Resenha do artigo “A aquisição da escrita: teoria, reflexão e aplicação”

Cleiliane Sisi Peixoto

Graduada em Letras - Língua Portuguesa (UFG), doutora em Estudos Linguísticos (Unesp), professora de Linguística e Língua Portuguesa (IFG - Câmpus Goiânia)

No artigo resenhado, como sugere seu próprio título, “Aquisição da escrita: teoria, reflexão e aplicação”, Casseb-Galvão trata da aquisição da linguagem escrita por uma perspectiva que considera a trilogia “teoria, reflexão e aplicação” inerente ao processo ensino-aprendizagem da língua escrita, tanto no que se refere às práticas do alfabetizando quanto no que diz respeito às do alfabetizador.

A relevância desse texto reside na consideração não somente sobre o processo que ocorre no aluno para aquisição da escrita, mas também sobre a imprescindível ocorrência desse processo no professor para a efetivação de tal aquisição. É possível inferir que se trata de um texto que contribui para levar à compreensão sobre a trilogia mencionada acima e para clamar pela participação do alfabetizador nesse processo.

Casseb-Galvão crê que, no processo de aquisição da escrita, o aluno formula hipóteses, teoriza sobre o funcionamento dessa modalidade da língua baseando-se no conhecimento internalizado da gramática de sua língua na modalidade oral, gramática essa que o alfabetizando utiliza em diferentes situações de comunicação. Isso se explica porque, conforme a mencionada estudiosa, que se apoia em Neves (2001), a consideração teórica básica numa ótica funcionalista é que o falante traz para a situação comunicativa o conhecimento linguístico que possui internalizado e que língua e fala não constituem uma dicotomia, mas sim instanciam diferentes modalidades de uso da língua.

Portanto, para a autora, a aquisição da escrita (aplicação) pelo aluno se dá com o auxílio do professor a partir da formulação de hipóteses e da teorização, conforme evidenciam as marcas de oralidade em produções escritas. A consideração a ser feita é que, por adotar a perspectiva funcionalista da linguagem para a análise do processo de aquisição da escrita, Casseb-Galvão compreende que as marcas da oralidade em produções escritas não se justificam como meros “erros” cometidos pelo alfabetizando, mas resultam do fato de o aluno teorizar sobre a língua escrita com base na falada. É, portanto, no sentido de fornecer uma explicação coerente e fundamentada sobre a questão do “erro” nas produções escritas dos alfabetizandos que o artigo resenhado se apresenta relevante.

Segundo a autora, o professor que atenta para essas questões a respeito da aquisição da escrita torna-se capaz de identificar as dificuldades do alfabetizando e, consequentemente, de avaliar coerentemente seus alunos. Em decorrência disso, o prévio conhecimento linguístico do aluno passa a ser respeitado, e a alfabetização –  que, segundo Casseb-Galvão, somente ocorre quando o aluno sabe reconhecer os aspectos funcionais e formais inerentes à modalidade escrita da língua – passa a ser vista como um processo gradual cujas fases revelam o nível de aquisição de uma modalidade linguística nova para o aluno.

A pertinência do trabalho da autora não está somente na apresentação de um estudo sobre a aquisição da escrita; está também no seu propósito de contribuir para uma prática pedagógica mais coerente, à medida que chama a atenção do professor alfabetizador para tomar conhecimento do processo que envolve a aprendizagem da modalidade linguística em questão.

Essas considerações iniciais a respeito da aquisição da escrita constituem a introdução do artigo. Esclarece a autora que se trata de premissas que vêm direcionando a prática de extensão e pesquisa voltada para o ensino de língua materna do curso de Letras do câmpus Catalão, da Universidade Federal de Goiás (CAC/UFG). Segundo ela, a constituição da seção “Reflexão” se deu com base nos relatos de experiências de professores da rede pública municipal daquela cidade. Afirma ainda a autora que, na seção “Aplicação”, apresentam-se analisadas as ocorrências de uso da língua (produções escritas de alunos de escolas públicas de Catalão referentes aos três primeiros anos de vida escolar) que integram o corpus para fornecer dados para o Programa Bolsa de Licenciatura Universidade Federal de Goiás (Prolicen).

A seguir, na seção “A teoria - a aquisição da escrita: o professor e as questões teóricas gerais”, Casseb-Galvão apela mais explicitamente pela necessidade de o professor de língua materna, assim como o professor de alfabetização – concebida pela autora como domínio da modalidade escrita da língua para comunicação mais ou menos eficaz, tratando-se portanto de um processo que se estende por muitos anos escolares –, não somente possuir conhecimento teórico-linguístico a respeito da natureza da língua escrita e do processo de aquisição dessa modalidade linguística, mas também aplicar tal conhecimento à sua prática de ensino, sob pena de não realizar um trabalho produtivo.

A autora faz uma advertência relevante quanto à aquisição da escrita. Segundo ela, as teorias que tratam da aquisição da linguagem geralmente não distinguem as modalidades da língua, o que leva à aplicação das postulações formuladas para aquisição da língua falada à aquisição da escrita. Nota-se uma falha em relação aos estudos realizados acerca da linguagem, haja vista que a língua falada e a língua escrita constituem modalidades linguísticas diferentes, o que conduz à necessidade de estudos, de formulações e de postulações a respeito da língua escrita.

Apesar disso, Casseb-Galvão adota as duas principais tendências do pensamento linguístico ocidental – o formalismo e o funcionalismo – porque podem agrupar as várias teorias que tratam da aquisição da linguagem. O formalismo, representado principalmente pela teoria gerativa de Chomsky, concebe a linguagem como um sistema de regras que, radicadas na mente humana, são responsáveis pela produção de estruturas linguísticas.

Essa teoria acredita que o ser humano possui uma capacidade inata para linguagem, já que ela é específica da espécie humana. Nesse sentido, cabe ressaltar que, de acordo com a teoria gerativa, a criança nasce com um potencial completo para a linguagem e atinge seu pleno funcionamento com a maturação do “órgão mental” denominado por essa teoria de LAD (Language Acquisition Device), UG (Universal Grammar) ou faculdade da linguagem, lugar em que se encontraria depositado o conhecimento linguístico.

Casseb-Galvão enfatiza que os funcionalistas acreditam que a necessidade faz gerar novas formas e que a capacidade linguística é determinada culturalmente. Logo, para o funcionalismo, o contexto cultural é um dos recursos da aquisição da linguagem. De fato, para a vertente funcionalista da linguagem, nada é arbitrário, ou seja, tudo é motivado, de modo que o contexto cultural é motivador para a aquisição da linguagem.

Neves (2001), tal como Casseb-Galvão, salienta que as teorias linguísticas devem ser a base da prática do professor de língua materna, que não deve apenas ter conhecimento delas; deve sobretudo aplicá-las na sala de aula. Nesse sentido, é válida a ressalva das autoras, pois muitos docentes de língua materna se recusam a adquirir conhecimentos acerca da teoria da linguagem afirmando que eles são dispensáveis para profissionais com muita experiência educacional.

As autoras afirmam que o funcionalismo e o formalismo contribuem igualitariamente para que o professor alcance seus objetivos, haja vista que tais correntes linguísticas possuem diferentes objetos de estudo, metodologias, princípios e objetivos. Assim, elas podem articular entre si, contribuindo para as intenções do professor em sua prática educativa, que deve se valer de seus conhecimentos teóricos conforme o fenômeno linguístico com qual está trabalhando.

Casseb-Galvão crê na conveniência de tratar da aquisição da escrita sob uma perspectiva funcionalista da linguagem. Sob esse ponto de vista, a autora acredita – e enfatiza novamente – que o princípio básico, de acordo com Neves (2001), é que o usuário da língua traz para a situação comunicativa o conhecimento linguístico já internalizado e que, portanto, língua e fala não constituem uma dicotomia, mas diferentes modalidades de uso da língua. Nesse sentido, pode-se afirmar que a ótica linguística adotada por Casseb-Galvão para o tratamento da aquisição da escrita é coerente e conveniente, na medida em que esclarece ao professor de língua materna que os “erros” nas produções escritas dos alunos da primeira fase do Ensino Fundamental não são “meros erros”, mas casos de “transferência” de aspectos da oralidade.

Destarte, a contribuição do artigo está no esclarecimento de que esse processo de transferência resultante em “erros” evidencia que o aluno, no processo de aquisição da escrita, formula hipóteses, teoriza sobre essa modalidade de escrita com base no conhecimento da gramática da língua na modalidade oral que ele já possui e internalizou e da qual faz uso eficaz em diferentes situações de interação comunicativa. Logo, a alfabetização – ou melhor, a aquisição da escrita – ocorre quando o alfabetizando, auxiliado pelo professor, reconhece os aspectos formais e funcionais inerentes à escrita, os quais a diferem da modalidade falada.

Assim, é preciso ressaltar que, além da contribuição de esclarecer sobre a aquisição da escrita, o artigo resenhado também se destaca pelo seu propósito de levar o professor alfabetizador a aplicar a teoria linguística acerca da aquisição da escrita em sua prática pedagógica. Desse modo, a autora acredita que o professor alfabetizador que faz considerações sobre a questão da aquisição da escrita, que reflete sobre a produção escrita do aluno e que direciona a sua prática com base nessas reflexões certamente saberá identificar as dificuldades do alfabetizando e, consequentemente, poderá distinguir e avaliar melhor os tipos de “erros”. Como resultado disso, a alfabetização será vista como um processo gradual cujas fases revelam o nível de aquisição de uma nova modalidade da língua.

No artigo, é perceptível que a trilogia “teoria, reflexão e aplicação” é inerente ao processo de ensino-aprendizagem da língua escrita, ou seja, ela se refere tanto às práticas do alfabetizando quanto às do alfabetizador. Portanto, diante de tal conhecimento, é exigida uma mudança de comportamento em relação ao mencionado processo, e é por isso que Casseb-Galvão salienta que o professor não deve realizar uma prática mecanicista, mas é preciso que se volte para o exercício cognitivo que o aluno alfabetizando empreende para chegar à produção de seu texto.

De acordo com a autora, sua intenção não é apresentar um novo método de ensino de alfabetização, mas levar o professor a refletir sobre sua prática atual. Para ela, é necessário considerar que não há de fato uma única fórmula específica de levar o aluno à aquisição da escrita. O professor responsável pelo processo de ensino-aprendizagem de língua precisa ter boa vontade de se voltar para sua prática, refletir sobre ela e definir as metodologias cabíveis para levar o aluno à aquisição da escrita, haja vista que tal profissional é competente no sentido de ter formação nas ciências da linguagem. Acima de tudo, ele deve reconhecer no seu aluno um usuário competente na língua materna falada que está em contato com uma nova modalidade linguística.

Casseb-Galvão apresenta alguns questionamentos que o alfabetizador precisa fazer para melhor direcionar o exercício de uma prática de ensino reflexiva. É necessário que ele se questione se está conseguindo exercer com eficácia seu papel de alfabetizador; se está correspondendo ao que seu aluno espera dele; se sabe o tipo de experiência que o seu aluno está trazendo para sala de aula; se está conseguindo transmitir ao seu aluno o propósito da aprendizagem da escrita; e, por fim, se está realmente claro para ele que a escrita não é a reprodução da fala, mas que essas modalidades instanciam diferentes graus de formalidade de uso da mesma língua. A autora enfatiza que a sensatez deve permear a “aplicação”, ou seja, o tratamento dos “erros” de aquisição da escrita, à medida que o professor deve respeitar o aluno como sujeito que possui suas próprias ideias e interpretações da realidade.

Na seção “A aplicação”, Casseb-Galvão analisa alguns “erros” de transferência da oralidade para a escrita que foram identificados no corpus Prolicen (produções escritas de alunos de escolas públicas de Catalão/GO referentes aos três primeiros anos de vida escolar). Os dois tipos de “erros” apresentados pela autora são:

  1. a transcrição fonética propriamente dita, que se caracteriza fundamentalmente pela substituição da letra pelo fonema que ela representa; e
  2. a linearidade, isto é, a não separação entre os vocábulos componentes da construção frasal.

No artigo a autora se propõe a sugerir o tratamento para tais “erros”; para o primeiro deles, sugere que o professor explique a diferença entre transcrição fonética e ortografia, mostrando que a escrita não é a representação da fala. Assim, é necessário que o aluno seja orientado sobre as várias possibilidades de grafia de um mesmo fonema. Quanto ao segundo tipo de “erro”, a linearidade, a autora acredita que resulte do fato de o aluno não conseguir distinguir entre a segmentação da fala e a da escrita. Nesse caso, é possível que o aluno tenha formulado a hipótese de que a segmentação obedece ao contorno entoacional. Segundo Casseb-Galvão, à medida que descobre a semântica, o aluno descobre também os itens lexicais. A sugestão, portanto, é a prática constante da leitura individual e da escrita. Por isso, é preciso que o professor apresente diferentes modalidades de escrita ao seu aluno e lhe mostre os aspectos que a diferenciam da modalidade falada.

É perceptível a relevância do artigo resenhado ao contribuir diretamente para a melhoria da prática educacional do alfabetizador. Além de a autora apresentar uma explicação satisfatória acerca da trilogia que envolve o processo de aquisição da escrita pelo alfabetizando – “teoria, reflexão e aplicação” –, ela leva o professor a refletir sobre sua prática pedagógica e a tomar uma nova atitude em favor de uma alfabetização coerente e adequada, porque vista como um processo gradual cujas fases revelam o nível de aquisição de uma modalidade linguística nova para o aluno.

Referências

CASSEB-GALVÃO, V. C. A aquisição da escrita: teoria, reflexão e aplicação. In: LIMA-HERNANDES, M. C. (Org.). Domínios de Linguagem I: práticas pedagógicas. São Paulo: Contexto, 2002. p. 135-146.

NEVES, Maria Helena M. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Publicado em 23 de novembro de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

PEIXOTO, Cleiliane Sisi. Resenha do artigo “A aquisição da escrita: teoria, reflexão e aplicação”. Revista Educação Pública, v. 21, nº 42, 23 de novembro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/43/resenha-do-artigo-ra-aquisicao-da-escrita-teoria-reflexao-e-aplicacaor

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