O aporte da alfabetização científica para a divulgação da ciência: tecendo contribuições dessa aproximação

Luiz Alberto Souza Filho

Licenciando em Ciências Biológicas (UERJ), bolsista de Divulgação Científica (Faperj)

Débora de Aguiar Lage

Licenciada em Ciências Biológicas (UERJ), doutora em Biologia vegetal (UERJ), professora universitária (UERJ)

Considerações iniciais

Diante do cenário de crises ambientais e sanitárias, torna-se imperativo destacar o papel e a atuação da ciência, das cientistas e dos cientistas. No entanto, na contramão disso, é perceptível um descrédito desses atores, que pode ser ilustrado pelo não financiamento das atividades de pesquisas científicas, estendido aos recentes cortes de bolsas e verbas para esses fins. Apesar de toda complexidade aparente, essas medidas parecem ter raiz em um distanciamento das atividades científicas da mesma sociedade que as financia. Na tentativa de contornar esse quadro problemático, diversas ações se lançam na procura de (re)aproximar a ciência da sociedade.

Contudo, a literatura brasileira em comunicação e divulgação científica não tem contribuído para o aprimoramento de conceitos que estruturam as práticas nessas áreas (Bueno, 2010). Nesse sentido, é substancial teorizar essas ações que despontam a partir da práxis, pois, com pouco aprofundamento, pairam indefinições dos limites e da abrangência conceitual (Bueno, 2010). Assim, busca-se neste ensaio estabelecer conexões entre os conceitos – que emergem desse campo e que são chaves para desencadear propostas fundamentadas e propositivas – de divulgação científica (DC) e alfabetização científica (AC). É conhecido que ambos os conceitos ganham uma variedade de sentidos na literatura, de acordo com o tempo e com o espaço. Por conta dessa polissemia, serão trabalhados em separado inicialmente. Para, então, apontarmos os objetivos para os quais confluem.

Desvelando a divulgação científica

“Usualmente, conhecer a ciência é assunto quase vedado àqueles que não pertencem a essa esotérica comunidade científica” (Chassot, 2003, p. 94). Esse universo quase restrito dos cientistas a que Chassot se refere pode ser diagnosticado pela primazia da comunicação científica, que é correlata à disseminação de informações especializadas entre os pares, isto é, entre os próprios cientistas, e tem a finalidade de compartilhar os avanços das pesquisas obtidos e mobilizar debates em prol da geração de novas teorias ou aperfeiçoamento das existentes (Bueno, 2010). Esse mesmo autor afasta a comunicação científica da divulgação científica, uma vez que esses termos “pressupõem, em sua práxis, aspectos e intenções bastante distintos” (Bueno, 2010, p. 2).

Segundo o autor, então, a divulgação científica (DC) exerce a função imprescindível de democratizar o acesso aos saberes e fazeres científicos. É nessa direção que os cidadãos são incluídos no debate desses temas relacionado ao seu cotidiano (Bueno, 2010). Com esse princípio, diversas propostas de divulgar ciência têm se intensificado (França, 2005; Magalhães; Silva; Gonçalves, 2012). Entretanto, isso não é o suficiente para que sejam compreendidas. Primeiro, porque “a DC não se encerra na mera enunciação unilateral de dados e processos a serem assimilados pelos não iniciados [em ciência e tecnologia]” (Bueno, 2010, p. 8). Segundo, porque, para que haja entendimento, “é preciso que o público (leitor, espectador, ouvinte, internauta) tenha ao seu alcance os meios para avaliar os dados apresentados sem ter de aceitar tudo de forma passiva” (França, 2005, p. 45). Portanto, para compreender ciência, os sujeitos precisam substancialmente de algo para além do mero – e reducionista – conhecimento dos fatos (Magalhães; Silva; Gonçalves, 2012).

Então, apesar dos textos de divulgação contribuírem para a importante inserção e imersão ao contexto científico, podem existir ruídos de compreensão no polo da recepção – seja pela abrangência conceitual ou pelo distanciamento entre o contexto das ciências no seu escopo teórico e sua apresentação em situações do cotidiano (Façanha; Alves, 2018). Diante disso, para que o entendimento se dê de forma significativa, a divulgação científica precisa estabelecer pontes para a chamada alfabetização científica, conceito este que merece destaque e maior reflexão (Bueno, 2010).

Suscitando a alfabetização científica

Sasseron e Carvalho (2011), em uma revisão bibliográfica sobre alfabetização científica, apontam que, assim como a DC, a AC também sofre pluralidade semântica de acordo com o tempo e com o país em que é trabalhada. As autoras reúnem as aproximações e os distanciamentos entre os termos: “alfabetização científica”, “letramento científico” e “enculturação científica”. No entanto utilizam “alfabetização científica” para

designar as ideias [de] um ensino que permita aos alunos interagir com uma nova cultura, com uma nova forma de ver o mundo e seus acontecimentos, podendo modificá-los e a si próprio através da prática consciente propiciada por sua interação cerceada de saberes de noções e conhecimentos científicos, bem como das habilidades associadas ao fazer científico (Sasseron; Carvalho, 2011, p. 61).

Essa concepção está alicerçada na analogia que aproxima os saberes e os fazeres das ciências a uma espécie de língua (Chassot, 2003) e que, como tal, poderá ser ensinada e aprendida. Alfabetização essa pautada em Paulo Freire (2005), com vistas a estimular a capacidade da organização do pensamento de maneira lógica e promover a construção de uma consciência crítica em relação ao mundo.

Diante de várias definições, Sasseron e Carvalho (2011) agruparam e sintetizaram as bases da AC em três “eixos estruturantes da alfabetização científica”:

  1. compreensão básica de termos, conhecimentos e conceitos científicos fundamentais;
  2. compreensão da natureza das ciências e dos fatores éticos e políticos que circundam sua prática;
  3. entendimento das relações existentes entre ciência, tecnologia, sociedade e meio ambiente.

Nesse caminho, Magalhães, Silva e Gonçalves (2012, p. 12) entendem a AC como o desafio inicial da educação científica, porque ela é capaz de dar condições aos sujeitos de “argumentar e contra-argumentar, pesquisar, planejar, executar, discutir, construir e exercer cidadania”.

Evidencia-se, então, que alfabetização científica, em linhas gerais, é uma expressão que faz alusão ao que o “público em geral deveria saber a respeito da ciência” (Durant, 2005, p. 13). Nessa perspectiva, portanto, seu significado aproxima-se de divulgação científica. Seria possível, então, caminhar a partir desses pontos de confluência?

Caminhos convergentes

Inicialmente, o que nos está posto é que existem objetivos centrais, em ambas, que visam ampliar a compreensão do papel das ciências e de seus conhecimentos para a sociedade. As nuances entre elas são imperceptíveis até mesmo por professores de Ciências, como evidencia a pesquisa de Paula (2014). Para os professores sujeitos desta pesquisa, os conceitos convergem para o sentido de contribuir para o entendimento de conhecimentos, procedimentos e valores que possibilitem aos estudantes-cidadãos tomar decisões e perceber a ciência em totalidade – seja de suas aplicações na melhora da qualidade de vida, seja pelas consequências negativas de seu desenvolvimento (Paula, 2014).

Assim, a nuance entre divulgação científica e alfabetização científica pode ser oportunizada ao serem associadas. Façanha e Alves (2017) veem na popularização das ciências e no jornalismo científico possibilidades para alfabetização científica. Afinal, é preciso (in)formar cidadãos que atuem na sociedade amplamente assistida de artefatos científicos e tecnológicos (Façanha; Alves, 2017). Na mesma direção, Magalhães, Silva e Gonçalves (2012, p. 14) apontam que ambas “estão intrinsecamente relacionadas”. Essas autoras enxergam interfaces entre a DC e a AC e destacam a convergência em seu aspecto social que prevê o acesso da população à ciência, primando pelas informações e subsídios que garantam a essa mesma população papel ativo, como seres críticos e conscientes (Magalhães; Silva; Gonçalves, 2012).

Nesse ponto de convergência, está em voga o modo como o conhecimento científico deve ser apreendido pela população. Busca-se ultrapassar o simples acúmulo de informações para alcançar a incorporação desse conhecimento nas tomadas de decisão, que hoje são focos dos debates (Façanha; Alves, 2017), objetivo este que se revela imprescindível diante da atualidade, em que as tomadas de decisão desprezam os conhecimentos científicos e o negacionismo científico e a pseudociência ganham força.

Nesse cenário, busca-se primordialmente o resgate do prestígio para o saber-fazer científico. Entretanto, é indispensável pensar ciência distante da visão positivista ou salvacionista. Essa concepção de ciência salvadora pode ser consequência do imaginário científico divulgado pelas mídias, em que a projeção da ciência sobre seus e suas cientistas é responsável pela imagem pública dos cientistas como heróis, e isso obscurece a natureza da ciência (NdC), além de criar obstáculos epistemológicos para o entendimento público da ciência (Magalhães; Silva; Gonçalves, 2012).

Por causa desses fatores, aportar a AC para a DC parece ser coerente. Os cidadãos necessitam de uma percepção sobre a maneira como o sistema social das ciências funciona (Magalhães; Silva; Gonçalves, 2012), incorporá-la e compreendê-la em sua dimensão conceitual e epistemológica (Façanha; Alves, 2017). Assim, é preciso compreender a ciência em sua totalidade, retirando a visão positivista e reducionista que a cerca, ao entender que – a partir dos interesses – ela pode ser benfeitora ou malfeitora; aproveitando a metáfora de Chassot (2003), a ciência pode ser a fada e/ou a bruxa.

O entendimento de ciência não está dissociado da divulgação. Com isso, divulgar ciência não pode ser reduzido à simples enunciação dos fatos; é imprescindível contextualizar os dados e resultados das investigações, de maneira que garantam sua temporalidade, o reconhecimento das intenções e as oportunidades da sua produção e aplicação (Chassot, 2003; Bueno, 2010). É importante desvelar que as verdades em ciências são, em princípios, temporárias. Além disso, não se deve distanciar a ciência e a tecnologia dos interesses humanos, uma vez que são eles os patrocinadores e/ou investidores (Bueno, 2010). Todos esses aspectos são princípios da alfabetização científica e é por conta disso que advogamos a entrada da AC na divulgação da ciência.

À guisa de finalização

Diante do exposto, almeja-se reforçar as entradas e os pontos de convergência de uma noutra. Perante a aproximação entre os conceitos de DC e AC, Magalhães, Silva e Gonçalves (2012) concluem que elas podem

influenciar significativamente o entendimento público da ciência, o que constitui hoje uma necessidade não apenas por prazer intelectual, mas por sobrevivência humana, uma vez que precisamos conviver diariamente com a ciência, a tecnologia e seus artefatos. Nessa perspectiva, (...) seu objetivo é que os assuntos científicos sejam cuidadosamente divulgados e discutidos, de forma que seus significados sejam compreendidos e aplicados para o entendimento do mundo(Magalhães; Silva; Gonçalves, 2012, p. 26).

Como apresentado, é sensato estabelecer a inter-relação entre os conceitos, de modo que a DC, ao democratizar o acesso ao conhecimento científico, também crie pontes para a AC, primando pela inclusão dos cidadãos na discussão sobre temas científicos que direta e/ou indiretamente influenciam em sua vida, com vistas a se buscar uma efetiva (re)aproximação e diálogo entre ciência e sociedade. Interpretamos que, assim, os sujeitos terão oportunidade de compreender a natureza da ciência, que as verdades que resultam das pesquisas científicas são em sua essência temporárias e que ela é utilizada de acordo com valores, desejos e interesses humanos. É crucial, portanto, defender e fazer DC compromissada com a democratização do conhecimento científico; para isso, desvela-se essencial aportar os aspectos da AC nas ações de divulgação.

Para findar, resgatamos a concepção de Bueno (2010) sobre a necessidade de reconhecer as aproximações e os distanciamentos conceituais do campo, bem como seus desdobramentos na prática, uma vez que, ao ser negligente nesse aspecto, estaremos propensos a incorrer e a ser menos propositivos, reforçando a condição do Brasil em excluir a DC das pautas das políticas públicas direcionadas à AC e à democratização do conhecimento científico.

Referências

BUENO, W. C. Comunicação científica e divulgação científica: aproximações e rupturas conceituais. Informação & Informação, v. 15, nº 1, p. 1-12, dez. 2010.

CHASSOT, A. Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, nº 22, p. 89-100, abr. 2003.

DURANT, J. O que é divulgação científica. In: MASSARANI, Luisa; TURNEY, John; MOREIRA, Ildeu de Castro. Terra incógnita: a interface entre ciência e público. Rio de Janeiro: Casa da Ciência, p. 13-26, 2005.

FAÇANHA, A. A. B.; ALVES, F. C. Popularização das ciências e jornalismo científico: possibilidades de alfabetização científica. Amazônia: Revista de Educação em Ciências e Matemáticas, v. 13, nº 26, p. 41-55, jul. 2017.

FRANÇA, M. S. J. Divulgação ou jornalismo? Duas formas diferentes de abordar o mesmo assunto. In: BOAS, S. V. (Org.). Formação e informação científica: jornalismo para iniciados e leigos. São Paulo: Summus, 2005.

FREIRE, P. A importância do ato de ler –em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2005.

MAGALHÃES, C.; SILVA, E.; GONÇALVES, C. A interface entre alfabetização científica e divulgação científica. Revista Areté Revista Amazônica de Ensino de Ciências, v. 5, nº 9, p. 14-28, abr. 2017.

PAULA, E. F. Reflexões sobre obras de divulgação e alfabetização científica. 2014. 34f. Trabalho de conclusão de curso (Especialização), Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Medianeira, 2014.

SASSERON, L. H.; CARVALHO, A. M. P. Alfabetização científica: uma revisão bibliográfica. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 16, nº 1, p. 59-77, 2011.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Publicado em 02 de fevereiro de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

SOUZA FILHO, Luiz Alberto; LAGE, Débora de Aguiar. O aporte da alfabetização científica para a divulgação da ciência: tecendo contribuições dessa aproximação. Revista Educação Pública, v. 21, nº 4, 2 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/4/o-aporte-da-alfabetizacao-cientifica-para-a-divulgacao-da-ciencia-tecendo-contribuicoes-dessa-aproximacao

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.