Análise do foco narrativo em "Ópera dos Mortos": uma contribuição com a prática docente de Literatura Brasileira no Ensino Médio

Cleiliane Sisi Peixoto

Graduada em Letras/Língua Portuguesa (UFG), doutora em Estudos Linguísticos (Unesp), professora de Linguística e Língua Portuguesa (IFG - câmpus Goiânia)

Uma das características marcantes da literatura contemporânea no Brasil é o pluralismo de estilos. Segundo Tacca (1983), como o estilo de um narrador não consiste tanto no que conta, mas no modo como conta, no romance moderno, frequentemente ocorre a adoção por parte do narrador de várias formas de narrar a história, o que resulta numa focalização variável e múltipla dos fatos contados. Essa tendência se justifica pelo propósito do escritor de analisar a psique das suas personagens – geralmente apresentadas como seres angustiados –, a fim de (nos levar a) conhecer todos os seus dramas interiores, pois, ao focalizar a história com “os olhos” das personagens, a partir de seus pontos de vista, o narrador revela-nos suas almas.

Além de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Osmar Lins e Lya Luft, enquadra-se também nessa mesma linha de sondagem psicológica Autran Dourado. De acordo com Coutinho (1997), esse escritor demonstra uma notável predileção por consciências desde seus primeiros contos e novelas, o que é evidente a partir do uso recorrente do fluxo de consciência como recurso de narração em suas obras, haja vista que o referido fluxo, também denominado stream of consciousness, stream of thought e stream of subjective life, é uma apresentação do que se passa na consciência da personagem tomada como foco.

Ópera dos Mortos, obra publicada por Autran Dourado em 1967, foi listada pela Unesco para integrar a Coleção de Obras Representativas, haja vista que, ao tratar do universo psicológico e do destino humano de seres submetidos às condições de vida apresentadas na obra, propicia uma reflexão aprofundada acerca do existencialismo humano, contribuindo para o amadurecimento da visão do leitor sobre aspectos diversos da vida.

No romance, o foco narrativo é distribuído alternadamente pelas personagens principais, e, na captação das suas consciências, a angústia existencial é vazada por meio de longos fluxos de consciência que revelam a psique de seres humanos submetidos às pressões sociais, divididos entre seus desejos e suas impossibilidades. Assim, “ao mesmo tempo em que se conta a ação, perscrutam-se se os personagens, ou melhor, deixa-se a personagem trazer à tona suas reflexões” (Megale; Matsuoka, 1980, p. 267).

Não obstante a relevância do estudo do romance em discussão, muitos professores de Literatura Brasileira e/ou Língua Portuguesa do Ensino Médio alegam não trabalhá-lo em sala de aula, por não conhecê-lo. Assim, com o propósito de contribuir com a prática educativa docente, este trabalho tem o objetivo de analisar o foco narrativo do romance Ópera dos Mortos, com o propósito específico de captar os fluxos de consciência vazados pela introspecção do narrador nos pensamentos e sentimentos das personagens, a fim de conhecer o homem psicológico constituinte de cada uma. Para tanto, este estudo toma como base as contribuições teóricas de autores especialistas, como Bourneuf e Ouellet (1976), Coutinho (1997) e Tacca (1983), entre outros.

O texto do artigo apresenta-se organizado em três seções. A primeira, “Ópera dos Mortos: enredo”, apresenta o enredo da obra; a segunda, intitulada “A consciência narradora como instância produtora do discurso narrativo”, discute a construção do discurso narrativo, com o objetivo de melhor esclarecer o propósito da adoção pelo narrador de diversos pontos de vista para a construção da narrativa; a terceira seção, “O homem psicológico, segundo o narrador”, apresenta os sentimentos, os pensamentos e os dramas internos das personagens principais do romance, com o intuito de revelar o homem psicológico constituinte de cada uma. Por fim, apresentam-se as considerações finais sobre o trabalho, espaço dedicado às reflexões alcançadas após o desenvolvimento do estudo.

Ópera dos Mortos: enredo

Segundo Autran Dourado (1976), Ópera dos Mortos é um romance constituído de blocos distintos, de modo que cada um possui sua técnica, tratamento, ritmo e estilo próprios, não uniformes, podendo ser considerados verdadeiros contos, rompendo, de certo modo, com os padrões da composição e da estrutura do romance.

No início do romance, que se é composto de nove capítulos, é-nos retratada a história da família Honório Cota. O coronel João Capistrano Honório Cota e sua esposa, dona Genu, há muito tempo tentam ter um filho, que nunca vem a nascer, por não ultrapassar os seis meses de gestação, até que, finalmente, a personagem consegue dar à luz Rosalina.

Respeitado por toda cidade, com a qual mantém uma boa relação de amizade, João Capistrano vive com sua família na Fazenda da Pedra Menina, em Minas Gerais. Entretanto, ao ser traído pela população, por motivos políticos, fecha-se para todo o povo, contando somente com amizade de Quincas Ciríaco, filho do empregado de seu falecido pai.

Quando dona Genu falece, o coronel para a pêndula do relógio-armário que certa vez comprara, como se, para ele, o tempo parasse naquele instante. Ao contrário do que a população imagina, João Capistrano fecha-se ainda mais para a cidade após a morte da esposa, passando a viver na fazenda somente com sua filha, Rosalina. Com o falecimento do pai, moça adere ao seu ritual, parando o relógio de bolso de João Capistrano e pendurando-o na sala. Como o genitor, a moça dá as costas para todo o povo e se tranca no sobrado, vivendo isolada do mundo, apenas com a companhia da criada muda, Quiquina, que vende na cidade as flores de seda e papel fabricadas por Rosalina.

Assim vivem somente as duas, até que um dia chega ao sobrado Juca Passarinho, que, também chamado de José Feliciano e Zé do Major, passa a trabalhar como agregado na casa de Rosalina. Embora a relação com o agregado seja fria e objetiva, a moça passa a se preocupar com a vida noturna do rapaz, que, mesmo conservando respeito pela patroa, sente-se por ela atraído. Certa vez, após beber bastante enquanto espera o agregado chegar de sua “farra” noturna, Rosalina e Juca Passarinho se beijam e começam a se acariciar durante as noites, não obstante a permanência da frieza e da objetividade entre eles na relação diurna, conforme a determinação da patroa, que, sempre ao se relacionar com o empregado, grita pelo nome de Emanuel, filho de Quincas Ciríaco, com quem ela quase se casara.

Por reprovar o tipo de relacionamento que os dois mantêm à noite, Quiquina censura Rosalina com os olhos e maltrata Juca Passarinho, por quem sente um ódio imenso, ainda mais crescente com o advento da gravidez da moça. Por não desejar a criança, Quiquina a mata assim que Rosalina lhe dá à luz e ordena a Juca Passarinho que a jogue nas voçorocas. Em virtude de toda a complicação sofrida durante o parto, Rosalina enlouquece e Juca Passarinho vai-se embora.

A consciência narradora como instância produtora do discurso narrativo

Para melhor compreendermos o propósito da introspecção do narrador nos pensamentos e sentimentos das personagens de Ópera dos Mortos, faz-se necessário o nosso entendimento de que o romance, conforme Bourneuf e Ouellet (1976), é o domínio fenomenológico por excelência, o lugar para se estudar a forma pela qual a realidade nos aparece ou pode nos aparecer. Prova disso é que o romance, segundo Tacca (1983), era considerado – aqui é necessário ressaltar que o autor não precisa a época – o instrumento mágico mediante o qual podíamos penetrar em todas as consciências, a fim de tomarmos conhecimento de todos os seus dramas.

No entanto, salienta esse último autor que a narrativa é “um relato assumido por um narrador, numa determinada forma, que alude a um dado tempo e nos põe em contacto com certas personagens” (Tacca, 1983, p. 14). Portanto, a diegese não possui rigorosamente existência autônoma; ela se dá através do discurso de um narrador, cuja voz constitui a única realidade do relato, de modo tal que, sem narrador, não há romance.

O narrador não se identifica com o autor, pois ele representa, enquanto produtor do discurso narrativo, uma construção, uma criatura fictícia do autor. Por isso, a função de sua voz é representar, produzir intratextualmente o universo diegético e, além do mais, organizar as estruturas do texto narrativo. Portanto, em virtude de a identidade do narrador se situar no plano da enunciação, e não no do enunciado, ele constitui uma abstração.

Segundo Todorov (apud Silva, 1974), o plano do enunciado se difere do plano da enunciação à medida que, enquanto o primeiro compreende a realidade evocada, as personagens e os fatos, o segundo diz respeito não aos fatos narrados, mas ao modo como o narrador, que relata a história, dá ao conhecimento do leitor esses mesmos fatos, e o romance, “muito mais do que um modo de ver, é um modo de contar” (Todorov apud Silva, 1974, p. 42).

É, portanto, nesse sentido que o romance se cinge ao ponto de vista do narrador, “é a realidade humana que ele pretende descrever de determinado ângulo” (Jean Pouillon apud Tacca, 1983, p. 14). Por ter livre arbítrio para narrar, segundo Schuler (1989), o narrador pode escolher o ângulo de observação, pode ver os acontecimentos de perto ou a distância, aproximando-se ou distanciando-se do objeto. Assim, Bourneuf e Ouellet (1976, p. 106) definem o ponto de vista: “the point of view, the focus of narration, é o ângulo de visão, o foco narracional, o ponto de ótica em que se coloca o narrador para contar a sua história”.

Portanto, segundo a técnica do ponto de vista, o narrador instala-se de algum modo no pensamento de uma ou mais personagens, a fim de nos descobrir uma realidade posta em perspectiva. Logo, o fato narrado parte da ótica da personagem em que o narrador se instala, já que esse último se atém à visão individual das personagens, contando os fatos em nome deles. Todavia, segundo Tacca (1983, p. 73), o que se diz “não é o que é, mas aquilo que os personagens creem que é”, o que decorre daquilo que a consciência narradora supõe que seja.

Assim, a importância da introspecção do narrador nos pensamentos e sentimentos das personagens está justamente no sentido de que ela permite ao leitor adentrar o universo psicológico do Homem analisado, levando-o a conhecer a conduta desse ser, pois, conforme Bourneuf e Ouellet (1976, p. 224-225), “o facto psicológico não é nem espiritual, nem corporal, passa-se no homem todo inteiro, porque não é senão a conduta desse homem tomado no seu conjunto”.

De acordo com Tacca (1983, p. 73),

a narração ganha em vibração humana se o narrador em lugar de conceder a si próprio um ponto de vista privilegiado para sua informação se cingir aquela que pode ter os personagens optando por ver o mundo com os olhos deles.

No caso de Ópera dos Mortos, ao adotar pontos de vista vários para a construção da narrativa, o narrador leva ao conhecimento do leitor universos interiores também vários de seres submetidos às condições de vida angustiantes retratados no romance, através de longos fluxos de consciência, possibilitando a ampliação da visão acerca do existencialismo humano.

Portanto, é devido a essa apresentação do universo íntimo das personagens, cujos pensamentos, percepções e sentimentos são desvendados, que o narrador se revela completamente onisciente em Ópera dos Mortos; caso contrário, servir-se-ia somente da descrição e da narração crua e fria dos fatos. Em virtude de variar seu ponto de vista, para o alcance de seus propósitos, que ele pode ser classificado como narrador onisciente múltiplo seletivo (multiple selective omniscience), segundo a tipologia de Friedman (apud Leite, 1987). No caso desse tipo de onisciência, a história é narrada através dos fluxos de consciência das personagens, e os canais de informação e os ângulos podem ser vários.

Com efeito, o narrador não é obrigado a manter rigorosamente constante do princípio ao fim do romance um determinado tipo de focalização de acordo com as suas necessidades e conveniências pode fazer variar a focalização instituindo assim uma polimolidade focal sem que isso prejudique especificamente a qualidade da obra (Silva, 1974, p. 101).

Podemos afirmar que a seleção dos pontos de vista pelo narrador de Ópera dos Mortos se justifica pelo propósito de alcançar o objetivo de levar ao conhecimento do leitor a história conforme ele a sabe, ou seja, conforme a sua maneira de ver os fatos. Quanto a isso, afirmam Bourneuf e Ouellet (1976) que não há modo de apresentação privilegiado; tudo depende do fim visado e do gênio do narrador.

Portanto, nunca escutamos propriamente as vozes das personagens, nem mesmo quando dialogam: “por muito que diferenciam as vozes, o narrador permanecerá sempre no primeiro plano da audição e da consciência” (Kayser apud Tacca, 1983, p. 14)

Como se trata de uma narrativa desenvolvida sob as óticas de vários narradores, várias são as vozes que nela coexistem. Daí, seu caráter polifônico, que já é revelado desde a primeira palavra do título, Ópera, que significa discurso lírico dramático (música) de muitas vozes. Por isso, para Tacca (1983), o mundo do romance é basicamente um mundo insólito, um mundo cheio de vozes, sem que uma só seja real.

Desse modo, é possível afirmar que a consciência narradora é a instância produtora do discurso narrativo, e tal constatação se justifica não somente com base em tudo que foi discutido, sobretudo com base no posicionamento do narrador – suposto habitante da cidade mineira onde se passam os fatos narrados – frente à história de Ópera dos Mortos, que convida um presumível visitante a ver os acontecimentos à sua maneira, de acordo com o que ele sabe sobre a história. O propósito do narrador de adotar os vários pontos de vista das personagens para contar a história explica-se à medida que, ao relatar os seus pensamentos e sentimentos mais íntimos, revela-se onisciente, o portador do saber absoluto, o que consequentemente convencerá o visitante sobre a sua versão da história.

Logo no início do romance, o narrador leva o visitante/leitor a ver os fatos à sua maneira:

O senhor querendo saber, primeiro veja [...]; O senhor atende depois para o velho sobrado (...) imagine, mais do que com os olhos, os olhos são apenas o conduto, o olhar é que importa. Estique bem a vista, mire o casarão como um espelho, e procure ver do outro lado, no fundo do lago, mais além do além, no fim do tempo (Dourado, 1999, p. 11).

Um recuo no tempo, pode-se tentar. Veja a casa como era e não como é ou como foi agora [...] só para a gente ver, a gente carece de ver (Dourado, 1999, p. 12).

Se quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar os seus mínimos gestos, como ela acompanhava os passeantes, não com aqueles olhos embaciados, aquela neutralidade morna. Mas veja antes a casa, deixa Rosalina para depois, tem tempo (Dourado, 1999, p. 14).

Portanto, é possível notar que, por orientar a visão dos fatos do visitante/leitor, levando-o a adentrar profundamente a história, e mais, a recuar no tempo para melhor vê-la, o narrador conduz a narrativa ao seu modo. É, pois, a instância produtora do discurso narrativo.

Além disso, é preciso ressaltar que, em virtude de o narrador assumir o papel de habitante da cidade mineira onde se passam os fatos da história, o discurso narrativo constitui um saber que provém de uma consciência que é a do povo. Isso se torna perceptível em certas passagens do texto:

É, a gente tinha respeito dele. Depois de algum tempo, o que ele (João Capistrano) falava virava lei (Dourado, 1999, p. 20).

Quando um ano depois dona Genu morreu, a cidade inteira achou que tinha chegado a hora de reparar o malfeito, recompor tudo. Ele veria que éramos solidários com ele na dor e na desgraça (Dourado, 1999, p.39).

A morte de dona Genu em nada mudou as suas relações com a cidade, como a gente esperava (Dourado, 1999, p. 40).

De repente, a gente voltava ao sobrado (Dourado, 1999, p. 241).

Daí a gente ficou sabendo que toda noite, há muitas noites, tarde da noite, quando todos dormiam, Rosalina saía do sobrado e ia por aí cantando a sua cantiga no mundo da noite. O que ela falava na sua cantiga nunca ninguém soube. Alguns diziam como eram os versos, mas a gente via que era pura invenção. Nessas horas, a gente imagina, inventa muito (Dourado, 1999, p. 245-246).

Ela sorria feito se fosse para a gente. Mas sabíamos, não era para nós que ela sorria (Dourado, 1999, p. 247).

Lá se ia Rosalina, nosso espinho, nossa dor (Dourado, 1999, p. 248).

Esses são, portanto, exemplos que revelam o narrador enquanto integrante do povo, desprezado pelo coronel Honório Cota e por sua filha, Rosalina, o que resulta de um saber dos fatos, de uma perspectiva da história narrada em Ópera dos Mortos também proveniente do povo.

Desse modo, a narrativa se constrói com base na maneira do narrador de ver a história, no seu ponto de vista sobre as personagens, haja vista que é a consciência narradora a produtora do discurso narrativo. Por isso, como já foi ressaltado, para convencer o visitante/leitor sobre a sua versão de tal história, o narrador adentra o universo psicológico das personagens e descobre seus pensamentos mais íntimos, pretendendo se revelar completamente onisciente.

Além disso, ao se instalar nos pensamentos das personagens, adota as perspectivas delas quanto aos acontecimentos narrados. Portanto, a adoção de uma perspectiva e não de outra para a narração de determinado fato parte da intenção do narrador de fundamentar o juízo que ele faz da conduta da personagem tomada como foco.

O homem psicológico, segundo o narrador

Rosalina

De acordo com Dourado (1976), Rosalina significa rosa branca, flor de seda; floresce em maio, mês das noivas, mês de Maria. É somente no terceiro capítulo do romance, Flor de Seda, destinado exclusivamente a Rosalina, que o narrador começa a revelar a conduta dessa personagem, com o propósito de levar ao conhecimento do leitor o interior de alguém que vive sob as mesmas condições de vivência que as de Rosalina.

Segundo o narrador, essa personagem se revoltara contra o povo porque não concordara com que ele havia feito com seu pai: “Não, eles não podiam ter feito aquilo com ele” (Dourado, 1999, p. 43). Isso justificaria para o narrador a postura de Rosalina: “tinha de se mostrar dura e fria, sem nenhuma emoção, feito o pai com relógio-armário, três horas. É a marca dos Honório Cota” (Dourado, 1999, p. 47).

Segundo o narrador, esse fato mudou completamente a vida de Rosalina, que não mais criava expectativas para o futuro, como se, pelo fato de viver isolada do mundo, nada mais que não fosse o costumeiro pudesse lhe acontecer:

Engraçado ela casar. Porque é engraçado? Ela bem que podia casar. Emanuel bem que quis. Não agora, antes, quando nada ainda tinha acontecido (Dourado, 1999, p. 43).

Por que estava tão aflita? Rosalina buscava dentro de si o motivo de tanta inquietação. Não podia ter acontecido nada, nada acontecia com ela. Nada de especial, um dia como os outros (Dourado, 1999, p. 47).

Além disso, é-nos revelada a grande influência de seu pai nessa sua atitude, pois lhe pedira que tivesse orgulho e não desse confiança ao povo da cidade:

Não, de jeito nenhum ela pensava em se casar. O pai. Você não deve olhar pra nenhum rapaz, não deve dar confiança pra essa gentinha. Depois do que aconteceu. Essa gente não presta. A gente também deve ter um pouco de orgulho. Ninguém vai pisar no orgulho da gente. Eles vão ver (Dourado, 1999, p. 50).

Por viver isolada, vítima de seu orgulho, a passagem do tempo já não tinha mais sentido para Rosalina, pois nada além do habitual poderia lhe acontecer. “Se não fosse por causa de Quiquina, até a pêndula parava, para que nada naquela casa marcasse o tempo. O tempo seria só a noite e o sol, as duas metades impossíveis de parar” (Dourado, 1999, p. 51).

Ao julgar traidoras “as pessoas da rua”, Rosalina acredita ser melhor não estabelecer intimidade entre ela e o seu agregado, Juca Passarinho: “Precisava cortar-lhe as asas, ele devia conhecer o seu lugar; ela era a dona da casa, ele um mero empregado” (Dourado, 1999, p. 88).

Já com a presença do rapaz em casa, no início do quinto capítulo, o narrador continua a conferir voz a Rosalina para revelar o que o empregado significa para ela: “sua voz veio dar vida ao sobrado, encheu de música o oco do casarão” (Dourado, 1999, p. 99). Apreciava ouvi-lo, um homem tão despachado, de prosa tão fácil” (Dourado, 1999, p. 99). Por isso, Rosalina se pergunta: “como foi possível viver tanto tempo sem ouvir voz humana? Só os grunhidos de Quiquina? (Dourado, 1999, p. 99). Além disso, a segunda razão pela qual ela não dispensa José Feliciano é o sossego que lhe dá a sua presença.

O narrador, com o fim de revelar o interesse de Rosalina pelo agregado, apesar de sua frieza e de seu orgulho, revela os seus pensamentos, demonstrando que ela se põe a pensar em Juca Passarinho à noite, quando ele sai para a “farra”:

Quando dava conta de si estava pensando nele na rua. Boa coisa não é, dizia com raiva de José Feliciano, com raiva de si própria por estar pensando numa pessoa tão insignificante. Mas era difícil deixar de pensar. Com certeza metido com mulher-da-vida. Porco, imundo. No Curral-das-éguas. [...] Éguas o que elas são. Imundas, animais de pasto, imundas feito ele. Não é nada dela. Se está assim é porque de noite a casa fica abandonada demais, é perigoso. Porque antes da chegada de José Feliciano não pensava na solidão, no perigo que era as duas sozinhas no sobrado? Rosalina não conseguia achar explicação (Dourado, 1999, p. 98).

O narrador revela os sentimentos de Rosalina por Juca Passarinho quando se encontram à noite: “Ela deixava, ela queria, agora ela queria e deixava” (Dourado, 1999, p. 158). No entanto, para o narrador, esse é um sentimento noturno, pois, durante o dia, ela o despreza; é outra: “Ele, ela não queria mesmo ver, com ele agora sabia como lidar” (Dourado, 1999, p. 164). Logo, o partido que o narrador toma da personalidade de Rosalina é que há duas Rosalinas: a diurna e a noturna.

Adiante, o narrador revela a importância dada por Rosalina aos pensamentos de Quiquina sobre a moça, que cuida pela manutenção de sua imagem de mulher fria e orgulhosa:

Quiquina na vigília, seu cão-de-guarda. [...] Ali a licoreira aberta na sua frente. Quiquina não podia ver. Por que Quiquina nunca mostrava o seu desagrado por ela beber tanto vinho? E se ela arranjasse uma doença para justificar sua bebedeira? Quiquina não ia acreditar, sabia do seu vício (Dourado, 1999, p. 149).

Quiquina no vão da porta viu Rosalina, Rosalina se desvencilhou dele (de Juca Passarinho), deu um grito de horror apontando a porta onde viu Quiquina (Dourado, 1999, p. 156).

A cara de Quiquina de repente. Os olhos arregalados, os olhos que lhe diziam coisas terríveis (Dourado, 1999, p. 159).

Se não fosse Quiquina, tinha ido mais longe, meu Deus. Por que Quiquina foi aparecer? Agora tinha de enfrentá-la (Dourado, 1999, p. 160).

Será que Quiquina irá perdoá-la? (Dourado, 1999, p. 163).

O partido que o narrador toma de Quiquina é que ela constitui o impeditivo para a felicidade de Rosalina, pois, embora não fale, censura-a com os olhos, além de estar sempre vigiando-a, o que de fato atormenta a moça.

O temor de Rosalina é, portanto, que Quiquina pense que ela é humana, que tem desejos, vontades, o que contrariaria a sua promessa de ser fria e indiferente a todos. Além do mais, é perceptível, a partir do excerto narrativo adiante, que Rosalina não se preocupa somente com a opinião de Quiquina a respeito dela, mas sobretudo com a do povo: “Mas o vinho não, a cidade nunca podia saber se sua fraqueza. Para a cidade ela devia ser feito pai, no seu desprezo, no seu ódio silencioso, na sua vingança” (Dourado, 1999, p. 130).

Portanto, parece óbvio que a introspecção do narrador nos pensamentos de Rosalina se justifica pelo seu propósito de fundamentar seu ponto de vista sobre a conduta consequente de uma pessoa que se submete ao isolamento do mundo por orgulho. Além disso, essa revelação do universo íntimo da personagem é útil para justificar suas atitudes, como a maneira indiferente de tratar José Feliciano durante o dia, em detrimento do modo com a qual lida com ele à noite. Quando lúcida, durante o dia, na frente de Quiquina, Rosalina se impõe ao empregado, demonstrando frieza e dureza; à noite, quando embriagada, são suas fraquezas que entram em cena; seus desejos humanos falam por ela.

Quiquina

Segundo Dourado (1976, p. 118), Quiquina é uma onomatopeia. Quiquiqui significa indivíduo gago, tatibitate. Quiquina, que é muda, não surda, é uma ponte entre o sobrado e a cidade, porém, uma ponte inútil, pois por ela não se podia atravessar, uma vez que não aprova o relacionamento noturno de Rosalina com Juca Passarinho. Para Quiquina, o empregado se compõe de duas imagens: “asas de um pássaro e uma espingarda” (Dourado, 1999, p. 98).

Para o narrador, José Feliciano nunca fora bem-vindo por Quiquina naquela casa; parece que ela prevê que algo de ruim iria acontecer: “No começo ela não via o homem com bons olhos, tinha suas desconfianças. [...] Nada de bom podia sair dali. Aquele homem não é bom, a gente vê logo. [...] Bem que ela não quis que Juca Passarinho entrasse para o sobrado” (Dourado, 1999, p. 102).

No entanto, para o narrador, Quiquina odeia Juca Passarinho não somente porque sabe que “nada de bom podia sair dali”, mas porque ele roubara algo que antes pertencia apenas a ela: a atenção de Rosalina. E é isso que podemos notar no fragmento: “Era tão bom antes as duas sozinhas. Tão bom, Rosalina conversava só com ela, só ela ouvia a voz de Rosalina. Agora tinha ele para beber as suas palavras” (Dourado, 1999, p. 109). Quiquina sabe que a moça, apesar de querer se demonstrar dura e orgulhosa, gosta da presença de Juca Passarinho:

Quando não tinha nada para fazer, a gente via que ela gostava de conversar com ele. Rosalina eu chegava até rir dos casos dele. O riso doía em Quiquina. Como se fosse um carinho que lhe tinha sido roubado, um riso que devia ser só para ela, só dela. (Dourado, 1999, p. 109).

Para o narrador, Quiquina sente ciúmes de Rosalina com empregado exatamente porque ele, ao contrário da velha, possui algo que o aproxima da moça: a fala. Diante disso, Quiquina, muda, sente-se diminuída e sem muita importância: “Rosalina carecia de voz humana, os seus grunhidos e gestos não lhe bastavam. Ele podia falar, podia entrar mais facilmente no coração trancado de Rosalina. Aquela chave ela não possuía” (Dourado, 1999, p. 109).

Entretanto, embora saiba do caso noturno entre a patroa e o empregado, Quiquina nada diz, pois “fingia não perceber o que se passava de noite na sala. Um acordo silencioso entre elas” (Dourado, 1999, p. 130).

Segundo o narrador, após a gravidez de Rosalina, Quiquina passa a odiar ainda mais Juca Passarinho: “Odiava-o. Os olhos parados em cima dele. Como se desejasse matá-lo” (Dourado, 1999, p. 187). Quanto ao que sente por Rosalina, é o mesmo: Quiquina entente tudo e a perdoa, mesmo porque a velha sabe que a relação noturna entre os amantes se baseia unicamente em sexo. É por isso que Quiquina deseja matar o empregado:

Era capaz de partir a cabeça dele no meio com machado, ele na cama dormindo. Muitas vezes quis acabar com a vida dele, para ele sair da vida de Rosalina; acabar de vez com aquela danação toda noite. Formicida na comida dele, vidro moído, cada dia um tiquinho, como ela ouvia a mãe contar que uma mulher uma vez matou o marido. De que valia ela tomar as dores de Rosalina se ela mesma é que queria toda noite aquela danação? (Dourado, 1999, p. 216).

Para o narrador, Quiquina é de tão grande maldade que ele julga ser mais convincente revelá-la através do fluxo de consciência da velha empregada, que mata o bebê fruto do relacionamento entre Juca Passarinho e Rosalina, porque receia que o empregado queira assumir a criança, além de temer que toda a cidade saiba do ocorrido:

O pior é que ele ia querer bancar o pai, mandar na casa, tinha direito. O pior não era isso, era cidade ficar sabendo. Não, aquele menino não podia viver. E Deus querendo... Mais um anjinho. Melhor mesmo. Feito Dona Genu, a sina. Ela podia ser infértil, como dona Genu (Dourado, 1999, p. 224)

Tudo ia sair bem, Deus querendo. Dando tempo, antes de Rosalina ver o menino. Ela não ia nem desconfiar. Era mostrar depois o bichinho morto. Deus é grande, a gente dá um jeito. Bem pode ser que Nosso Senhor faz sair daí e um anjinho, mais um anjinho que sobrado paria, a sina dessa gente Honório Cota (Dourado, 1999, p. 232).

Portanto, o partido que o narrador toma da personagem Quiquina é que ela é de fato um empecilho para felicidade de Rosalina, pois a vigia e toma as decisões que julga corretas segundo a promessa da moça, que é zelar pela manutenção do seu orgulho, pois Rosalina jamais deveria deixar transparecer para o povo que tem atitudes humanas.

Juca Passarinho

Segundo Dourado (1976, p. 118), José Feliciano pode significar felicidade; Zé do Major, agregado, mandado; Juca Passarinho, alegre, gaiato. Para o narrador, Juca Passarinho é um homem que aparece na vida de Rosalina somente para suprir suas necessidades humanas. Ele lhe dá sexo, dá-lhe conversa. Ele ocupa o espaço que falta na vida íntima de Rosalina. Desde o início, José Feliciano sente admiração pela patroa; acha-a bonita e deseja ganhar um pouco de sua atenção:

Se ela quisesse, ninguém, nenhuma moça da cidade competia com ela em formosura. Tão linda que ele chegava a sonhar com ela: muito vaporosa, os cabelos soltos, os gestos de quem dança nas nuvens e lhe dizia palavras que ele nunca conseguia entender. Quando sucediam esses sonhos, temia sempre acordar, lhe dava uma sensação boa de paz, de uma vida completa e feliz (Dourado, 1999, p. 123).

Não obstante, para o narrador, Juca Passarinho tem pena de Rosalina. Às vezes, não a acha tão dura, como o povo pensa. “Tinha mesmo se afeiçoado a Dona Rosalina, pensava nela até com uma certa pena, uma certa ternura” (Dourado, 1999, p. 122). “Rosalina se mostrava como qualquer vivente, humana, não era como o povo pensava” (Dourado, 1999, p. 95). No entanto, quando o empregado acredita conquistar a simpatia da patroa, ela o esnoba, fato que o leva a ficar confuso e a ter receio de conversar com ela:

Mas quando ele achava que tinha dona Rosalina nas mãos, ela mudava. Mudava tão derepentemente que até parecia não ser a mesma pessoa de há pouco (Dourado, 1999, p. 95).

A cada pergunta que fazia podia se seguir uma reação tão despropositada, tão violenta de dona Rosalina, que ele tinha até medo de perguntar (Dourado, 1999, p. 119).

É por isso que Juca Passarinho acha Rosalina estranha, pensa que ela se compõe de duas: “Que pessoa estranha! Ela o deixava desconcertado pelo mistério do seu ser. Ele não entendia. [...] Ela lhe dava a impressão de duas numa só: quando ele pensava conhecer uma, via que se enganara, era outra que estava falando” (Dourado, 1999, p. 120).

Portanto, é essa estranheza de Rosalina a responsável por suscitar em José Feliciano a curiosidade de conhecê-la, de entendê-la: “Ele queria entender dona Rosalina para melhor viver no sobrado” (Dourado, 1999, p. 122).

Segundo o narrador, o ato sexual é desencadeado não somente porque Juca Passarinho acha Rosalina bonita, mas porque deseja conhecer o lado dela que ninguém tivera acesso, que ninguém conhece, pois tem a pretensão de entendê-la, além do que, para o narrador, no estado em que ele se encontra, “qualquer uma servia. Ficou pensando nas várias mulheres” (Dourado, 1999, p. 136).

Assim, por conhecer o lado de dona Rosalina inacessível a Quiquina, José Feliciano crê que, agora, ele se sobrepõe no coração da patroa. “Agora havia alguma coisa de comum entre eles, de que Quiquina não podia participar” (Dourado, 1999, p. 171). “Agora, Quiquina não era mais do que ele, era o contrário” (Dourado, 1999, p. 172).

No entanto, esse pensamento de Juca Passarinho dura pouco tempo, até Rosalina o trata com desprezo, o que o leva à conclusão de que ela é uma mulher de pedra: “Que mulher, meu Deus, de pedra. Ainda tinha coragem de censurá-lo, depois do que aconteceu” (Dourado, 1999, p. 188). Logo, ele sabe que a noite compartilhada com Rosalina não é de amor. “Não era amor, era alguma coisa muito diferente, alguma coisa estranha e estúrdia que ele não sabia como chamar” (Dourado, 1999, p. 172). Com isso, José Feliciano passa a achar a patroa ainda mais estranha. “Ele não entendia, jamais chegaria a entender Rosalina” (Dourado, 1999, p. 190).

Por isso, de acordo com o narrador, somente o corpo de Rosalina pertence a Juca Passarinho. “Dele mesmo só aquele corpo em febre. Se o corpo lhe pertencia, a alma vagava em longe paragens” (Dourado, 1999, p. 198). Assim, o narrador compara o empregado a um cachorro: “um cachorro que se acostuma com os carinhos do dono e quando volta a querer os mesmos carinhos encontra o dono de um humor diferente e é escorraçado, fica de rabo entre as pernas” (Dourado, 1999, p. 200). Portanto, segundo o narrador, Juca Passarinho representa para Rosalina somente um corpo que pode satisfazer as suas vontades à noite. Logo, ele viera para suprir as suas necessidades humanas.

Considerações finais

Este trabalho propôs analisar o foco narrativo do romance Ópera dos Mortos, de Autran Dourado, com o objetivo específico de captar os fluxos de consciência das personagens principais, a fim de melhor conhecer o homem psicológico que constitui cada uma. O estudo foi motivado pelo intuito de contribuir com a prática docente dos professores de Literatura Brasileira e/ou Língua Portuguesa do Ensino Médio, haja vista que muitos não trabalham com a obra por não conhecerem a sua relevância na literatura brasileira.

O desenvolvimento do trabalho levou à constatação de que a consciência narradora é a produtora do discurso narrativo, de modo tal que a narrativa se constrói com base na maneira do narrador de ver a história. Assim, para fundamentar a sua perspectiva a respeito da história narrada, o narrador faz uso dos fluxos de consciência das personagens, a partir da introspecção nos seus pensamentos e sentimentos, revelando-se onisciente múltiplo seletivo.

A relevância do uso do recurso de introspecção na obra é nos possibilitar conhecer o drama interior das personagens, contribuindo para a ampliação de nossa visão acerca do homem psicológico e emocional que vive nas pessoas submetidas às mesmas condições de vida das personagens retratadas no romance, pois, como o romance é o domínio fenomenológico por excelência, permite-nos tomar conhecimento da forma pela qual a realidade nos aparece ou pode nos aparecer.

Referências

BOURNEUF, R.; OUELLET, R. O universo do romance. Coimbra: Almedina, 1976.

COUTINHO, A. A literatura no Brasil. Era Modernista. São Paulo: Global, 1997.

DOURADO, A. Poética de romance – matéria de carpintaria. São Paulo: Difel, 1976.

______. Ópera dos mortos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LEITE, L. C. M. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1987.

MEGALE, H.; MATSUOKA, M. Literatura e linguagem. São Paulo: Nacional, 1980.

SCHÜLER, D. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989.

SILVA, V. M. de A. e. A estrutura do romance. Coimbra: Almedina, 1974.

TACCA, O. As vozes do romance. Coimbra: Almedina, 1983.

Publicado em 05 de outubro de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

PEIXOTO, Cleiliane Sisi. Análise do foco narrativo em "Ópera dos Mortos": uma contribuição com a prática docente de Literatura Brasileira no Ensino Médio. Revista Educação Pública, v. 21, nº 37, 5 de outubro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/36/analise-do-foco-narrativo-em-opera-dos-mortos-uma-contribuicao-com-a-pratica-docente-de-literatura-brasileira-no-ensino-medio

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