As interfaces entre a Tertúlia Literária Dialógica e as competências socioemocionais

Luana da Conceição

Pós-graduanda em Docência (IFMG- câmpus Arcos), licenciada em Letras - Espanhol (IFB – Câmpus Ceilândia) e em Pedagogia (Unicesumar)

Rute Silva do Nascimento

Pós-graduanda em Docência (IFMG- câmpus Arcos), licenciada em Letras - Espanhol (IFB – Câmpus Ceilândia) e em em Pedagogia (Unicesumar), professora substituta na Educação Básica (SEDF)

Luiz Augusto Ferreira de Campos Viana

Mestre em Engenharia de Materiais (UFOP), bacharel em Engenharia Mecânica (Cefet/MG), professor na Educação Básica e no Ensino Técnico e Tecnológico (IFMG - Câmpus Arcos)

Há muitos anos escuta-se sobre educação integral; mesmo assim, durante muito tempo a escola valorizou a cognição em detrimento dos aspectos socioemocionais. Com o desenvolvimento tecnológico e o avanço da vida urbana, veio a necessidade de um olhar mais cauteloso para outros aspectos além do cognitivo. Sabe-se que é função da escola formar o cidadão integralmente para que ele seja capaz de desenvolver-se social e educacionalmente e para o mercado de trabalho. Essa formação perpassa também as relações socioemocionais. De acordo com a Collaborative for Academic, Social and Emotional Learning (Casel), a educação socioemocional

É parte integrante da educação e do desenvolvimento humano. SEL é o processo pelo qual todos os jovens e adultos adquirem e aplicam os conhecimentos, habilidades e atitudes para desenvolver identidades saudáveis, gerenciar emoções e alcançar objetivos pessoais e coletivos, sentir e mostrar empatia pelos outros, estabelecer e manter relações de apoio, e tomar decisões responsáveis e carinhosas (tradução nossa).

Visando essa formação socioemocional, o Ministério da Educação (MEC) incluiu na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) as habilidades socioemocionais dentro das dez competências que deverão ser alcançadas pelos estudantes da Educação Básica.

Segundo a Revista Educação (2018),

a Educação Socioemocional (em inglês, SEL – Social Emotional Learning) é o processo através do qual os alunos aprendem, dentro do currículo escolar, a refletir e efetivamente aplicar conhecimentos e atitudes necessários ao longo da vida escolar, educando os corações, inspirando mentes, materializando projetos e contribuindo para a transformação desses estudantes pela educação.

Partindo do conceito de educação socioemocional, houve alguns debates sobre quais habilidades seriam necessárias no ambiente escolar, e a partir desses debates a Casel elencou cinco habilidades socioemocionais essenciais: autoconhecimento, autocontrole, consciência social, habilidades sociais e tomada responsável de decisões.

Segundo dados históricos, no período pós-guerra franquista enfrentado pela Espanha, o analfabetismo era crescente e as pessoas estavam devastadas emocionalmente. Naquele tempo havia necessidade de uma educação integral para a reconstrução de vidas no sentido mais amplo, principalmente dos adultos. Nesse contexto surgiu a Tertúlia Literária Dialógica (TLD), uma metodologia de leitura literária que inter-relaciona vida e literatura.

A TLD consiste na reunião de um grupo em círculo para a leitura de uma literatura escolhida coletivamente. Segundo Flecha (1997), os sete princípios desenvolvidos durante as TLD são: diálogo igualitário; inteligência cultural; transformação; dimensão instrumental; criação de sentido; solidariedade; igualdade das diferenças.

Como dito anteriormente, a BNCC passou a incluir as habilidades socioemocionais na Educação Básica, porém é necessário que haja metodologias para trabalhar essas habilidades em sala de aula, e a TLD apresenta potencial para isso.

Diante disso, pretendeu-se demonstrar como a TLD possui princípios análogos às competências socioemocionais e por isso pode ser utilizada em sala de aula para auxiliar a formação integral.

Justificativa

Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a partir de 2020 todas as escolas devem contemplar as competências socioemocionais em seus currículos; por isso, apresenta-se a TLD como metodologia que pode estimular o desenvolvimento dessas competências. A BNCC (2017, p. 25) prevê que

alunos devem desenvolver as dez competências gerais da Educação Básica, que pretendem assegurar, como resultado do seu processo de aprendizagem e desenvolvimento, uma formação humana integral que vise à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.

As competências socioemocionais devem ser contempladas nas competências gerais durante a Educação Básica. É papel do docente conhecer essas competências e praticá-las com os seus alunos em sala de aula. Para que elas sejam contempladas no processo de aprendizagem do aluno, o professor deve pensar a sua prática pedagógica para que as alcance.

Tendo em vista que o professor tem o dever de trabalhar tais competências e que não as alcança somente por meio teórico, sugere-se a TLD, pois, de acordo com Pereira e Andrade (2014), “por ser gratuita e se realizar com grupos em diferentes situações de exclusão, essa atividade de humanização por meio da arte busca a superação de alguns muros antidialógicos impostos pela sociedade de modo geral”. Assim sendo, acredita-se que a TLD pode promover o desenvolvimento das habilidades socioemocionais; além disso, tal metodologia possui princípios humanizadores consolidados que por si sós promovem a alteração da realidade dos participantes da atividade.

Além disso, trata-se de uma contribuição para preencher as lacunas metodológicas. Na educação, carece-se de atividades consolidadas como essa disponíveis aos docentes. Pode-se ver essa consolidação por meio dos livros e artigos científicos já publicados e das práticas realizadas Brasil afora.

O livro de Pereira et al. (2014), Tertúlia Literária Dialógica: expressões de mulheres excluídas em poemas e diários, que foi o primeiro livro sobre o tema a ser publicado no país, traz grande contribuição para o entendimento do tema e de aplicação da TLD, já que relata como começou e se difundiu essa prática, além de contar a história de êxito na prática da TLD em um ambiente educacional com mulheres em situação de vulnerabilidade social. Destaca-se também o trabalho realizado no Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (Niase) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que realiza TLD já há algum tempo com grupos de perfis diversos.

No ano de 2014, também foi ofertado no Instituto Federal de Brasília (IFB) o curso de formação inicial e continuada (FIC), intitulado Tertúlia Literária Dialógica - Poesia e Corpo, no qual houve a oportunidade de a comunidade acadêmica participar e conhecer mais sobre essa prática e sobre como aplicá-la no dia a dia, no trabalho, na escola ou em suas comunidades.

Conhecer a TLD permite que as pessoas percebam que têm voz em uma sociedade elitista e excludente; empodera e contribui para a formação não só acadêmica, mas também humana, o que se fez e faz acreditar na força dessa metodologia para a transformação social, emocional e acadêmica.

Esta pesquisa também busca contribuir para a área da Educação e é direcionada para docentes e para todos aqueles que se interessem pela temática aqui abordada.

Objetivos

Este trabalho busca identificar e compreender as interfaces entre a TLD e as competências socioemocionais. Pretendeu-se mostrar que a TLD é uma ferramenta eficaz para que se alcance em sala de aula o desenvolvimento das competências socioemocionais dos estudantes.

Além disso, o trabalho busca bibliografias pertinentes ao tema; comparar cada uma das habilidades socioemocionais com os princípios da TLD e demonstrar como a TLD pode ser uma ferramenta pedagógica eficaz e simples de ser utilizada em sala de aula pelos professores de Língua Portuguesa e Literatura.

Metodologia

A metodologia desta investigação consistiu em identificar e compreender as interfaces entre a TLD e as competências socioemocionais. Para que fosse alcançada, definimos utilizar a abordagem qualitativa e a pesquisa bibliográfica. Segundo Minayo (1994, p. 21),

a pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa nas ciências sociais com o nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.

Gil (2002, p. 44) afirma que a pesquisa bibliográfica “é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos”. Sendo assim, utilizaram-se artigos, dissertações, teses, livros e outros tipos de textos escritos para criar um recorte teórico sobre a TLD e sobre a competência socioemocional. A partir desse recorte delinearam-se conceitos e traçou-se a análise acerca do tema.

Tertúlia Literária Dialógica (TLD)

Ao longo dos anos, a educação vem sofrendo modificações. A cada dia percebe-se a necessidade de abandonar velhos hábitos e dar lugar a um processo educativo inovador. Há alguns anos, como é sabido, o professor era visto como detentor do conhecimento e o educando era como uma tábula rasa que estava ali pronto para receber todo o conhecimento novo e jamais visto. Para Paulo Freire (1987), “na visão ‘bancária’ da educação, o ‘saber’ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber”. Com o passar do tempo, esse processo de ensino em que o estudante é visto como passivo foi mudando e dando espaço para uma educação considerada dialógica.

Com a ideia de educação dialógica, surgiram diversas pesquisas sobre metodologias e formas de se ter um trabalho mais dialógico. Dentre essas metodologias está a TLD, que nada mais é que uma metodologia de leitura em que os participantes leem um texto em comum acordo e depois cada um o inter-relaciona às suas vivências. Todos os presentes são convidados a compartilhar as suas experiências e, caso algum não se sinta à vontade para compartilhar, todo o grupo silencia para que o participante veja como a sua fala faz diferença para aquele grupo. Quanto ao significado vocabular da TLD, Pereira e Andrade (2014, p. 23) dizem que

tertúlia é um vocábulo de língua espanhola que quer dizer “encontro entre amigos”, literária remete à literatura enquanto uma forma de arte; dialógica remete à superação dos modelos colonizadores de leitura, próprios da escola bancária (tradicional e hierárquica).

Como pode-se ver, a TLD já é por essência, desde os vocábulos que compõem o seu nome, uma atividade que rompe com as estruturas antidialógicas.

A TLD foi uma atividade inicialmente pensada para adultos. Segundo Pereira e Andrade (2014), foi criada em Barcelona, na Espanha, mas se espalhou pelo mundo e chegou até o Brasil. Aqui ela é pesquisada por vários estudiosos; dentre eles estão Pereira e Andrade (2014), que escreveram o primeiro livro sobre o assunto, e Mello (2003), que possui diversos artigos científicos sobre o tema. O Brasil também conta com o Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (Niase), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que realiza tertúlias e pesquisas.

O ser humano é composto por muitas dimensões; durante anos a escola privilegiou apenas a dimensão intelectual, deixando de lado os aspectos sociais e emocionais que compõem o indivíduo. Com a chegada da ideia de uma educação mais dialógica, os olhares começaram a se voltar para a construção de uma educação omnilateral. A TLD proporciona a formação integral do ser humano mediante sua integração com a vida. Mello (2003, p. 456) afirma:

de minha parte, participar das Tertúlias Literárias possibilitou-me vivenciar aprendizagens sobre a língua, sobre outras culturas, sobre minha cultura, sobre minha formação e sobre minha socialização. Também me ajudou a identificar os preconceitos que possuía com relação à idade e à escolaridade, principalmente acreditando que pouco poderia aprender com pessoas idosas sobre conhecimento instrumental, por exemplo, e que essas pessoas estariam limitadas em suas aprendizagens. Aprendia dialogicamente com companheiras e companheiros da tertúlia, transformando minha perspectiva pessoal e profissional de atuação.

A TLD, por seus princípios, humaniza e transforma. É uma atividade que se mostra eficiente em diversos aspectos, é gratuita, é permitida para todos (crianças, jovens e adultos) e não exige nível de escolaridade.

Competências socioemocionais

Ao longo da história da Educação houve interesse no desenvolvimento cognitivo e integral do ser humano, e por isso assuntos como a educação socioemocional começaram a ser discutidos; segundo Pfeilsticker (2020), as primeiras discussões ocorreram em 1994, na reunião do Instituto Fetzer com profissionais da Educação. A partir dessa discussão surgiu o termo social and emotional learning (SEL), ou, em português, educação socioemocional. Além da criação do termo SEL, nessa reunião também nasceu a organização Casel.

De acordo com o site da própria instituição (Casel, 2021), a organização

é uma fonte confiável de conhecimento sobre aprendizagem social e emocional de alta qualidade e baseada em evidências (SEL). A Casel apoia educadores e líderes políticos e melhora as experiências e resultados para todos os alunos do PreK-12 (tradução nossa).

Em resumo, a Casel elencou cinco habilidades socioemocionais essenciais: autoconhecimento, autocontrole, consciência social, habilidades sociais e tomada responsável de decisões.

A escola sempre teve papel importante no desenvolvimento cognitivo dos alunos, porém também é dever da escola garantir que eles desenvolvam competências socioemocionais. Para a BNCC (2017), competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.

Sendo assim, é importante que a escola auxilie no desenvolvimento de todas essas competências, tendo a consciência de que as socioemocionais são tão importantes quanto as outras.

Para Porvir (2014), “as competências socioemocionais são habilidades que você pode aprender; são habilidades que você pode praticar; e são habilidades que você pode ensinar”. As competências socioemocionais muitas vezes foram deixadas de lado em detrimento do desenvolvimento da competência cognitiva, mas hoje as competências socioemocionais também são exigidas, seja no meio profissional, seja na convivência do dia a dia. Essas competências se complementam.

Na BNCC (2017), podemos encontrar dez competências gerais, dentre elas identificamos as socioemocionais que devem ser trabalhadas no ensino básico:

6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.

8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas.

9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.

10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.

A sociedade, o mercado de trabalho, as relações pessoais necessitam que se lide com esses aspectos socioemocionais, e a escola tem papel importante quanto ao desenvolvimento dessas competências; claro que não se deve deixar de lado outras competências, como as cognitivas, porém deve-se reconhecer que as socioemocionais também serão exigidas dos alunos dentro da escola e fora dela. Ramos (2019) corrobora:

habilidades clássicas tradicionais como a linguagem, a escrita em inglês, a matemática, a língua estrangeira, a compreensão em leitura, que, no passado, eram pontos de chegada, hoje são pontos de partida. Quem não as dominar não entra nem no jogo. Com as habilidades clássicas dominadas, novas necessidades se apresentam, como o pensamento crítico, a liderança, o trabalho em equipe, a criatividade e a inovação, a tecnologia da informação aplicada, a responsabilidade social, a ética no trabalho. Não se trata de tecnologia. Para mim, tecnologia também é ponto de partida. O que vai diferenciar as pessoas são qualidades humanas. As qualidades humanas potencializadas nas pessoas é que serão o grande diferencial para o mundo futuro e atual.

Dessa forma, as competências socioemocionais devem fazer parte da formação integral do aluno para que ele possa lidar de maneira eficiente com as situações que aparecerão durante sua vida, para que possa conviver e respeitar os outros e suas diferenças de maneira mais humana; por isso a escola tem importante papel no desenvolvimento dessas competências.

TLD e as competências socioemocionais

Para a análise realizada neste artigo, escolheu-se comparar o Quadro 3 do livro de Pereira e Seixas (2014), que mostra os princípios da TLD, com as habilidades elencadas no site da Casel (2021). A seguir apresenta-se cada um dos sete princípios da TLD, as cinco competências elencadas no site da Casel e, por último, faz-se breve análise dos princípios e das competências socioemocionais.

Os sete princípios da TLD

A TLD é uma atividade cultural e dialógica capaz de promover a transformação nas dimensões pessoal e/ou coletiva. Para que haja tais transformações é necessário que haja frequência de encontros, pois a partir da regularidade são desenvolvidos os princípios apontados por Flecha (1997) em seu livro Compartiendo palabras”  A seguir serão mencionados e destrinchados cada um dos sete princípios, com base no Quadro 3 do livro Tertúlia Literária Dialógica: Teoria e Prática.

  • Diálogo igualitário: Na TLD todas as opiniões e posicionamentos são bem-vindos e aqueles que normalmente são silenciados socialmente durante os encontros das TLD têm o seu momento para externar o que pensam, sem julgamentos ou rechaços. Segundo Pereira e Andrade (2014), “o direito de fala deve ser garantido a todos, de modo equitativo, independente da posição de classe, gênero, idade, raça que o falante ocupa”.
  • Inteligência cultural: A inteligência cultural é também baseada nas ideias de Paulo Freire, quando ele fala da importância da valorização do conhecimento prévio. Na TLD, acredita-se que todos são capazes, dotados de inteligência e que trazem consigo uma enorme bagagem de conhecimentos culturais que podem agregar para o aprendizado de novos conhecimentos. Para Pereira e Andrade (2014), “a capacidade de aprender e de aprender de diferentes maneiras é uma característica própria dos seres humanos ao longo da vida”. Portanto, todo ser humano é capaz de participar de uma TLD e contribuir de maneira significativa, pois a aprendizagem é intrínseca a todos.
  • Transformação: Compartilhar histórias e ouvir novos relatos, por si só, já altera a visão do ser humano sobre diversos assuntos. O diálogo traz a reflexão e o olhar multifacetado sobre diversos temas e, ao perceber que está sendo ouvido e que a sua opinião é importante, há aumento da autoestima do indivíduo, trazendo motivação maior para o aprendizado, o quê a longo prazo, através da educação, promove uma mudança tanto em seu comportamento individual quanto coletivo. Para Pereira e Andrade (2014), “por meio da transformação pessoal, percebemos que somos capazes de nos organizar e participar de lutas mais amplas por transformação social”.
  • Dimensão instrumental: Embora o foco maior da TLD não seja o saber instrumental, essa dimensão é contemplada ao longo do processo, pois, ao ver o seu posicionamento sendo validado e reconhecido, o participante da TLD começa a se interessar cada vez mais e passa a buscar conhecimento de outras fontes para enriquecer cada vez mais o diálogo. Além disso, a leitura por si só fornece grande bagagem de conhecimento instrumental. A escolha da literatura também favorece o saber instrumental, pois muitas vezes o participante que não tem educação formal e que dificilmente leria clássicos literários passa a ter acesso a essas obras nas rodas de conversa. O saber instrumental é valorizado e por meio dele é que são feitas as transformações sociais, segundo Pereira e Andrade (2014): “é necessário que todos possam ter acesso à dimensão instrumental da educação, ressignificando os conhecimentos escolares a partir de suas experiências e necessidades e transformando-os em instrumento para a autonomia”.
  • Criação de sentido: Muitas vezes a escola e o ato de estudar são vistos como desinteressantes; isso acontece porque na educação formal são valorizados os conteúdos e estes são ensinados de forma distante da realidade do educando, que por inúmeras vezes se sente inadequado para aquele ambiente. Na TLD essa distância normalmente é atenuada, pois os participantes falam daquilo que conhecem, das suas realidades; mesclam o conhecimento formal com aquilo que vivem, o que torna a atividade mais significativa, cria sentido e faz com que todos o entendam e vejam o seu papel, o porquê de estarem ali. Isso também ocorre socialmente. Em um mundo totalmente fragmentado e com relações tão frágeis, as pessoas são levadas a ter atitudes impensadas, acompanhando o movimento que ocorre coletivamente, sem refletir sobre os impactos para si e para os outros, e com o passar do tempo perde-se o sentido das ações. A TLD ajuda a resgatar esse sentido, pois traz os participantes para a vivência do “agora” e fortalece o seu lugar no mundo, o seu pertencimento. Para Pereira e Andrade (2014), “por meio da aprendizagem dialógica, o sentido ressurge, já que assumimos a condução das nossas relações interpessoais”.
  • Solidariedade: O ato de ouvir o outro por si já é um ato solidário, pois doa-se tempo para o outro, para ouvir sem julgamentos. Além disso, na TLD a fala pode ser cedida aos que são silenciados socialmente e, em muitos encontros, são percebidos problemas comuns a vários participantes do grupo, gerando uma onda de empatia, de doação e de reciprocidade. Para Pereira e Andrade (2014), “percebe-se que determinados problemas sociais acometem muitas outras pessoas e também que é possível lutar juntos/as para superar esses problemas e garantir direitos a todos”. Pontua-se também a solidariedade na gratuidade da TLD e na possibilidade de participação de todas as pessoas, independente de classe, cor, religião, escolaridade etc.
  • · Igualdade de diferenças: Na TLD, todos são iguais, as relações de poder não podem influenciar o momento da atividade. Deve ser respeitado o modo de ser, de expressar-se e de pensar de cada um. Segundo Pereira e Andrade (2014), “isso significa o direito de ter condições objetivas de dignidade e de poder viver e pensar de maneira diferente”.

As cinco competências socioemocionais

Como dito antes, as competências socioemocionais passaram a integrar o cenário educacional brasileiro a partir do ano de 2020, e para que de fato possam sair do campo teórico e possam integrar o dia a dia escolar é necessário conhecer e dominá-las. Apresentamos as cinco competências mencionadas pela Casel (2021):

  • Autoconhecimento: Conhecimento que cada indivíduo tem sobre si e sobre as suas potencialidades e dificuldades, trabalhando a resiliência e a capacidade de autopercepção.
  • Autocontrole: Capacidade de se autogestionar, controlando as emoções e traçando objetivos.
  • Consciência social: Olhar voltado para o outro. Exercício constante da empatia e respeito às diferenças.
  • Habilidades sociais: Capacidade de relacionar-se com o outro com empatia, respeito e solidariedade.
  • Tomada responsável de decisões: Capacidade de fazer escolhas acertadas, pautadas na moral e na ética.

Princípios da TLD x Competências socioemocionais

Uma importante ferramenta para desenvolver a competência do autoconhecimento é a leitura, principalmente porque nos faz refletir sobretudo sobre nós mesmos. Segundo a organização Porvir (2021),

a leitura é uma atividade que está para além do processo de observação e decodificação das palavras. No momento em que o leitor se relaciona com o texto, ele começa também a construir uma análise da história e de seus personagens. Há uma correlação do tempo da história com o tempo “real”. Muitas vezes tudo ocorre de maneira não planejada e subjetiva. É comum que alguns leitores se enxerguem dentro da história.

Quando o leitor se vê dentro da história, ele trabalha a sua autopercepção e consequentemente se autoconhece, pois se percebe na representação dos personagens. Um dos princípios da tertúlia é a transformação que enfatiza o diálogo e que a partir dele pode-se ter um olhar diferente sobre diversas situações, o que causa primeiramente transformação individual e, posteriormente, uma transformação mais ampla e coletiva.

A capacidade de ter autocontrole também é uma competência importante, e na tertúlia ela está no simples ato de escutar o outro e deixar a sua fala para depois; se controlar é muitas vezes dar voz a quem necessita ser escutado, e isso é um ato de solidariedade, ainda mais em tempos em que muito se fala e nada se escuta. O ato de escutar deve ser exercido em sala de aula, e com a tertúlia dialógica essa prática se torna alcançável. O autocontrole também se mostra presente na TLD quando os participantes controlam o olhar julgador para a fala do outro, controlando as opiniões e os sentimentos negativos em relação à fala dos demais. De acordo com Martinelli e Sisto (2006 apud Sisto; Rueda, 2009), o autocontrole pode ser definido como uma forma de controlar o próprio comportamento, geralmente em situações conflituosas, de acordo com padrões definidos pela sociedade.

Consciência social e habilidades sociais são competências que podemos desenvolver na tertúlia literária, principalmente porque se relacionam com dois princípios da tertúlia: o diálogo igualitário e a igualdade de diferenças. O primeiro traz o importante princípio de respeito às diferenças, principalmente por aqueles que são sempre silenciados e colocados em último lugar; a tertúlia abre espaço para que aconteçam a equidade e a empatia. Quando se fala de igualdade de diferenças quer dizer que na tertúlia todos são iguais, não importa poder aquisitivo, raça, religião etc.; o que importa é que naquele momento todos devem ser respeitados.

Tomada responsável de decisões é uma das competências com várias ligações com os princípios da tertúlia; no diálogo igualitário todos são expostos a vários pontos de vista, fazendo com que haja reflexão e tomada de decisões mais acertadas. Quando se pratica a solidariedade é mais difícil que se cause dano aos outros ou à sociedade. Na criação de sentido, o indivíduo se vê como parte da sociedade, fazendo com que seja mais responsável, porque agir de forma negativa pode afetá-lo também.

Como se viu, as competências socioemocionais têm relação análoga aos princípios da TLD: o autoconhecimento com a transformação; o autocontrole com a solidariedade; a consciência social e as habilidades sociais com o diálogo igualitário e a igualdade de diferenças; a tomada de decisões com o diálogo igualitário, a solidariedade e a criação de sentido.

Considerações finais

Pode-se perceber que os princípios da tertúlia dialógica e as competências socioemocionais dialogam entre si, o que faz pensar sobre como elas poderiam ser trabalhadas juntas em favor de alcançar o proposto pela BNCC. Se ambas forem incluídas no ambiente escolar, podem promover uma aprendizagem muito mais significativa e humana.

As competências que trazem a Casel estão fortemente ligadas aos princípios da TLD; conclui-se que a TLD e as competências socioemocionais se complementam. Apesar de culturalmente as competências cognitivas terem lugar de maior destaque, aos poucos observa-se que as competências socioemocionais vêm ganhando mais espaço no ambiente escolar, e quando isso acontece professores buscam maneiras de incluir essas competências socioemocionais em suas aulas; acredita-se que a TLD é uma ferramenta que vai auxiliar o professor que optar por ela a alcançar o seu objetivo.

O objetivo não é esvaziar o campo de discussão, senão promover o início de uma reflexão sobre o tema e fomentar o debate de como pode-se incluir as competências socioemocionais nas escolas brasileiras, criando espaços mais democráticos e mais humanos, auxiliando na formação de adultos cada vez mais responsáveis e inteligentes emocionalmente, aptos para trabalhar na transformação da sociedade.

Referências

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COLLABORATIVE FOR ACADEMIC, SOCIAL AND EMOTIONAL LEARNING (CASEL). Social and emotional learning. 2017. Disponível em: https://casel.org. Acesso em: 16 mar. 2021.

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Publicado em 07 de dezembro de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

CONCEIÇÃO, Luana da; NASCIMENTO, Rute Silva do; VIANA, Luiz Augusto Ferreira de Campos. As interfaces entre a Tertúlia Literária Dialógica e as competências socioemocionais. Revista Educação Pública, v. 21, nº 44, 7 de dezembro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/44/as-interfaces-entre-a-tertulia-literaria-dialogica-e-as-competencias-socioemocionais

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