Ensino de História em tempos de crise: a pandemia e o convite à essencialização da História na aprendizagem escolar
Laís Santos de Paula
Professora de História na Educação Básica, mestra em Educação (PPGEduc/UFRRJ), graduada em História (UFRRJ)
Vanessa Canuto Coelho
Professora de História na Educação Básica, mestra em Educação (PPGEduc/UFRRJ), graduada em História (UFRRJ)
Contexto pandêmico
No final do ano de 2019, na China, foi descoberta a existência de um vírus respiratório que se espalha com rapidez. As autoridades de saúde chinesas alertaram o mundo sobre este novo fato e iniciou-se uma forma de limitar o avanço do contágio entre as pessoas com o isolamento social, por conta das características do recém-descoberto coronavírus.
Pouco a pouco, os países do mundo foram detectando casos e iniciando protocolos semelhantes aos adotados pelos chineses. Uma das medidas principais que muitos países do mundo adotaram e que, no Brasil, iniciou-se de forma sistemática a partir do dia 16 de março, foi o fechamento das escolas. Os governos dos estados brasileiros emitiram os decretos depois da detecção dos primeiros casos de coronavírus no fim de fevereiro e da declaração de estado de pandemia pela Organização Mundial da Saúde no dia 11 de março de 2019.
Inúmeros debates estão sendo travados no âmbito acadêmico a fim de identificar o real potencial de transmissão do vírus no ambiente escolar. Diante de todas as incertezas que os cientistas possuem acerca das consequências da doença para o corpo humano, o impacto que o vírus tem sobre nossos sistemas de defesa e como reverter os sintomas da doença, distanciamento social e medidas de proteção, como a higiene das mãos e o uso de máscaras se apresentam como a única solução imediata para controlar a crise sanitária.
Estudos apontam que crianças têm menos potencial de transmitir e ser contaminadas pelo coronavírus (Parsley, 2020), o que diminui os problemas para a volta às aulas em modelo presencial, porém no ano de 2021, o Brasil entrou em um estado de agravamento da Pandemia com o aumento sequencial da média móvel de mortes, colapso do sistema de saúde e o surgimento de novas variantes do vírus que, até o momento, estão se mostrando mais transmissíveis, letais e provocando a contaminação de pessoas que já haviam sido contaminadas anteriormente, os chamados casos de reinfecção.
Por conta do longo período com as escolas fechadas durante o ano de 2020, mesmo com o avanço da pandemia do país, muitos estados e municípios, orientados pelo governo federal, passaram a tratar a educação como atividade essencial. O Decreto nº 10.282/20 define como atividade essencial “aquelas indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”, porém, não existe em seus artigos nenhuma menção às atividades escolares.
Ainda assim, a partir da interpretação do decreto acima citado e a inclusão da educação enquanto atividade essencial, muitos estados e municípios saíram do modelo remoto para o híbrido ou presencial de forma exclusiva. Na rede municipal do Rio de Janeiro, a volta presencial está sendo escalonada, intercalando com atividades remotas, ou seja adotou-se a modalidade híbrida, que é caracterizada pela mistura de atividades a distância e outras presenciais.
É importante ressaltar que as decisões tomadas por tais governos não estão de acordo com as avaliações e orientações de órgãos de pesquisa nacionais como a Fundação Oswaldo Cruz, haja vista que a volta a atividades presenciais deve estar condicionada à diminuição da taxa de contágio, avaliação dos contextos locais e infraestrutura da unidade escolar, como apontado no Manual sobre biossegurança para reabertura das escolas no contexto da covid-19 (Pereira et al., 2020).
Chamamos o que tem se praticado atualmente também como ensino remoto que ocorre de forma emergencial, referindo-se à transposição do processo de escolarização presencial para o modelo à distância, onde as atividades escolares ocorrem sem contato presencial, resguardando o distanciamento social e as estratégias sanitárias atuais para contenção do coronavírus.
Rondini, Pedro e Duarte (2020) afirmam que, diferentemente da EaD, o ensino remoto emergencial não tem como intenção lançar mão de todos os recursos presentes na modalidade EaD. O ensino remoto é uma estruturação que visa somente dar continuidade às ações de ensino-aprendizagem que antes se davam de forma presencial. Portanto, não há uma estruturação preestabelecida para que esse processo aconteça, cada rede de ensino elaborou suas estratégias e gerou as diretrizes para o prosseguimento do ano letivo.
A Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc/RJ), por exemplo, adotou a plataforma Google Classroom para continuar e centralizar o ambiente de aprendizagem. Já a rede municipal de Educação, no ano de 2021, adotou um aplicativo chamado Rio Educa em Casa que contém várias ferramentas, incluindo o Google Classroom. O uso desse aplicativo tem os dados patrocinados pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro para que a questão da conectividade e do acesso à internet não seja um problema para os alunos da rede, porém, muitas vezes, não há nem acesso a um aparelho que possa se conectar à internet ou rede de internet em diversas regiões do Rio de Janeiro.
Na rede estadual, não há resoluções no ano de 2020 que tratem de uma possível adequação curricular que dê conta do cenário de exceção que o isolamento social gerou. Já a rede municipal de Educação instaurou, a partir da Circular nº 20, o biênio 2020/2021, onde fica estabelecido que os alunos não serão promovidos a um novo ano de escolaridade de um ano para o outro, com exceção das séries terminais. Ao longo do ano letivo pandêmico de 2020, a estratégia curricular gerada foi da manutenção de vínculos com os alunos a partir de atividades de reforço escolar, sem o prosseguimento no currículo anual.
No que se refere ao estabelecimento de novos espaços de aprendizagem, é possível perceber que eles foram criados sem avaliar, por exemplo, a adesão dos alunos a esses novos espaços, uma vez que é necessário o acesso a artefatos tecnológicos e a internet de banda larga. A limitação no acesso às tecnologias de informação e internet é uma realidade que pode ser observada tanto no público das escolas pertencentes às redes municipais e estaduais, quanto nas redes privadas de educação.
Porém, não observamos discussões a respeito do conteúdo do currículo desenvolvido num momento de exceção. Este currículo precisa ser adaptado? Quais adaptações seriam necessárias para contemplar a aprendizagem significativa diante desse contexto mundial? A escola sobrevive como instituição, mas não avaliamos o mesmo quanto ao aprendizado.
A escola sobrevive: pareceres normativos do Conselho Nacional de Educação
No dia 28 de abril de 2020, o Conselho Nacional de Educação emitiu o Parecer nº 5/20, que trata sobre a Reorganização do calendário escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da covid-19. Esse documento foi um importante parâmetro para os governos a nível estadual e municipal orientarem o retorno às aulas junto às instituições de ensino.
As principais pautas discutidas pela comissão envolviam as determinações acerca do Calendário Escolar do ano letivo em vigor que fora paralisado pelas medidas de emergência tomadas pelo Governo no mês de março. Também foram abordadas as questões relativas à legitimidade das atividades a distância como forma de validar as horas letivas necessárias à conclusão e encerramento do ano de 2020 para as escolas da rede pública e privada. No que diz respeito à legislação educacional para as diretrizes curriculares, o parecer orienta que:
Em caráter excepcional, é possível reordenar a trajetória escolar reunindo em continuum o que deveria ter sido cumprido no ano letivo de 2020 com o ano subsequente. Ao longo do que restar do ano letivo presencial de 2020 e do ano letivo seguinte, pode-se reordenar a programação curricular, aumentando, por exemplo, os dias letivos e a carga horária do ano letivo de 2021, para cumprir, de modo contínuo, os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento previstos no ano letivo anterior (Parecer CNE/CP nº 5/20, p. 4).
Os “objetivos de aprendizagem” a que o texto destacado se refere são os estabelecidos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) que versam acerca das normas e orientações curriculares para todas as etapas da Educação Básica que devem ser cumpridas e atendidas igualmente pelas instituições de ensino públicas e privadas em território nacional. Ainda sobre a perspectiva dos direitos e objetivos de aprendizagem abordados pelo texto da comissão:
A principal finalidade do processo educativo é o atendimento dos direitos e objetivos de aprendizagem previstos para cada etapa educacional que estão expressos por meio das competências previstas na BNCC e desdobradas nos currículos e propostas pedagógicas das instituições ou redes de ensino de educação básica ou pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e currículos dos cursos das instituições de educação superior e de educação profissional e tecnológica (Parecer CNE/CP nº 5/20, p. 4).
Ainda que aprovado pela Comissão e pelo Conselho Pleno do CNE, o Parecer Normativo nº 5/20 foi encaminhado para homologação do ministro de Estado da Educação, sendo restituído ao Conselho Nacional de Educação para reexame. Apenas em 8 de junho de 2020 foi aprovado pela comissão o Parecer Normativo nº 09/2020 com as considerações e revisões exigidas pelo MEC, que foi homologado, enfim, em 09 de julho do mesmo ano três meses depois que as aulas haviam retornado no formato de ensino remoto).
Nenhum outro tipo de orientação foi dado pelo MEC durante o contexto de ensino remoto na pandemia do coronavírus. O reordenamento curricular, as adaptações, métodos avaliativos, metodologia de ensino e os tipos de atividade escolar ficaram a cargo dos professores e pedagogos que atuam em diferentes contextos sociais e que foram impactados de diferentes maneiras dependendo da localidade, da classe social e do acesso às tecnologias da informação disponíveis. A capacitação da equipe ficou a cargo das redes de ensino.
A postura adotada pelo Ministério da Educação e pelo Conselho Nacional de Educação abriu margem para todos os tipos de estratégias pedagógicas, sendo necessário um amplo estudo e investigação do impacto efetivo da pandemia sobre o sistema de educação brasileiro. Porém, não podemos avaliar neste trabalho a qualidade do ensino durante o ensino remoto no ano letivo de 2020, não é nosso objetivo e nem é viável diante do cenário pandêmico que ainda se mantém e continua gerando consequências para a formação das crianças e dos jovens no mundo inteiro.
No entanto, faz-se necessário avaliar a qualidade das políticas educacionais na definição de estratégias de ensino que deem conta da complexa realidade social brasileira, e no tratamento curricular adequado às atividades escolares no contexto de ensino remoto. Sabemos que a discussão em torno da BNCC enquanto política educacional é vasta e polêmica entre educadores desde que o documento foi aprovado em 2017. Se o era antes das atividades escolares acontecerem obrigatoriamente na forma de ensino remoto, quanto mais na pandemia, agravando-se a aplicabilidade e qualidade da proposta curricular da BNCC para o sistema educacional brasileiro. No que diz respeito ao ensino de História, a base estava longe de atender as proposições das pesquisas dos especialistas que investigam o estudo da disciplina de História na Educação Básica e é nessa área que queremos desenvolver nossa análise.
Aprendizagem remota: limites para o currículo de História
O Guia de Implementação de Protocolos de Retorno das Atividades Presenciais nas Escolas de Educação Básica, elaborado pelo Ministério da Educação, segue as orientações do parecer normativo elaborado pelo Conselho Nacional de Educação e orienta que o reordenamento curricular “do que restar do ano letivo presencial atual” (referindo-se a 2020) e do ano letivo seguinte (o de 2021) leve em consideração o que é “essencial em termos de aprendizagem, de acordo com o contexto de cada escola, de cada série ou até mesmo de cada turma” (p. 25).
Observa-se, nos documentos referidos, a compreensão de que a BNCC, como documento normativo sobre as competências e diretrizes curriculares da Educação Básica, mantém-se no cenário de ensino remoto como referência para a atuação dos docentes, sem quaisquer necessidades de discussão, reorganização, adaptação e modificação. O foco das deliberações para o ensino remoto gira em torno da validação dos dias letivos e das medidas de segurança e controle da pandemia em vista do retorno às aulas presenciais.
Dessa maneira, ficou a cargo de cada rede de ensino interpretar e definir, amparados pela BNCC, tal como está, as orientações curriculares para o trabalho docente. Existem, porém, algumas reflexões que precisam ser colocadas para avaliarmos a coerência e a pertinência da BNCC para esse momento de ensino remoto e ensino híbrido, tendo em vista que, apesar de não ter como proposta ser o currículo oficial, na prática e no cotidiano escolar, a BNCC atua como tal, embasando desde a elaboração dos livros didáticos até os instrumentos de avaliação da educação a nível municipal, estadual e federal.
Partindo desse pressuposto, outro ponto a se levar em consideração é o fato de que a Base foi escrita e pensada para o ensino presencial, e não para o remoto e híbrido. De que maneira ela atende as demandas e as angústias dos docentes e dos alunos no processo de aprendizagem diante desse novo cenário? Na área do ensino de História já eram feitas críticas às orientações curriculares da BNCC que estruturou a disciplina de forma cronológica, eurocêntrica e bancária, com pouco espaço para uma formação histórica significativa que permita ao indivíduo a formação de sua identidade, orientando suas ações enquanto sujeito histórico do seu tempo (Schmidt, 2009).
O professor Breno Mendes explica que o que identificamos na base é uma proposta de ensino de História que se resume a operações de identificação, comparação, contextualização e muito pouca análise. Organizados de forma cronológica, definidos por marcos históricos eurocêntricos, a História ensinada, conforme as orientações curriculares, serve para que o indivíduo reconheça e assimile os valores da sociedade vigente, o que confere passividade ao lugar que ocupam tanto os docentes, quanto os alunos, na aprendizagem histórica. Considerando a análise do autor (Mendes, 2020), concordamos que,
do ponto de vista didático, a ênfase nas habilidades e competências foi importante para que o ensino de história não se restringisse a uma narrativa unívoca preocupada em transmitir informações factuais dos “grandes heróis” da cena política. Todavia, da perspectiva política e ideológica podemos apontar a existência de certo currículo oculto. Dizendo de outro modo, o currículo de história, assim como outros currículos, não comunica apenas conteúdos, mas também valores. Nesse sentido, observamos que o papel outrora ocupado pelo Estado-nacional parece ter sido ocupado pela lógica empresarial de mercado (Mendes, 2020, p. 120).
No sentido defendido pelo campo da Didática da História (Rüsen, 2001; 2007; 2011; Schmidt, 2009; 2011), a formação histórica proposta pelas orientações curriculares da BNCC não se constituem com ênfase nas características e procedimentos próprios da Ciência da História, reiterando, portanto, a formação de uma consciência histórica que mantém e reproduz o modelo de sociedade a qual pertencemos, bem como reforça a narrativa hegemônica, sem potencializar o indivíduo como agente de transformação, uma vez que ele não se identifica e não vê sentido entre a disciplina e as necessidades de sua realidade presente e nem promove expectativas de sua transformação no futuro. Mais ainda no contexto pandêmico, o conteúdo sobre o passado, trabalhado de maneira aleatória às demandas no tempo presente, torna-se insignificante e descartável como ferramenta para elaborar uma leitura crítica e propositiva sobre o momento vivido.
Do ponto de vista estrutural, os autores do campo do ensino de História que seguem linhas teóricas críticas e pós-críticas compreendem a versão homologada da BNCC como uma atualização das teorias tradicionais do currículo, onde não se reconhece como uma dimensão do campo curricular a articulação entre currículo - relações de poder - política. Porém, à medida que os contextos políticos no Brasil mudam, alterações são feitas nas propostas curriculares visando a formação de um cidadão que atenda aos interesses governamentais do momento (Bittencourt, 2008). Em tempos de profundas transformações sociais, políticas e econômicas, a nível nacional e mundial, quais possibilidades o ensino remoto e híbrido apresenta para uma renovação curricular? Se o Conselho Nacional de Educação nos propõe a considerar o que é “essencial” em termos de aprendizagem para atuarmos enquanto docentes, então qual é a essência da História na formação escolar?
Em busca de possibilidades: “essencializar” o currículo
O discurso sobre habilidades e competências na aprendizagem presente na BNCC aprovada em 2017 revela uma preocupação na aquisição de conteúdos com finalidades imediatas para o mercado de trabalho. Logo na introdução da BNCC, podemos identificar diversos momentos em que o texto relaciona as competências e habilidades a concepções de educação que visam o “saber fazer” orientado pelo “mundo do trabalho”, expressão também recorrentemente utilizada pelos redatores: “Ao adotar esse enfoque, a BNCC indica que as decisões pedagógicas devem estar orientadas para o desenvolvimento de competências. Por meio da indicação clara do que os alunos devem “saber” (considerando a constituição de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores) e, sobretudo, do que devem “saber fazer” (considerando a mobilização desses conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho), a explicitação das competências oferece referências para o fortalecimento de ações que assegurem as aprendizagens essenciais definidas na BNCC. (BRASIL, 2017, p. 13). Nesse sentido, é evidente a lógica empresarial neoliberal aplicada à educação, oferecendo ao estudante uma formação simplificada e superficial. Contudo, Maria Auxiliadora Schmidt provoca a seguinte reflexão:
Se pensarmos a educação e, portanto, a aprendizagem da História, como possibilidade de internalização de determinada consciência histórica pelos sujeitos, podemos tanto falar em internalizar para manter e conservar, como também falar na possibilidade de internalização como subjetivação (interiorização mais ação dos sujeitos), com vistas às intervenções e transformações na vida prática (Schmidt, 2009, p. 205).
Por consciência histórica, a autora se refere às definições de Jörn Rüsen sobre as operações do intelecto humano onde a experiência com o tempo ganha forma de passado, presente e futuro. Em outras palavras, a função prática da consciência histórica confere à realidade uma direção temporal que guie intencionalmente a ação humana, sendo o meio pelo qual a experiência temporal é gerida tanto no plano individual quanto no plano social (Rüsen, 2011; 2015). Ainda sobre esse conceito:
É por meio da consciência histórica que trabalhamos com as concepções do nosso tempo de “ser” e “dever” para produzir uma narração significativa que correlacione os acontecimentos do passado, com os problemas e questões levantadas nas carências de orientação do presente, conferindo uma perspectiva futura para a atividade atual (Paula, 2015, p. 44).
São as carências de orientação, ou seja, as perguntas e problemas constituídos nas relações humanas no tempo presente, que mobilizam o pensamento histórico numa busca de sentido à própria realidade, sendo a experiência histórica, portanto, “a experiência da diferença no tempo” (Rüsen, 2011, p. 85). Esse processo envolve tanto a formação da consciência de si enquanto indivíduo, quanto a formação da consciência do coletivo, enquanto meio social. Nesse sentido, os sujeitos têm de se orientar historicamente e têm que formar sua identidade para agir intencionalmente: “Orientação histórica da vida humana para dentro (identidade) e para fora (práxis) - afinal, é esse o interesse de qualquer pensamento histórico” (Rüsen, 2017, p. 87).
Para Rüsen (2010), no campo da formação histórica, ou seja, o lugar na cognição histórica onde ocorrem “os processos de aprendizagem em que ‘história’ é o assunto”, existem diversos fenômenos do aprendizado histórico que se encontram e se relacionam, em que tem lugar, não somente a produção científica do conhecimento histórico, mas também os diversos processos de produção de saberes sobre o passado pela mídia, religiões, práticas culturais diversas. Todas essas construções de narrativa sobre o passado encaminham à aprendizagem da história e servem à orientação da vida prática.
Em um contexto de pandemia, voltamos nossos olhares enquanto professoras e professores de História da Educação Básica e nos perguntamos então: As competências e habilidades dispostas na BNCC permitem que os nossos estudantes façam qual experiência com o tempo? As competências e habilidades do texto indicado como orientador para ação docente durante o ensino remoto correspondem a quais carências de orientação? Existe espaço na BNCC para que o professor medeie o processo de formação histórica a partir dos problemas, incertezas, inseguranças e perguntas próprias da realidade atual? Quais competências e habilidades da BNCC garantem que crianças e adolescentes continuem vendo sentido na sua formação diante de um mundo paralisado por um vírus?
Seguir o ano letivo sob essas circunstâncias colocam a disciplina de História, mais do que nunca, na condição de “Formação Compensatória” (Rüsen, 2007), restringindo o conhecimento a um fator técnico (competências e habilidades medíveis, qualificáveis e avaliáveis por sistemas universalizantes da educação formal) e, ao mesmo tempo, ocasionando a desumanização dos sujeitos, transformando-os em executores funcionais, atrelados a qualquer fim. Aqui, a aprendizagem histórica, enquanto processo de desenvolvimento da consciência histórica, fica limitada pela impossibilidade da própria experiência com o tempo presente, comprometendo a apreensão qualificada do que aconteceu (passado) na história humana (Almeida, 2020).
Uma vez que os pareceres oficiais do MEC instruem a busca pelo o que é essencial em termos de aprendizagem, compreendemos que o ensino remoto abre margem para repensarmos a função da BNCC em nossos cotidianos escolares, evidenciando concepções de aprendizagem histórica que ocorram da experiência, da interpretação e da orientação dos sujeitos por meio da construção de narrativas históricas que encontram sentido nas demandas da sua vida prática.
Sobre esse tipo de formação histórica, Rüsen denomina como “formação complementar” essa que relaciona os saberes e métodos científicos com a totalidade. Os sujeitos apreendem o contexto em que estão inseridos e tornam-se capazes de aprimorar sua interpretação das próprias demandas da vida prática, orientando seu agir enquanto indivíduos que são determinados pelo meio, mas são, ao mesmo tempo, agentes de transformação do mesmo:
Espera-se que o aparato conceitual da história habilite os jovens a desenvolverem de forma objetiva, fundamentada porque assente na análise crítica da evidência, as suas interpretações do mundo humano e social, permitindo-lhes, assim, melhor se situarem no seu tempo (Barca; Martins, 2011, p. 11).
A grande questão que a Didática da História coloca para avaliarmos a pertinência da estrutura da disciplina de História conforme a BNCC é que formação não é poder dispor de saberes, mas de formas de saber, de princípios cognitivos que determinam a aplicação dos saberes aos problemas enfrentados na vida individual e coletiva. Para tanto, o indivíduo é sujeito central nas relações em que está envolvido e enquanto ser absolutamente intersubjetivo, é imprescindível conceber um currículo que respeite e potencialize as individualidades em interação, suas especificidades e seus contextos.
Por fim, compreendemos que é impossível transformarmos o estudante numa enciclopédia como nos é proposto pela BNCC e quando o assunto é currículo precisamos lidar com o fato de que nem todos os conhecimentos adquiridos historicamente serão contemplados na formação escolar, não é possível ensinar "tudo" ou ensinar uma única perspectiva como sendo "o todo". Porém, o desafio consiste em construir essa seleção a partir de uma concepção de formação humana integral, que potencialize todo tipo de habilidade cognitiva para o desenvolvimento pleno dos indivíduos, no sentido intelectual, artístico, técnico, físico, socioemocional.
Sempre há algo sendo “esquecido” ou “ignorado” pelo currículo, antes de tudo, é preciso responder o que é essencial, ouvindo professores, estudantes e toda a comunidade escolar que buscam sobreviver à pandemia. Se assim o era no presencial, quanto mais agora no ensino remoto e/ou híbrido, onde o Google é uma aba do lado do Teams ou do Classroom, que permite às nossas crianças e jovens acessarem em segundos todo e qualquer conhecimento sobre o mundo. O ensino remoto e/ou híbrido hoje precisa ser o espaço onde o mundo faça sentido para os estudantes.
Considerações finais
A partir do que foi exposto, podemos concluir que um caminho para encontrar o que é essencial no currículo de História é, em observância ao contexto em que estamos inseridos, avançar em formas de desenvolver a noção de "carências de orientação” nas definições curriculares empreendidas pelas políticas educacionais no Brasil, identificando na experiência do tempo presente o sentido no qual deve acontecer a experiência com o passado.
Aprender História só faz sentido quando raciocinamos historicamente no tempo presente e estamos limitados pelas matrizes curriculares orientadas pela BNCC, de mãos atadas pelos livros didáticos e apostilas que, em plena pandemia, querem nos obrigar a falar da história da Humanidade como se a vida fosse predestinada e todos os caminhos já estivessem desbravados. Acreditamos que o trabalho de formação consiste em capacitar nossos estudantes para organizar, desorganizar, formular e reformular uma enciclopédia caso seja necessário e não para ser uma “enciclopédia ambulante”, e que sejam capazes de fazer isso em conjunto com outros sujeitos.
Como já tratado anteriormente, o desenvolvimento da consciência histórica requer uma formação histórica que amplie os significados e a experiência do indivíduo com o tempo. A formação compensatória identificada na BNCC acontece acriticamente e de fora da produção científica ou contra ela, satisfazendo as carências de orientação dos indivíduos por meios não científicos. Comprometendo a dimensão cognitiva da compreensão humana do mundo, a formação compensatória compromete também a autointerpretação dos sujeitos, uma vez que separa a racionalidade intrínseca ao saber científico das carências existentes e concretas no todo. Nesse sentido, se a disciplina de História tem servido para alguma coisa, é para forjar a compreensão de que o único mundo possível é esse que estamos vivendo.
Desenvolvendo as competências do pensamento histórico a partir de uma proposta de formação complementar, busca-se a reflexão das regras e princípios com que as ciências organizam categoricamente sua relação à experiência, à práxis e à subjetividade/intersubjetividade. Dessa forma, a Didática da História nos orienta sobre uma disciplina de História que se baseie nos processos de produção do conhecimento da sua própria ciência, ou seja, uma proposição que se preocupa com o fazer científico, com os conhecimentos produzidos na/para a escola como sendo específicos e que tem como principal implicação um desdobramento na vida prática de quem aprende. Para Rüsen,
o desafio que se apresenta ao ensino da História é o tornar consciente o passado enquanto tal, capaz de efetivamente orientar em direção ao agir futuro. Rüsen então propõe a articulação da consciência histórica como superação dos dados prévios da tradição. Ela partiria da tradição, mas não se basearia apenas nela (Barom; Cerri, 2011).
Os pressupostos da Didática da História poderiam ser norteadores para uma ampla revisão da BNCC, tendo em vista a forma como atuamos desde 2020, pois esta experiência oferece ferramentas que contribuem para o desenvolvimento da cognição em nível mais complexo. A proposta teórica de Rüsen pode ser compreendida como um “letramento histórico”, uma vez que foca nas ferramentas para compreender e construir a realidade, ao invés da memorização de uma sequência de fatos organizados de forma cronológica, sem qualquer sentido e relação entre os fatos do passado e do presente.
Fomentar a capacidade reflexiva e a elaboração de narrativas críticas em um tempo em que “assistimos à História acontecer”, é o que esperamos do conhecimento histórico. Porém, é preciso sair do lugar de quem assiste e ocupar o lugar de sujeito da História, e esse processo começa com aquilo que ensinamos na escola, ou nas condições que criamos enquanto escola para a construção do conhecimento, conforme aponta Paulo Freire. Para isso, deveria servir também o conhecimento histórico.
Haja vista que a pandemia do coronavírus é a mais ampla e letal que vivemos até hoje, ainda mais se considerarmos os recursos médicos e tecnológicos que temos frente, por exemplo, ao que tínhamos quando da pandemia da gripe Espanhola, é fundamental e imprescindível que nossas crianças e jovens compreendam o que estamos vivendo e que se compreendam como sujeitos históricos desse tempo. Só para lembrar: a gripe espanhola foi um tipo do vírus Influenza que se espalhou pelo mundo, tendo início no ano de 1918. Tal moléstia teve um impacto importante, pois se deu ao mesmo tempo que ocorria a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Desta forma, afetou mais diretamente os países que participaram deste conflito. A gripe espanhola deixou mais de 50 milhões de mortos em todo o mundo. O Brasil já foi o epicentro da pandemia no mundo e o que fazer para que isso não se repita, colhendo os legados e observando as possíveis responsabilidades? A História é viva, é um conhecimento dinâmico, o currículo oficial a percebe como conteúdos estanques, ele é incoerente com a própria concepção do conhecimento histórico. Na prática, são com as demandas do tempo presente que entramos on-line todos os dias em nossas aulas de História.
Referências
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Publicado em 19 de outubro de 2021
Como citar este artigo (ABNT)
PAULA, Laís Santos de; COELHO, Vanessa Canuto. Ensino de História em tempos de crise: a pandemia e o convite à essencialização da História na aprendizagem escolar. Revista Educação Pública, v. 21, nº 38, 19 de outubro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/38/ensino-de-historia-em-tempos-de-crise-a-pandemia-e-o-convite-a-essencializacao-da-historia-na-aprendizagem-escolar
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