O ensino-aprendizagem de escrita por meio do gênero discursivo crônica: análise de textos de estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental
Rodrigo Milhomem de Moura
Doutorando em Letras e Linguística (UFG), mestre em Letras e Linguística (UFG), membro do grupo de pesquisa Portos e do grupo de estudos Transdisciplinares e Aplicados à Formação de Educadores (UFG/CNPq)
Lara Roberta Silva Assis
Mestra em Letras e Linguística (UFG), pesquisadora na área de Linguística com ênfase em Texto, Análise do Discurso e Ensino
Alexandre Ferreira da Costa
Doutor em Linguística Aplicada (Unicamp), pós-doutor em Linguística (UnB), professor da Faculdade de Letras (UFG), líder do Grupo de Estudos Transdisciplinares e Aplicados à Formação de Educadores (UFG/CNPq)
Considerações iniciais
A escrita está presente em quase todos os momentos de nossa vida, pois estamos sempre vivenciando/compartilhando ideias, sentimentos e informações por meio dessa prática. Fernandes (2007, p. 68-69) diz que “ela vem dominando, avassaladoramente, o mundo atual. A escrita não está mais só no papel, ganhou outros suportes – chão, paredes, muros, telas, faixas, outdoors, luminosos, placas, roupas e, até mesmo, a própria pele”. Essa prática é social, cultural e histórica, e tornou-se “um importante modo de interação social” (Auriemo, 2012, p. 12). Para uma sociedade “letrada” e “exigente” – leia-se grafocêntrica – como a nossa, é aspecto de grande importância para poder agir (e reexistir, talvez).
Nesse sentido, reconhecer que a escrita está presente em nosso cotidiano de diversas formas (desde placas com nomes de ruas, passando pelas publicidades até a produção de textos mais complexos e elaborados como dissertações, teses de doutorado etc.) é aspecto central para o ensino-aprendizagem desse saber. O documento normativo e norteador do currículo educacional brasileiro, a Base Nacional Comum Curricular, expressa que o ensino de Língua Portuguesa deverá ter a “centralidade do texto como unidade de trabalho e as perspectivas enunciativo-discursivas na abordagem, de forma a sempre relacionar os textos a seus contextos de produção” (Brasil, 2018, p. 67).
Cada texto pressupõe a existência de um contexto sócio-histórico, de um sujeito e de campos da atividade humana (nos quais esse sujeito se encontra). Assim, observamos que toda produção será dialógica (por mais que as forças hegemônicas como a escola tentem monologizá-la), pois retoma enunciados e axiologias de dadas esferas sociais das quais o sujeito faz parte. Portanto, “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (Bakhtin, 2016, p. 26). Podemos dizer, dessa forma, que os textos, materializados em gêneros discursivos, expressam finalidades e valorações específicas de cada sujeito, que é interpelado pelos campos do conhecimento aos quais se vincula – seus dizeres não são neutros; são, pois, direcionados ideologicamente.
Os saberes de escrita são sociais e aprendidos na coletividade. E todos nós, como sujeitos discursivos, somos respondentes, somos confrontados com os desafios (cotidianos) da escrita e, assim, somos levados a escrever algo – também como forma de resposta (Bakhtin, 2016). Para tanto, recorremos a enunciados já existentes. É, por isso, que reiteramos: todo e qualquer texto, ao ser escrito, torna-se uma resposta a outros enunciados anteriormente citados, diretos ou indiretos (ideologicamente organizados).
Podemos, neste momento, trazer à baila como exemplo as produções escolares: o/a docente solicita ao/à estudante que produza um texto e esse escrito é uma resposta ao que foi requerido, que também é uma resposta às demandas escolares etc. Contudo, as reflexões abordadas fazem parte da vivência do sujeito estudante, que podem ou não agradar ao/à professor/a, que pode ou não desenvolver o gosto pela escrita. Além dos exemplos citados, quando vemos uma placa, um outdoor ou qualquer outro texto escrito que circula em nossa sociedade (nas ruas, avenidas, canteiros, entre outros), percebemos que eles atuam como respostas a dadas ordens e demandas de certas esferas sociais.
Dito de outro modo: “todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante” (Bakhtin, 2016, p. 26); se pudermos complementar, ele não é o primeiro escritor, “seus” enunciados não são puros, mas permeados da palavra dos outros. Assim, quando escrevemos algo estamos levando em consideração não só os aspectos linguísticos, mas sobretudo sociais – nossas valorações e posições axiológicas, e também presumindo o nosso leitor e sua atitude responsiva – responsividade – diante daquele texto. Em síntese, a escrita se dá na esfera dialógica. E, como sujeitos dialógicos, vamos fazendo uso de cada gênero discursivo, em cada circunstância, como forma de nos expressarmos e de materializarmos nossos sentimentos, desejos, inquietações e tantos outros aspectos que permeiam o campo do saber ao qual nos vinculamos.
Dentre essa infinidade de gêneros, destacamos para o estudo algumas produções de crônicas de estudantes de uma turma do Ensino Fundamental de um centro de ensino de Goiás. Tal gênero é bastante solicitado nas aulas de Língua Portuguesa por ser curto, de humor, crítico etc. A pergunta norteadora deste artigo é: como três estudantes do Ensino Fundamental I (res)significam o texto “Piscina”, de Fernando Sabino? Para tanto, nosso objetivo é analisar as produções escritas de três estudantes realizadas a partir da crônica citada, buscando compreender como cada estudante (res)significou a personagem feminina da crônica.
A pesquisa está fundamentada nas teorias de Bakhtin (2011; 2015; 2016), Sobral (2009) e Fernandes (2007). Dos autores mencionados recorremos às categorias de língua/linguagem, gêneros discursivos, enunciado/enunciação, texto, sentido e discurso. O estudo segue o paradigma qualitativo, que, no entendimento de Bortoni-Ricardo (2008, p. 34), “procura entender, interpretar fenômenos sociais inseridos em um contexto”. A perspectiva qualitativa nos possibilita, como pesquisadores, que criemos categorias para interpretar os fenômenos. No que concerne à análise dos textos das três estudantes, fazemos uma análise de discurso, “que pode ser verbal e não verbal, bastando que sua materialidade produza sentidos para interpretação; pode ser entrecruzada com séries textuais (orais ou escritas) ou imagens (fotografias) ou linguagem corporal (dança)” (Caregnato; Mutti, 2006, p. 680). No nosso caso, a materialidade são as crônicas (produções escritas) produzidas por três estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Sob essa ótica, este trabalho mostra-se válido pela necessidade de compreender alguns discursos que são reproduzidos nas narrativas das estudantes, uma vez que, ao escreverem seus textos, elas mobilizam diversos conhecimentos histórico-culturais sobre favela, pobreza, tristeza... bastante relatadas na crônica “Piscina”. Portanto, poderá somar nos esforços de outros/as professores/as que pensam em um ensino-aprendizagem de forma crítica e dialógica.
Breves considerações sobre a perspectiva dialógica da linguagem
A perspectiva dialógica da linguagem de Mikhail Bakhtin e do Círculo representa em nossa sociedade uma verdadeira “virada linguística” (Faraco, 2009), visto que os autores do Círculo (res)significaram algumas formas de encarar a linguagem em sua época e na nossa. Participavam do grupo alguns estudiosos, dentre eles Bakhtin, Medviédev e Volóchinov. Embora estivessem participando de um mesmo círculo de estudos, Volóchinov preocupava-se com os estudos da linguagem; Bakhtin, com a axiologia e evento único/Ser; e Medviédev visava a criação de um método sociológico para estudo da literatura. “Esse casamento de perspectivas na formulação de uma teoria da linguagem mostra, de um lado, a força heurística da pluralidade de pontos de vistas que se encontravam no Círculo” (Faraco, 2009, p. 30). E todos esses aspectos encontraram ponto de convergência na concepção filosófica de linguagem.
O Círculo de Bakhtin passou a criticar as perspectivas de estudos da linguagem existentes à época, já que preconizavam, dentre outros aspectos, o caráter abstrato e apenas individual nos estudos. E a concepção de linguagem adotada pelos membros do grupo “não é entendida como um sistema abstrato de formas [...], nem como resultado da criação individual dos sujeitos [...], mas como um espaço em que se unem o individual e social” (Sobral, 2009, p. 83). Reconhecer o caráter individual e social da linguagem significa compreender que o sujeito está no mundo, agindo e sofrendo ações dele (tanto em micro como em macrocontextos). Esse sujeito também age e sofre ações dos outros que estão à sua volta. Dito de outro modo: o sujeito não existe no mundo sozinho, mas a partir das relações que cria com outros sujeitos e com esse “mundo”. Para Sobral (2009, p. 48),
a sociedade não pode existir independentemente das relações entre os sujeitos que dela fazem parte; são precisamente essas relações que a constituem, seja qual for o ambiente e o grau específico de “formalização” desse ambiente: somos povoados pelo outro, e nossas relações com o outro faz de nós e deles os elementos constituintes da sociedade.
A constituição dos sujeitos e da sociedade se dá de forma dialógica e interacional. E a orientação dialógica é um fenômeno próprio de qualquer discurso; “em todas as suas vias no sentido do objeto, em todas as suas orientações, o discurso depara com a palavra do outro e não pode deixar de entrar numa interação viva e tensa com ele” (Bakhtin, 2015, p. 51). Essas interações vivas e tensas fazem com que haja o funcionamento real da língua, pois todo enunciado está em relação com outros enunciados e todo discurso incorpora vozes de diversos sujeitos – quem fala não fala sozinho, mas é responsável pelo que diz e faz.
Complementando esses dizeres, Faraco (2009, p. 66, grifos no original) expõe que “para haver relações dialógicas, é preciso que qualquer material linguístico (ou de qualquer outra materialidade semiótica) tenha entrado na esfera do discurso, tenha sido transformado num enunciado, tenha fixado a posição de um sujeito social”. Todo discurso, portanto, necessita de um sujeito e, este, por sua vez, só constitui suas subjetividades mediante as relações histórico-sociais e ideológicas das quais ele participa (Fiorin, 2018). Nas palavras de Faraco (2009, p. 85), “é no interior do complexo caldo da heteroglossia e de sua dialogização que nasce e se constitui o sujeito”. Vale ressaltar que heteroglossia, segundo Faraco (2009), significa multidão ou vastidão de vozes sociais. O sujeito discursivo, encarado sob essa ótica, não é “puro”, mas misto, híbrido e inconcluso, tendo em vista que as vozes sociais que o constituem mudam e se transformam de acordo com os tempos. Essa constituição se dá por meios das interações que estabelecemos.
Segundo Freitas (2013, p. 191), o processo de constituição das subjetividades ocorre por meio da dialogia; é um processo de alteridade, pois o eu sempre necessita dos outros para se constituir, existir e “se entender” no mundo. Para isso, eu devo tentar olhar para fora de mim, “com os olhos” dos outros:
A exotopia mostra significativamente como o outro, que está fora de mim, é quem tem condições de me completar, porque vê o que não tenho possibilidade de ver em mim, tanto em meu aspecto corporal e espacial como nos meus atos que expressam meu modo de ser (Freitas, 2013, p. 192).
Reconhecer o meu outro e sua importância para me (re)conhecer é o cerne da questão. Por isso, o outro, nessa lógica, torna-se o excedente de minha visão, isto é, eu não me formo, não me constituo sem ele, uma vez que ele me observa e eu o observo, ele me reconhece e eu o reconheço. Essa constituição ocorre por meio da linguagem; para Bakhtin (2016, p. 11), “o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana”. O autor reitera ainda que o enunciado é constituído de uma tríade: “conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – [que] estão indissoluvelmente ligados no conjunto do e são igualmente determinados pela especificidade de um campo da comunicação” (Bakhtin, 2016, p. 12).
Em outras palavras, significa dizer que, quando um sujeito enuncia, ele usa enunciados, visto que “aprender a falar significa aprender a construir enunciados (porque falamos por meio de enunciados e não por orações isoladas)” (Bakhtin, 2016, p. 39). O autor afirma ainda que nosso discurso, nossos enunciados são moldados em formas de gênero. Assim, ao enunciarmos algo sempre materializamos aquilo que queremos dizer em gêneros do discurso e, por isso, colocamos nossas marcas, nossas escolhas linguísticas, nossas valorações e subjetividades, a depender de qual campo da atividade humana nos vinculamos. Nesse contexto, entendemos como gêneros do discurso os “tipos relativamente estáveis de enunciados” (Bakhtin, 2016, p. 12).
Os gêneros do discurso: a crônica
As discussões voltadas para os gêneros do discurso tiveram início na Antiguidade: e desde aquele tempo “aos nossos dias eles foram estudados num corte da sua especificidade artístico-literária, nas distinções diferenciais entre eles (no âmbito da literatura) e não como determinados tipos de enunciados” (Bakhtin, 2016, p. 12). Assim, no nosso entendimento, para que o ensino-aprendizagem de escrita ocorra de maneira satisfatória, devemos entender que os gêneros são tipos de enunciados suscetíveis às transformações socioculturais e históricas. Bakhtin (2011, p. 262) expressa que os gêneros são “tipos relativamente estáveis de enunciados”. E eles, por sua vez, são produzidos em cada campo da atividade humana, construídos pelos sujeitos daquela esfera, com funções e finalidades específicas:
Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis (Bakhtin, 2011, p. 266).
Assim, os gêneros discursivos respondem às urgências de cada campo do saber, e isso faz com que eles tenham seus próprios estilos, conteúdos temáticos e composicionais. Um campo da atividade humana da Medicina, por exemplo, possui certos tipos de enunciados e ideologias que poderão não ser tão bem entendidos por outros campos, assim como o do Direito, da Matemática, da História etc. Cabe insistir, dessa forma, que “o repertório de gêneros de cada esfera da atividade humana vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (Faraco, 2009, p. 127).
Por conseguinte, a nosso ver, um gênero permanece “vivo” mesmo que outros mais elaborados e tecnológicos surjam em seu lugar. Peguemos como exemplo o gênero carta. Com a popularização do e-mail, a estrutura da carta foi transportada para esse meio tecnológico, mas nem por isso o referido gênero deixou de existir. Ainda hoje é comum vermos diversos tipos delas circulando socialmente: carta pessoal, carta de reclamação, carta aberta etc. São menos usadas que o e-mail, sem sombra de dúvidas, mas ainda se fazem presentes em nossa sociedade.
Reconhecer essa natureza adaptativa do gênero faz-nos crer que o termo “relativamente” compõe o conceito de gêneros pelo fato de eles sofrerem variações a depender da sua função comunicativa e das suas condições de produção. Comungando tal pensamento, Marcuschi (2011, p. 19) afirma que “o gênero é essencialmente flexível, tal como seu componente crucial, a linguagem. Pois, assim como a língua varia, também os gêneros variam, adaptam-se, renovam-se e multiplicam-se”. Ou seja, são produzidos e utilizados de acordo com necessidades de uma dada esfera da comunicação. Contudo, o termo “estável” faz-nos pensar que cada gênero possui sua estabilidade e, mesmo com toda a flexibilidade, alguma essência permanece nos tempos e épocas. A carta, como já apresentamos, possui essa capacidade – tanto em sua estrutura – de ter migrado para o e-mail –, como na própria manutenção do gênero.
Tais aspectos de transformação dos gêneros são produtivos para a língua, uma vez que eles podem mudar e se adaptar dentro de um mesmo campo da atividade humana ou então, sendo retirados de lá, são capazes de atualizarem-se, desmembrarem-se e aperfeiçoarem-se – é algo bastante rico nas línguas naturais. Além disso, os gêneros, quando transpostos de um campo a outro, têm seus sentidos primeiros mudados.
Como nosso objeto de estudo é a crônica, gostaríamos de expor algumas observações importantes sobre ela. Ferreira (2008), ao fazer um histórico, expressa que há uma série de problemas tipológicos e falta de consenso entre os/as estudiosos/as, ou seja, não há uma definição concreta e vários/as deles/as o enxergam de modos diferentes. O que, no nosso entendimento, revela o caráter relativamente estável desse gênero. Ele nunca é o mesmo e vai mudando dentro das esferas sociais de que faz parte. Afinal, uma crônica pode ser narrativa, dissertativa, argumentativa e descritiva, por exemplo. Mesmo sem um consenso, a autora apresenta algumas características atribuídas à crônica que são corroboradas pelos pesquisadores:
- relato ou comentário de acontecimentos cotidianos (caráter contemporâneo);
- brevidade temporal ou pequeno enredo;
- tom lírico, pessoal, subjetivo; ou, pelo menos, mescla de objetividade e subjetividade;
- identificação entre narrador e autor (autor-narrador);
- linguagem informal e direta (conversa cotidiana);
- dialogismo entre autor e leitor (conversa cotidiana);
- humor e sensibilidade;
- flexibilidade de gênero, diferente da rigidez de outros textos em prosa;
- relação entre ficção e história;
- relação com o jornalismo (Ferreira, 2008, p. 373).
Desse modo, encaramos a crônica com base em algumas dessas singularidades, visto que as diferenças entre crônica narrativa e conto são mínimas, “principalmente quando a crônica não tem referência explícita ao real, seja ele um assunto baseado em fato datado e referido ou uma marca do autor-cronista” (Ferreira, 2008, p. 384). Outro ponto que somaríamos aos aspectos elencados seria o caráter crítico e satírico, que é menos comum nos contos de forma geral. Por fim, reiteramos os dizeres da autora (p. 390): “a crônica, para nós, é um gênero constituído pelos tipos narrativo e dissertativo. Além disso, é caracterizada pela informalidade, produzida por efeitos dialógicos entre autor, leitor ou entre as personagens”.
Por sermos professores, pesquisador e pesquisadora, da Educação Básica, comumente estamos nos questionando e problematizando o gênero crônica na sala de aula com nossos/as estudantes, visto que é bastante presente no cotidiano por meio de sequências didáticas, livros didáticos e livros literários obrigatórios. Assim, reiteramos que entendemos esse gênero, em especial, a partir de seu uso social/escolar. É, nesse contexto, que analisamos as crônicas produzidas pelas estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
O contexto de produção das crônicas: os anos iniciais do Ensino Fundamental
A instituição em que foi realizado o trabalho é um centro de ensino e pesquisa de Goiás. Fica localizado em uma região periférica de Goiânia, a capital, mas recebe público de vários estratos sociais. Por ser uma instituição pública bastante concorrida, o ingresso do/a estudante é feito mediante edital e sorteio de vagas realizado anualmente. Um dos pesquisadores, à época, era professor substituto da instituição e promoveu o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa ancorado na perspectiva análise dialógica do discurso.
O trabalho com os/as estudantes foi realizado durante o último semestre de 2019 (logo, antes da pandemia) e contou com a participação de 32 educandos/as de uma turma dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Para este artigo, foi feito um recorte de um momento específico: o estudo do gênero crônica com base no texto “Piscina”, de Fernando Sabino. O professor entregou material impresso para cada um/a dos/as educandos/as e solicitou que eles/as fizessem uma leitura silenciosa do texto; em seguida, fez uma leitura da crônica para eles/as, e por fim, fizeram uma leitura colaborativa (todos/as juntos/as, ao mesmo tempo). Em seguida, o professor criou uma roda de debate para que cada estudante expressasse sua opinião sobre a narrativa lida.
O momento foi bastante proveitoso e, devido ao engajamento, tivemos que estender a discussão para mais uma aula. Na aula seguinte, os estudos da crônica foram retomados e uma nova leitura colaborativa foi realizada. Contudo, para a discussão desse dia foi dado um tópico específico: “quem é a mulher da crônica?”. Esse questionamento foi levantado porque a narrativa não apresenta muitos detalhes da mulher; ela é apenas uma personagem que vive na favela, é pobre e pega água em uma piscina da casa de pessoas ricas. Foi pensando nesse detalhe e na possibilidade de criar uma nova realidade para ela, dando-lhe inclusive nome, que a discussão foi realizada. Cada estudante apresentou seus pontos de vista e, assim, a aula foi encerrada (mais duas aulas de 50 minutos). O professor, então, solicitou como tarefa de casa que cada um/a pensasse na história daquela personagem, analisando sua realidade e seu cotidiano – característica marcante da crônica. Notemos que o conceito de crônica não foi trabalhado em nenhum momento, apenas foram dadas dicas de suas características.
Na aula seguinte, o texto foi lido mais uma vez e alguns pontos da discussão foram levantados: latas d’água, crianças, mansões, piscinas e a favela. Após essa discussão, foi solicitado um texto. O docente pediu que cada um/a produzisse uma crônica sobre a mulher. Não tinha tema específico, apenas que eles/as criassem/reconhecessem a história dela: o que ela fazia no cotidiano, quais eram seus sonhos... No final das três aulas, a grande maioria já havia terminado – quem não terminou foi solicitado que terminasse em casa. O professor ainda pediu que todos levassem o texto reescrito para o próximo momento. Nas aulas seguintes, iniciamos a discussão dos textos escritos na aula anterior; a grande maioria dos/as estudantes – os/as que quiseram ler seu texto – puderam fazer isso. E, em cada texto, construído individual ou mesmo coletivamente/dialogicamente, os/as estudantes viram as criatividades e criticidades de cada um/a de seus colegas (dava para ver alguns olhinhos brilhando).
No final da aula, o professor solicitou que eles/as entregassem os textos (ressaltamos que apenas sete discentes não entregaram a produção) para corrigi-los. Na semana seguinte, o professor pediu que todos revisassem seus textos mais uma vez e afixassem nos murais da escola as versões finais para que os/as demais educandos/as de outras turmas pudessem lê-los. Para este artigo, considerando os limites do gênero, selecionamos apenas três produções. Essa seleção ocorreu por meio de um sorteio feito pelo pesquisador e professor da turma à época. Esse procedimento foi realizado para que a qualidade da pesquisa fosse preservada, visto que, dentre todo o escopo de textos possíveis, cada estudante poderia ter entendido a proposta de uma dada forma (nossas vivências são únicas e singulares). Desse modo, as três produções foram digitadas para que a integridade do/a estudante seja preservada. Tais aspectos estão em consonância com o Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Goiás, que nos autorizou a utilizar o material do acervo do professor para fins de pesquisa.
Em nossas análises, no primeiro momento apresentamos o texto que motivou as discussões, “Piscina”, e as produções das crônicas. No segundo momento, procederemos com nossas análises dos escritos.
Estudo das crônicas: o texto-base “Piscina” de Fernando Sabino
Era uma esplêndida residência, na Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins e, tendo ao lado, uma bela piscina. Pena que a favela, com seus barracos grotescos se alastrando pela encosta do morro, comprometesse tanto a paisagem.
Diariamente desfilavam diante do portão aquelas mulheres silenciosas e magras, lata d’ água na cabeça. De vez em quando surgia sobre a grade a carinha de uma criança, olhos grandes e atentos, espiando o jardim. Outras vezes eram as próprias mulheres que se detinham e ficavam olhando.
Naquela manhã de sábado ele tomava seu gim-tônica no terraço, e a mulher um banho de sol, estirada de maiô à beira da piscina, quando perceberam que alguém os observava pelo portão entreaberto.
Era um ser encardido, cujos trapos em forma de saia não bastavam para defini-la como mulher. Segurava uma lata na mão, e estava parada, à espreita, silenciosa como um bicho. Por um instante as duas mulheres se olharam, separadas pela piscina.
De súbito pareceu à dona de casa que a estranha criatura se esgueirava, portão adentro, sem tirar dela os olhos. Ergue-se um pouco, apoiando-se no cotovelo, e viu com terror que ela se aproximava lentamente: já atingia a piscina, agachava-se junto à borda de azulejos, sempre a olhá-la, em desafio, e agora colhia água com a lata. Depois, sem uma palavra, iniciou uma cautelosa retirada, meio de lado, equilibrando a lata na cabeça – e em pouco sumia-se pelo portão.
Lá no terraço o marido, fascinado, assistiu a toda a cena. Não durou mais de um ou dois minutos, mas lhe pareceu sinistra como os instantes tensos de silêncio e de paz que antecedem um combate. Não teve dúvida: na semana seguinte vendeu a casa (Sabino, 1976).
Produções das estudantes
Texto 1 – Maria Vitória
Júlia e sua história
O seu nome era Júlia, era baixa e amava brincar, seu maior sonho era ser astróloga, pois gostava de tudo que tem a ver com o céu: galáxia, estrela, planetas, sol, lua, eclipse e tudo o mais. Sua família era seu pai, sua mãe, suas irmãs: Nicole e Ana. Sua irmã Nicole gostava de música eletrônica e Ana amava o seu hoverboard. Sua mãe gostava de revistas de moda, e seu pai de jornal, e já ia me esquecendo do seu animalzinho de estimação, Jolie, uma cachorrinha que para ela é a mais fofa de todas. Ela estudava em uma escola chamada Dom Filemon, mas todos os dias, antes de ir para a escola, ela pegava um jarro e ia até a piscina para pegar água para sua irmã, pois sua irmã não podia tocar na água de onde ela vivia, porque não era muito limpa. As duas partes do dia que ela mais gosta é quando ela chega da escola porque ela e suas irmãs brincam até cansar e a outra parte é a janta porque ela se reúne com sua família.
Texto 2 – Luna Maria
Stela
Stela era uma menina muito triste, pois achava que a felicidade só vinha a partir do dinheiro, pois ela era muito pobre. Ela tinha vários sonhos de viajar para fora do Brasil.
Muito sozinha vivia ela com seu pai Wesley, que a ajudava a esconder um grande segredo: era uma poetisa que se inspirava em ajudar pessoas que viviam na mesma condição que ela, de pobreza. Trapos e latas de água na cabeça eram seus temas preferidos.
Stela tinha 20 anos e largou a escola no 5º ano para ajudar a família. Ela sempre andava com uma lata de água na cabeça para levar água para sua família e para os mais pobres. Apesar da dificuldade que ela enfrentava ali, ela gostava de lá, pois sempre ajudava as pessoas que eram necessitadas.
Seu pai tinha muito orgulho dela, pois quando tinha a mesma idade que ela achava que ajudar os outros não significava nada, mas sua filha mudou seu modo de observar isso. Ela ainda vive na favela, mas faz de tudo para ajudar as pessoas que lá vivem também.
E assim vai a vida de Stela...
Texto 3 - Joana Liz
O pequeno lago
Perto da Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins, existia uma favela e perto dessa favela tinha uma mansão, que era muito bonita.
A menina que mora na favela se chama Gabi. Gabi tem 16 anos e cuida de seus irmãos mais novos. Ela tem vários sonhos e um desses sonhos é dar uma vida melhor para seus irmãos, pois eles vivem na favela e não têm muitas condições de dinheiro.
Um dia foi para o rio pegar água, mas quando chegou lá o rio estava seco. O rio se chamava Meia Ponte e ficava perto da favela e era um pouco sujo, mas as pessoas bebiam água de lá. Depois de ver isso ela então voltou para casa muito entristecida, e foi aí que viu uma casa que tinha um pequeno e bonito rio. Então, ela entrou lá e pegou um pouco de água do rio. Mais quando ela já estava saindo da casa, o portão fechou, e ela já estava atrasada porque ela tinha aula à tarde.
E a dona da casa que viu tudo pensou: - Gosto muito de ajudar as pessoas, não tem problema ela pegar água do meu rio e mesmo assim se mudou de lá de perto da favela.
Fonte: Acervo pessoal dos pesquisadores.
Ao analisarmos qualquer texto (imagem, outdoor, anúncio publicitário, tirinha etc.) à luz da vertente dialógica de discurso, temos de ter em mente que os enunciados não significam e não existem por eles mesmos, mas sempre pressupõem a existência de um sujeito com suas valorações axiológicas e sua responsividade ativa e ética. Isso quer dizer que “toda enunciação envolve um tom avaliativo impresso pelo sujeito e suas atuações verbais, de acordo com suas relações com seu interlocutor e o momento da interlocução” (Sobral, 2009, p. 83-84). Um enunciado também está sempre em relação com outros e responde a outros que o precedem e/ou o sucedem no processo ininterrupto da comunicação discursiva, sempre atravessados pelas valorações dos sujeitos que os (re)produzem.
Assim, corroboramos os ideais de Bakhtin/Volóchinov (2017, p. 181) quando diz que “a palavra está sempre repleta de conteúdo e de significação ideológica ou cotidiana. É apenas essa palavra que compreendemos e respondemos, que nos atinge por meio da ideologia do cotidiano”. Logo, os dizeres mobilizados pelas estudantes que escreveram os textos não são neutros, mas preenchidos de valorações, pois, como sujeitos discursivos, ao interagir com seus/suas colegas de turma, com o professor, com seus contextos e com o texto “Piscina”, elas estabelecem (criam) diversas relações dialógicas com a crônica que produzem.
No primeiro texto, observamos que a autora, Maria Vitória, cria uma trajetória e um cotidiano para a personagem da crônica ‘Piscina”. Ela deixa de ser apenas uma personagem “sem identidade”; agora, possui um nome, tem uma família, tem sonhos e um animal de estimação. Ao possibilitar todas essas características à personagem feminina, Maria cria uma história de vida para Júlia (algo que o autor da crônica Sabino não desenvolveu), dá condições de existência para ela, atribui-lhe um nome. Júlia, a personagem, passa a ser possuidora de sonhos e ajuda as irmãs. A estudante também explica o motivo de ela estar buscando água na piscina – claro que com sua visão de uma criança de nove anos de idade, cheia de sonhos e projetos, do Centro-Oeste brasileiro, onde a zona periférica é bem diversa do Rio de Janeiro. Desse modo, observamos que o contexto onde foi produzida a crônica de Maria Vitória diz muito sobre as características e atitudes da personagem feminina, que emerge em seu texto.
No segundo texto, Luna conta a história de Stela, a personagem feminina que aparece na crônica base. Notemos que no primeiro parágrafo a autora mobiliza o discurso social (financeiro), demonstrando que ela entende as complexas relações sociais nas quais estamos submergidos. Ela infere que apenas quem tem melhores condições financeiras consegue realizar seus sonhos. Por algum motivo a mãe da personagem foi apagada da crônica: “muito sozinha vivia ela com seu pai Wesley”. A autora demonstra e quebra os estereótipos de que as famílias são apenas constituídas por homem, mulher e filhos/as, mas que também pode ser pai e filha. Outro ponto que foi apresentado e que muito chamou a atenção foi o fato de Luna Maria dizer que a personagem guardava um grande segredo: “era uma poetisa que se inspirava em ajudar pessoas que viviam na mesma condição que ela vivia, de pobreza. Trapos e latas de água na cabeça eram seus temas preferidos”. A literatura e as condições sociais estão profundamente ligadas: seria então, a literatura um bem que deve ser guardado em segredo ou um bem que tira os indivíduos de suas realidades tão fragilizadas? Além disso, a estudante ressalta que os assuntos do cotidiano da menina são temas de seus escritos, talvez uma forma de denunciar sua realidade. Outro ponto que foi levantado no texto que muito nos chamou a atenção refere-se ao trecho: “Stela tinha 20 anos e largou a escola no 5º ano para ajudar a família. Ela sempre andava com uma lata de água na cabeça para levar água para sua família e para os mais pobres. Apesar da dificuldade que ela enfrentava ali, ela gostava de lá, pois sempre ajudava as pessoas que eram necessitadas”. A visão crítica e os dizeres mobilizados em seu discurso demonstram que Luna está ciente de diversos problemas sociais, tais como a não conclusão dos estudos e o que leva a isso, em muitos casos: a obrigação de ajudar a família a manter a renda do lar.
No encerramento de seu texto, a garota expressa a importância de ajudar os outros e o que isso pode gerar nas pessoas próximas a nós: “seu pai tinha muito orgulho dela, pois quando tinha a idade dela achava que ajudar os outros não significava nada, mas sua filha mudou seu modo de observar isso. Ela ainda vive na favela, mas faz de tudo para ajudar as pessoas que lá vivem”. Mesmo diante de uma pobreza extrema, em um local marginalizado e malvisto socialmente, a garota consegue ressignificar muito do que é apresentado e entendido pelas mídias e pela sociedade em relação às favelas brasileiras: “uma poetisa que vive na favela e ajuda aos outros”.
Joana Liz faz uma relação direta com a crônica “Piscina”: “Perto da Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins, existia uma favela e perto dessa favela tinha uma mansão, que era muito bonita”.A garota ressignifica a crônica e escreve um texto de autoria sobre a personagem: “Gabi tem 16 anos e cuida de seus irmãos mais novos. Ela tem vários sonhos e um desses sonhos é dar uma vida melhor para seus irmãos, pois eles vivem na favela e não têm muitas condições de dinheiro”. Assim como faz as duas outras estudantes, Joana também deu nome e história para a personagem feminina. Ela reconhece que a personagem passava por problemas financeiros e sonhava dar um futuro melhor para os irmãos. Em nossa sociedade, é comum termos sonhos como esses, pois vivemos em uma sociedade capitalista que diferencia quem pode ter e quem não pode: tudo relacionado ao capital, ao dinheiro.
Para explicar o motivo de Gabi ter de ir buscar água, Joana parte de seus conhecimentos geográficos locais para atribuir um nome para o rio e ainda considera a questão das mudanças climáticas e poluição, que leva os rios a ficar secos: “Um dia foi para o rio pegar água, mas quando chegou lá o rio estava seco. O rio se chamava Meia Ponte e ficava perto da favela e era um pouco sujo, mas as pessoas bebiam água de lá”.Meia Ponte é um rio muito conhecido em Goiânia/GO, já que passa por vários setores, e por ser poluído e fétido. O fato de a estudante citar esse rio demonstra que é algo que faz parte de sua vivência social. Em oposição ao rio sujo e poluído, em relação à falta de água da favela e à busca por água em uma piscina, ela diz: “depois de ver isso ela então voltou para casa muito entristecida, e foi aí que viu uma casa que tinha um pequeno e bonito rio. [...] E a dona da casa que viu tudo pensou: – Gosto muito de ajudar as pessoas, não tem problema ela pegar água do meu rio, e mesmo assim se mudou de lá de perto da favela”. O rio torna-se uma fonte de água limpa para Gabi, que precisa levar água para sua família. Em nossa sociedade, sabemos que milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e ao saneamento básico. Além disso, diversos rios são poluídos pelo excesso de lixo produzido e pela falta de descarte adequado. Assim, a dona da casa que tinha um rio que passava em sua propriedade – mais uma discrepância, pois, enquanto uns têm espaços grandes com possibilidades de terem rios, outros não têm água para beber –, se muda de lá para não conviver com aquela situação, bastante parecida com a da crônica-base.
De modo geral, os estudos realizados sobre a crônica – a escrita de outro texto e o debate realizado por elas – nos mostram que, para desenvolver criticidade em relação à leitura de um texto, precisamos ousar e entender que o processo necessita ser dialógico, precisamos entender e analisar o ponto de vista do outro, que relações são criadas, pois elas geram significações responsáveis “a partir do encontro de posições avaliativas” (Faraco, 2009, p. 66), de vivências axiológicas e de subjetividades. E para expressarem suas opiniões e críticas em relação às crônicas produzidas, as estudantes elas valoraram a água, o contexto social, a escolaridade, enfim, o contexto em que elas próprias e a personagem feminina estão inseridas. Nesse contexto, compreendemos essas valorações que as fizeram refletir e compreender a partir de suas impressões a personagem feminina apresentada na crônica base.
Maria Vitória, Luna Maria e Joana Liz, em seus textos, demonstram uma compreensão viva, ativa e responsiva (Bakhtin, 2016) do contexto da personagem. Desenvolvem um posicionamento crítico a partir da produção da crônica. Acreditamos, com isso, que a leitura e a escrita dos textos atingiram o viés social a que se propõem, excedendo os limites e os muros da escola. Nesse sentido, os três textos mostram que “todo modo de dizer é parte de um repertório – e em alguns casos do arsenal – de modos de dizer social, histórica e ideologicamente possíveis, sendo o sujeito o mediador entre elas e aquilo que ele pode realizar e realiza no contexto específico de sua enunciação” (Sobral, 2009, p. 100). No momento em as autoras enunciam, demonstram como estabelecem as relações com a sociedade em que vivem, esses dizeres também demonstram, de certa forma, o posicionamento de muitos outros sujeitos, haja vista entendermos que o “sujeito fala no interior de uma ‘rede de interlocução’ (ou de interlocutores) em que ocupa diferentes posições-sujeito em diferentes situações de enunciação” (Sobral, 2009, p. 55). Logo, as estudantes que escrevem estão no mundo que sofre e faz ações nele e não são sujeitos neutros.
Além disso, em relação à análise dos textos, percebemos que o discurso das educandas, posto em relação com o discurso dos/as outros/as que estavam na sala de aula, foi levado a formular uma resposta, de forma que fosse capaz de argumentar e enxergar no discurso do outro o seu lugar, o excedente de sua visão e da nossa visão, como professor/a. Em outras palavras:
Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse – excedente sempre presente em face a qualquer outro indivíduo – é condicionado pela singularidade e pela insubstituibilidade do outro em meu lugar: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim (Bakhtin, 2011, p. 21).
As estudantes, podemos dizer, foram o excedente de visão umas das outras, de seus/suas colegas e do professor que estava na turma naquele momento e, por que não dizer, o excedente de visão do próprio herói, do próprio autor. Assim, acreditamos que, de certa forma, elas foram capazes de vislumbrar que um enunciado só existe em relação a outro (Bakhtin, 2011), a partir do momento em que conseguiram entender que, para argumentar e escrever seus textos sobre algo tão especifico, seria necessário recorrer a outros dizeres, a outros enunciados, para além daqueles que já estavam no texto.
Por fim, as crônicas produzidas a partir de “Piscina” evidenciam aquilo que Fiorin (2018, p. 90) expressa: “a voz do autor não dá a última palavra na avaliação do herói. [...] O todo é a interação das diversas consciências numa justaposição, num contraponto, numa simultaneidade”, o que para nós significa dizer que a voz do autor do texto, a voz dos/as colegas de turma, a voz do professor fez com que as estudantes criassem novos efeitos de sentido em seus textos e em suas vivências, visto que essa atitude responsiva-ativa não precisa necessariamente ser verbalizada. Dito em termos do Círculo, “todas as manifestações da criação ideológica, isto é, todos os outros signos não verbais são envolvidos pelo universo verbal, emergem nele e não podem ser isolados nem separados dele por completo” (Volóchinov/Bakhtin, 2017, p. 100).
A considerar...
A partir da leitura, análise e discussão das crônicas produzidas pelas estudantes, percebemos que a escrita dialógica possibilitou a cada uma das autoras refletir sobre seus contextos, famílias e a própria sociedade, partindo de suas existências únicas e singulares no mundo para criar a história da personagem feminina da crônica “Piscina”. Na condição de professores/as, devemos mostrar outros caminhos possíveis para que nossos/as estudantes reflitam sobre seus contextos e sobre os contextos de outros/as, como, por exemplo, de uma personagem desprovida de nome, características e sonhos. Para isso, devemos realizar o trabalho de escrita como um processo e devemos externar aos/às educandos/as que eles/as não devem escrever tão somente para eles/as próprios/as ou professor/a, mas para os outros e outras que estão no mundo. Devemos assim, como diz Geraldi (2012), procurar dar outros destinos que não o cesto de lixo para as produções de nossos/as estudantes.
O trabalho final com as crônicas foi uma exposição nos murais da escola e uma visita guiada durante alguns intervalos para que os/as colegas de outras turmas pudessem analisar as produções. Também poderíamos ter feito um varal, dentre inúmeras outras alternativas. Em suma, ao produzirem seus textos, na perspectiva dialógica, os/as estudantes poderão reconhecer a existência de outros públicos – o que, simultaneamente, possibilitou uma interação social (dialógica) entre autor/a e futuro leitor/a. Afinal, os/as educandos/as entenderam que deveriam selecionar, mobilizar e organizar seu discurso pressupondo a existência de vários/as outros/as leitores/as e não apenas o/a professor/a.
Referências
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Publicado em 23 de novembro de 2021
Como citar este artigo (ABNT)
MOURA, Rodrigo Milhomem de; ASSIS, Lara Roberta Silva; COSTA, Alexandre Ferreira da. O ensino-aprendizagem de escrita por meio do gênero discursivo crônica: análise de textos de estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Revista Educação Pública, v. 21, nº 42, 23 de novembro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/42/o-ensino-aprendizagem-de-escrita-por-meio-do-genero-discursivo-cronica-analise-de-textos-de-estudantes-dos-anos-iniciais-do-ensino-fundamental
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