Um falcão no punho e a alma na página
Priscila Custódio de Brito Silva
Graduanda em Letras – Língua Portuguesa (UFCG)
Um Falcão no Punho, de Maria Gabriela Llansol, é um livro dos sentimentos. Mas, mais do que isso, é a descrição verbal de uma mente humana. É o pensamento concreto no papel. Sei que, dito desta maneira, assemelha-se muito com um diário que, de fato, se é, mais vai além. Não há apenas a descrição de uma vivência ou de um sentimento presente, mas há uma reflexão instantânea do que perpassa a mente dessa personagem e dessa autora, havendo, quase, nenhuma distinção entre as duas, uma vez que a própria Gabriela já mencionou que não há distinção entre a vida e a literatura, entre a vida e a escrita. Não existe uma dissociada da outra.
Com uma linguagem extremamente poética e metafórica, Llansol escreve uma narrativa de inações, ou seja, sem ações. Distanciando-se da narração tradicional, não há uma complicação, um clímax, um desfecho. Não há um enredo central que, epicamente, progrida e detenha ferozmente o olhar do leitor para a história, ansiando para a página final e o encerramento da aventura. Não há uma pluralidade de personagens, de espaços, de diálogos. Pois, então, o que há? Uma alma na página. A mente llansolana materializada no papel e a necessidade de reinventarmos a nossa maneira de leitura.
Assim, é frequente lidar com um estranhamento à primeira leitura, às primeiras páginas transcorridas, pois ainda não estamos inseridos no universo Llansol. Quando, inocentemente, levamos a capa do livro para a esquerda e nos deparamos com o trecho “Tal como sou acompanhada pelos lagos – águas adormecidas, naturais e duráveis – de igual modo deve fazer parte da sombra, / que se desloca comigo, / inscrever os dias estendidos por longos períodos de tempo” (p. 9), temos o impacto metafórico dessa autora que, durante toda a narrativa, se utiliza de comparações e cria imagens para buscar compreender sua visão sobre o assunto redigido.
Com esse parágrafo inicial, já se faz possível perceber que, apesar de tratar-se de um diário, será diferente de qualquer outra experiência literária outrora vivida. Não se pode iniciar Um Falcão no Punho detido no tempo, na eterna pressa moderna, pois, para estabelecer conexões das imagens de Llansol, é necessário se debruçar, é necessário, de fato, desenvolver um laço afetivo com o livro, uma vez que a linguagem não é puramente decodificação, mas criptografada com a poética.
Ainda abraçados com o primeiro parágrafo do livro, percebemos que, além das imagens abstratas que a autora produz através das descrições e metáforas, ela também se utiliza da essência do concretismo modernista para materializar o deslocamento da sombra consigo, de modo que, no livro, os trechos são postos paralelamente, como se fossem versos. Assim, podemos ressalvar mais uma característica desta obra: o hibridismo de gênero.
Um Falcão no Punho foi publicado em 1985, situado, desta forma, na Literatura Contemporânea, que se iniciou na segunda metade do século XX. Uma questão bastante suscitada neste período foi a (in)existência dos gêneros literários, tendo sido hipotetizado pelo filósofo Benedetto Croce que estes não existiam. Todavia, na atualidade, é mais fortemente aceita a teoria de René Wellek e Austin Warren: os gêneros existem; são institucionais; são híbridos; são descritivos; pressionam e são pressionados pelo escritor no ato/processo da criação literária.
Podemos atestar essa teoria ao observarmos o diário de Llansol, pois se trata de uma narrativa, como se é o gênero diário, mas redigido com uma linguagem extremamente poética e rica em metáforas, características mais próximas do gênero poema. Além disso, como já mencionado anteriormente, a autora se utilizou da poesia concreta ao descrever o acompanhamento da sombra ao seu lado. Assim, identificamos estes rompimentos de limites dos gêneros e compreendemos que, na contemporaneidade, estes voam até onde a criatividade e a ousadia do autor idealizar.
A autora também se utiliza de outros recursos de formatação, como o negrito, mas nos parece que as suas intenções são mais intrínsecas que as apenas ditadas pelas normas que regem a escrita. Podemos perceber essa exploração no trecho “Se agora fizesse dia eu não me alegraria, de tal modo / eu vivo, / nem me voltaria com igual acuidade para a obra suspensa que vai seguir-se” (p. 13); nesse trecho, Llansol revela-nos que a noite lhe traz mais alegria que o dia e podemos estabelecer uma relação de que, ao destacar essa frase, talvez este negrito sugerisse a própria noite, a escuridão que habita este turno, além de, sonoramente, funcionar quase como um brado, principalmente pela autora ter isolado esta expressão em uma única linha.
Em Um Falcão no Punho, que é uma narrativa, a narradora deste diário também é uma escritora, assim, em certos momentos, destacados pela utilização do itálico, lemos a produção em andamento dessa protagonista, desta forma, apreciamos simultaneamente duas histórias. No escrito datado em 7-11 de junho, localizado na página 16, ocorre uma fusão destes dois textos de maneira repentina:
É a introdução de Engrácia que, ao ver-me trabalhar com a agulha, percebe imediatamente que as transformações são o nosso pão quotidiano que nos falta, e que vai ler o que está escrito sobre a mesa, e demonstrado pela candeia que havemos de apagar, os legumes que há-de trazer do jardim e preparar para o almoço, ficando ela, afinal, a pôr no devido tom a sequência narrativa.
Por sermos surpreendidos, temos a mesma sensação de Engrácia ao, curiosamente, ousar ler o texto de sua senhora sob a mesa. É bastante interessante observarmos todas as fusões que acontecem nesse curto período: o início de um texto literário, a antecipação da ação de Engrácia, as ordens do que ela deve fazer para a casa e, ao fim, uma observação textual de narrativa. Essa mistura causa no leitor uma sensação nova, pois, até o presente momento, nos reconhecíamos na figura da protagonista, em um processo cada vez mais imersivo em sua mente, quando, repentinamente, nós nos enxergamos na óptica da criada. Esta é, sem dúvidas, mais uma fabulosa particularidade dessa obra divisora de águas de Maria Gabriela Llansol.
Desta forma, justamente pela dupla narrativa que lemos ao iniciarmos o diário, observamos a essência da metalinguagem, uma linguagem que serve para descrever ou falar sobre outra linguagem. Percebemos o quanto a escrita é importante para a narradora que foi acometida por uma doença da fadiga e “só [lhe] restavam forças para, na imobilidade, ler, acrescentando-lhes o gozo ilícito do [seu] próprio corpo. Sob o signo da falta, [ela] gozava e lia e, agitando-[se], sem violência, nesta contradição fundava a escrita” (p. 10), assim a leitura e a escrita para a protagonista não era uma opção, mas uma necessidade, tal qual sua respiração, pois, só através delas, gozava das limitações que seu corpo e sua vida não a permitiam. A metalinguagem perpassa, pois, toda a narrativa, pois é através da linguagem, da escrita, que há a expressão desta.
Há um sentimento de não pertencimento bastante forte na obra, o chamado não lugar, que se configura, segundo Marc Augé, como um espaço intercambiável onde os seres humanos permanecem anônimos e que não possuem significado suficiente para serem considerados “lugares”. Observamos esta característica no trecho “É a minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém” (p. 11).
Assim como as teorizações dos gêneros, o não-lugar é muito discutido atualmente, por, sobretudo, revelar uma sensação característica da contemporaneidade. Por inúmeros motivos, precisamos, hoje, nos deslocar frequentemente, mesmo que este deslocamento seja virtual, mas nem sempre nos sentimentos pertencentes, muitas vezes parece-se muito mais com uma intercessão entre dois pontos, mas, ao invés de haver um duplo preenchimento, há a sensação de não se estar, na verdade, em lugar nenhum. Para a protagonista, este deslocamento não é físico, mas possibilitado pela ficção e pelos devaneios que, ao voltar-se para o mundo concreto, não se sente pertencente àquela realidade.
Há, em outro trecho, uma descrição ainda mais intensa deste sentimento: “estive horas e horas deitada na cama, como morta, mas não dormia, considerava-me o espaço estendido; de longe, vinha a recordação de mim própria, em relação ao espaço” (p. 14). É intrigante a maneira como Llansol metamorfoseia-se em ser inanimado, passa da condição de humana para a condição de parede. E, mais além, há um olhar externo para si, como se sua alma, ou consciência, tivesse se desprendido do corpo. Este período evoca uma sensação quase mística ao envolver uma transmutação e um desprendimento.
A conexão da protagonista com os animais e a natureza também é bastante característico, pois há certa vivacidade consciente nestes, de modo que nos parece que, o que a falta de interação com os seres humanos, é suprida através destes seres irracionais. Llansol afirma que “[é] um peso vasto para quem tenha a bondade de fazer[-lhe] companhia” (p. 14), assim, a própria assume a árdua tarefa que é lidar consigo.
Mas, ao lermos “com o gesto de mergulhar o algodão na água de macela; eu espremia-o um pouco, via o líquido odorante escorrer, e deitava com precaução nos olhos de Marfolho” (p. 14), notamos a cuidadosa descrição adotada pela protagonista, que não fazia esta atividade de maneira indiferente, mas com zelo em cuidado à vida do seu amigo, o gato Marfolho. Ainda neste parágrafo, a autora redige uma listagem de seres inanimados: a toalha azul, a macela, as flores brancas, o copo de vidro, e traz a curiosa frase “os seres em perigo de vida”, e, mais uma vez, temos a animação, afeto e cuidado por de seres ausentes de alma.
Observamos igual animação perante as árvores: “cremos que há árvores que agem mentalmente” (p. 38). Esta é uma imagem muito bonita criada por Llansol. Sabemos que a árvore é um ser vivo, que alimentasse através da fotossíntese e que libera oxigênio para o alívio dos nossos pulmões, mas, a autora coloca-a como ser pensante, racional, e ainda diz-nos que “o pensamento não é o raciocínio, é um feixe de reflexões, de sentimentos”, assim, mais do que pensar, as árvores sentem. Em outro recorte, a protagonista escreve “o meu jardim cuidava espontaneamente de mim” (p. 33). Mais uma vez, lidamos com esta ação mútua de amizade, de afetividade, entre Llansol e a natureza, entre a autora e os seres inanimados, com um olhar cuidadoso para o termo “espontaneamente”, diferentemente do apontamento outrora às gentes “sou um peso vasto para quem tenha a bondade de fazer-me companhia”.
Mas, sobretudo, falar de Llansol é falar de uma alma escancarada a quem queira invadi-la através das letras. Há uma indissociável conexão entre a literatura e a vida nesta autora, sendo impossível trazer trechos isolados que confirmem esta afirmativa, pois são encontrados em toda a extensão do diário. Há, de maneira única, uma mente impressa nas páginas deste livro. Conseguimos, quase sinestesicamente, sentir a produção dos pensamentos e reflexões que acontecem no cérebro de Maria Gabriela Llansol. Nos tornamos, ao menos um pouco, Llansol também.
Por fim, que assim como Gabriela, possamos nos salvar através da língua e da literatura (p. 12) e, ao escrevermos, que, mais do que palavras, tenhamos a liberdade de sermos nós mesmos impressos na poética (p. 10), desvencilhados de pudores, pois a escrita e o medo são incompatíveis (p. 14), e o texto, mais do que signo, é um ser (p. 45). Que a indissociável ligação entre a vida e a literatura, uma como extensão da outra, também se aplique à nossa existência. Que, uma vez imersos no universo llansolano, jamais saiamos iguais dessa experiência singular chamada Um Falcão no Punho.
Referência
LLANSOL, Maria Gabriela. Um falcão no punho. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
Publicado em 21 de setembro de 2021
Como citar este artigo (ABNT)
SILVA, Priscila Custódio de Brito. Um falcão no punho e a alma na página. Revista Educação Pública, v. 21, nº 35, 21 de setembro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/35/um-falcao-no-punho-e-a-alma-na-pagina
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