mais profundos, como o da gramática normativa/tradicional, que possibilitará a inserção do indivíduo nas camadas sociais mais privilegiadas, pelo menos no que diz respeito à língua. É um começo de transformação.

São esses conceitos (de tipos gramaticais e de suas interações com as novas e velhas possibilidades de ensino) que, segundo Possenti, devem ser abordados em aula tendo em vista a função da escola, que, segundo ele, é refletir sobre o que o aluno já sabe da sua língua, além de expor a existência de uma variante normativa e as variantes da norma sem usar preconceito com elas. Nesse sentido, relatarei a partir de agora uma atividade observacional descritiva que tem o objetivo unicamente de expressar uma visão de sucesso para com o ensino da Língua Portuguesa na sala de aula, isto é, verdadeiramente na prática. Tomei como objeto de observação a aula de Língua Portuguesa do 2° ano de uma escola estadual no interior do Rio Grande do Norte, que foi ministrada por uma professora (cabe aqui explicar que por motivos pessoais dos envolvidos, os nomes dos professores e alunos observados no uso de suas atribuições não serão expostos) cujo desempenho sempre foi combinado com extrema cordialidade e profissionalismo durante a realização da atividade. 

Aula de português: problemas e soluções

Deve ficar claro durante o desenrolar do relato que a intencionalidade da observação não está em tecer críticas à forma como a professora ministrava suas aulas nem em como a escola organiza sua estrutura educacional, e sim na análise de como se dá o ensino da gramática nas aulas de Língua Portuguesa no cotidiano de uma instituição de ensino público estadual e de acesso facilitado, haja vista que é a única escola que oferta o Ensino Médio na cidade. Durante a observação ficaram óbvios o esforço e a preocupação da escola em imprimir na sociedade um papel totalmente além daquilo que é esperado como normativo de uma instituição de ensino pública e que tem como clientela uma população carente, de classes marginalizadas. Isso ficou evidente justamente devido à utilização de recursos diferenciados, desde a metodologia utilizada pelos professores até o principal objetivo da escola, que consiste em formar muito mais do que estudantes, e sim compor cidadãos conscientes no campo da ética e cidadania.

A preocupação da escola em ir além do ensino regular ficou ainda mais evidente durante a análise das primeiras aulas; mais da metade, para ser preciso, em que o conteúdo principal abordado foi o movimento “setembro amarelo”, que teve em seu estudo um olhar alinhado com a Língua Portuguesa e a produção textual. Somente lá para a sexta aula assistida foi possível constatar um estudo mais sistemático da gramática, quando a professora deu continuidade aos assuntos trabalhados anteriormente em sala de aula – no caso, verbos no infinitivo, no gerúndio e no particípio, passando em seguida para o estudo das locuções verbais, dos modos e das formas compostas dos verbos.

A aula observada trouxe muitos aspectos do ensino descrito no livro de Possenti, a começar pela presença de atividades temáticas, possibilitando assim o estímulo ao senso crítico e interpretativo. A atividade proposta pela professora consistia na produção de cartazes temáticos logo depois de a turma ter assistido a vários depoimentos de pessoas que sofriam com depressão (o estudo foi realizado em virtude da aproximação do mês de setembro, que por sua vez traz o movimento “setembro amarelo”, uma campanha de conscientização de prevenção do suicídio) por meio de vídeos em que elas contavam o que estavam passando e como se sentiam. Uma roda de conversa foi feita com o intuito de gerar debate acerca do tema, além de conscientizar os próprios estudantes da importância da atenção que se deve dar a essa doença, não somente no mês de setembro, mas todos os dias.

A professora colocou como tarefa que a turma, dividida em grupos, desenvolvesse algumas ideias de como ajudar pessoas que estivessem passando por algum tipo de problema relacionado à depressão. Como o exercício acontecia dentro da aula de Português, o objetivo era que as ideias estivessem também dentro do âmbito da linguagem. Os vários grupos chegaram à conclusão de dividir certas produções, como a de cartazes temáticos, que foram expostos nos murais da escola, e a criação de uma caixa de mensagens que consistia em uma caixa onde estariam centenas de frases contendo mensagens positivas. A caixa traria a seguinte frase: “Se precisa, pegue. Se não precisa, doe”. Outra coisa interessante que percebi foi a abordagem que a professora utilizou com a linguagem e sua relação para com o trabalho em equipe. O propósito era criar uma situação comunicativa entre as turmas do 2° ano. Todas foram mobilizadas para participar da atividade, e a maneira como isso ocorreu foi bem inteligente, pois as outras turmas do 2° ano concluíram o que a turma anterior começara. Assim o trabalho teria o compartilhamento das mais plurais visões, linguagens e opiniões.

O trabalho estava tomando corpo e já se podia constatar os frutos de tal trabalho ser realizado com compromisso e harmonia, quando a professora resolveu dar uma pausa na atividade para retornar às aulas de gramática propriamente dita. A professora deu então continuidade ao estudo de locuções verbais, modos e fez um detalhamento do conteúdo de formas compostas dos verbos (tudo isso sem a utilização do livro didático). Porém aparentemente quase todos os alunos tinham esquecido os assuntos estudados anteriormente que sustentariam o aprendizado desse novo conteúdo. Por isso a professora resolveu fazer uma revisão das formas nominais dos verbos: infinitivo, gerúndio e particípio. Inferi que a revisão dada foi bastante proveitosa, pois a professora se valeu do que os alunos já sabiam para assim ensinar o conteúdo. Como? Ela listou no quadro diversos verbos já no infinitivo, criou uma tabela em seguida e pediu para os alunos conjugarem o verbo da maneira que eles achavam correto e, consequentemente, como eles falavam.

No gerúndio, a maioria dos alunos teve grande facilidade e respondeu rapidamente a atividade oral. Entretanto, quando chegamos ao particípio ocorreu um grande choque nas respostas, pois os mesmos alunos encontravam dificuldade em alguns casos. O grande problema se deu especificamente nas formas dos verbos “dizer”, “fazer” e “imprimir”. Os estudantes, quando questionados pela professora sobre o porquê de não chegarem a uma resposta convicta, responderam que “eles só sabiam responder do jeito que aprenderam em casa e tinham quase certeza de que a forma que aprenderam era a “errada”.

A professora então listou todas as formas respondidas e depois corrigiu em conjunto com a turma cada um dos verbos e suas formas. Para a surpresa de muitos, eles conseguiram “acertar” a maioria, inclusive aquelas em que tinham dúvidas. A professora ratificou que os estudantes deveriam confiar mais na capacidade de fala e que não precisavam desprezar o que eles aprendiam em casa; pelo contrário, tudo era uma questão de equilíbrio. Assim sendo, ela deu início ao estudo das formas compostas dos verbos.

A atividade observacional com certeza enriqueceu bastante a construção deste artigo. A percepção do que é ser professor de Língua Portuguesa na prática é a chave para o entendimento da relação entre língua, sociedade e ensino. O ensino que agrega faz toda a diferença, pois coloca sob perspectiva de centralização o equilíbrio da utilização das gramáticas tradicional, descritiva e internalizada, fazendo com que tal uso promova de forma responsável um ensino de qualidade nas escolas públicas do Brasil.

Navegar nessas imensidões de novas possibilidades quando o assunto é aula de Língua Portuguesa com certeza é um grande desafio, porém muito satisfatório. Colocar em prática as mais diversas e atuais concepções de ensino da língua, mesmo quando muitas delas não são tão novas assim, tem, segundo Irandé Antunes, o principal objetivo de “conseguir ampliar as competências comunicativo-interacionais dos alunos” (Antunes, 2009, p. 34). Os/as alunos/as podem, com a mediação e a liderança de um educador, desenvolver e aprimorar determinadas competências linguísticas (com raciocínio crítico e interpretativo, de puro bom senso); entendo que em Língua Portuguesa se estudam língua, gramática e literatura, que em Língua Portuguesa se estudam leitura e escrita (tudo isso como um processo, com atividades que vão e vêm, passam da mão do/a professor/a para a mão do/a aluno/a e da mão do/a aluno/a para a mão do/a professor/a, até o texto estar bem armado e escrito), além da oralidade como parte essencial da consolidação da fala no percurso do aprendizado da Língua Portuguesa. Tudo isso é um desafio para o/a professor/a, de fato, uma grande missão, que somente aqueles que realmente amam fazem de bom grado.

Essa é uma responsabilidade que todos os professores de Português têm; responsabilidade que deve ser guiada por um grande ponto de equilíbrio, no que diz respeito às abordagens utilizadas dentro de uma sala de aula. O apoio na leitura, escrita e oralidade é fundamental para o estabelecimento de uma base sólida para o aprendizado dos alunos. Encarar esses alunos e suas mais plurais realidades é com certeza o ponto central a ser trabalhado. As diferenças não devem ser colocadas à parte; devem ser incluídas e trabalhadas de forma empática e harmoniosa, com o objetivo de aproximar mais os jovens em formação dos seus respectivos alvos. Valorizar os esforços dos/as alunos/as em falar bem e compreender bem a língua portuguesa, bem como todos os seus sonhos, fará de forma elementar uma grande diferença na trajetória do ensino e do aprendizado. O professor é com certeza peça chave no que diz respeito à transformação da realidade do ensino público brasileiro.

O que dá para perceber é que problemas existem, mas soluções também. Não é trabalho para um indivíduo, mas sim para todo um coletivo, que, se armando de boas práticas, pode agregar forças contra o atraso e a segregação educacional causados pelo abismo sociopolítico brasileiro. Sírio Possenti aponta, no texto “Sobre o Ensino de Português na Escola”:

O que já é sabido não precisa ser ensinado, de forma que os programas anuais poderiam basear-se mais num levantamento do que falta ser atingido do que num programa hipoteticamente global que vai do simples ao complexo (Possenti, 2011, p. 31).

A solução está justamente em seguir um ensino internacional e complementar, agregando assim as mais variadas gramáticas existentes, bem como suas utilizações na prática. No mesmo texto, Possenti explana uma boa proposição de mudança: “se a escola tiver um projeto de leitura, isso pressupõe que ele [o/a estudante] terá cada vez mais contato com a língua escrita, na qual se usam as formas padrão que a escola quer que ele aprenda” (Possenti, 2011, p. 32); o que pode determinar o sucesso do ensino é justamente a presença de um projeto envolvendo leitura, escrita e atividade oral. Não é fácil, mas não é impossível e juntos podemos mudar a realidade da escola pública e fazer com que o ensino de Língua Portuguesa de fato liberte.

Considerações finais

O que está envolvido em projetar no ensino brasileiro, bem como na rede pública de educação (sim, são coisas diferentes), estruturalmente falando, são condições propiciatórias de medidas públicas eficientes na relação língua-sociedade. A maioria dos estudantes é da rede pública, e grande parte dos problemas diz respeito à estrutura física e social da escola; diz respeito à quantidade de investimentos por parte dos governos nas escolas e na formação dos professores da rede básica. Quantos professores da Educação Básica são mestres e doutores? O salário condiz com a realidade da comunidade em que eles estão inseridos? Os professores obtêm o suporte necessário para o pleno estabelecimento das condições que possibilitam o aprendizado? Os professores compreendem a real importância de usar o equilíbrio na hora de ensinar?

E os/as estudantes estão cientes de que a disciplina Língua Portuguesa proporciona o ensino da língua e não da gramática tradicional pura e segregacionista? Os/as alunos/as entendem a relevância que o estudo linguístico tem para com sua ascensão social dentro do tabuleiro armado pelo sistema? Quando essas perguntas forem respondidas e tudo isso aqui descrito (neste artigo e nos textos citados, dos mais variados autores, principalmente Sírio Possenti, João Geraldi Wanderley e Paulo Freire) for colocado em prática, nossa educação se porá a construir caminhos cada vez mais sólidos na certeza da liberdade. Possenti declara, no já citado, “Sobre o ensino de Português na escola”: “É relativamente pequena a diferença entre o que um aluno já conhece da língua e aquilo que lhe falta para ser um usuário semelhante ao que a escola imagina” (Possenti, 2011, p. 31). Estamos mais perto da vitória do que da derrota, tenhamos certeza.

Os ventos da liberdade já são sentidos em muitos lugares de nosso país, mas os raios da justiça social estão longe de se tornarem visíveis. Exemplos educacionais como o descrito aqui neste artigo são muitos pelo território nacional. Educação pública como a do Estado do Ceará, que liderou o ranking do Ideb em 2019, é possível. No Ceará, "a rede pública alcançou a nota 6,3 em 2019, superando em 1,5 ponto a meta estabelecida pelo Ministério da Educação (MEC)” (Mota, 2020). Cabe aos governos avaliar o que deu certo no cenário doméstico e mundial para assim adequar as respectivas medidas às nossas realidades particulares. Cabe aos educadores compreender a relevância do ensino interacionista no âmbito da língua (e suas gramáticas e literaturas) e da sociedade (e suas plurais variações). O ensino internacional considera a gramática tradicional, descritiva e internalizada, considera a realidade de cada aluno e busca transformá-la. Para tanto, a educação internacional deve ser aquela que trabalha a leitura, a escrita e a oralidade no limiar de suas fronteiras. Assim deve ser feita a aula de Português, assim deve ser o ensino que liberta.

Referências

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ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro & interação. 7ª ed. São Paulo: Parábola, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).

______. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GERALDI, João Wanderley. Concepções de linguagem e ensino de Português. In: ______ (Org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2011. p. 33-39.

GUIMARÃES, Camila. O ensino público no Brasil: ruim, desigual e estagnado. Época, 2015. Disponível em: https://epoca.globo.com/ideias/noticia/ 2015/01/bo-ensino-publico-no-brasilb-ruim- desigual-e-estagnado.html#:~:text=Desde%20que%20a%20educa%C3%A7%C3% A3o%20se,sistema%20de%20 avalia% C3%A7%C3%A3o%20do%20ensino. Acesso em: 20 jan. 2021.

LIRA, Miriã. A língua segundo Saussure - Linguística. Cola na Web, 2020. Disponível em: https://www.google.com/amp /s/www.coladaweb.com/literatura/ a-lingua-segundo-saussure-linguistica/amp. Acesso em: 05 jan. 2021.

MOTA, Bruno. Ceará lidera ranking nacional do Ideb 2019. Site oficial do Governo do Ceará. 2020. Disponível em: https://www.ceara.gov.br/2020/09/ 15/ceara-lidera-ranking-nacional-do-ideb-2019/#:~:text=A%20rede%20p%C3% BAblica%20alcan%C3%A7 ou%20a,para% 206%2C3%20em%202019. Acesso em: 20 jan. 2021.

PORTAL EDUCAÇÃO. A língua e a sociedade. s/d. Disponível em: https://siteantigo.portaleducacao.com.br/ conteudo/artigos/educacao/ a-linguagem-e-a-sociedade/23376#. Acesso em: 05 jan. 2021.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: ALB/Mercado de Letras, 2010. Coleção Leituras do Brasil.

______. Sobre o ensino de Português na escola. In: GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2011. p. 28-32.

Publicado em 17 de agosto de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

JÚNIOR, José Inácio. Língua e sociedade: ensino que liberta. Revista Educação Pública, v. 21, nº 31, 17 de agosto de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/31/lingua-e-sociedade-ensino-que-liberta

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