O ensino de Geografia, a formação docente e o papel dos professores de hoje: dilemas e conflitos
Rafael Alves de Freitas
Mestrando em Geografia (PPGGEO/UFRRJ), licenciado em Geografia (UERJ)
Todo mundo acredita que a Geografia não passa de uma disciplina escolar e universitária, cuja função seria fornecer elementos de uma descrição do mundo, numa certa concepção "desinteressada" da cultura dita geral ... Pois, qual pode ser de fato a utilidade dessas sobras heteróclitas das lições que foi necessário aprender no colégio? (Yves Lacoste, 1977, p. 9).
O texto tem por objetivo refletir sobre a formação de professores de Geografia, entendendo a importância dessa ciência/disciplina no campo escolar para a propagação dos conhecimentos geográficos. Assim, este texto traz, ainda que de forma inicial, algumas problemáticas da formação de professores, por meio de indagações que podem parecer simples de serem respondidas, mas que pela sua natureza não são; afinal, falar de educação é falar de pessoas/indivíduos dos mais diversos com suas diversas realidades.
Dessa forma, é urgente nos questionarmos a respeito do real papel do professor de Geografia, principalmente nos dias de hoje. De acordo com Menezes e Kaercher (2015), o professor como agente social e transformador precisa de uma formação que dê conta de um mundo cada vez mais globalizado e problematizado por questões as mais diversas. O professor precisa, dentro dessa lógica, ser um agente além de social, ser um agente que vê na sua prática um encantamento do ser docente. Assim, concordamos com Manoel de Barros (2010, p. 109), ao dizer “que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”.
Assim, espera-se que o professor se coloque na posição de quem reflete sobre sua prática escolar e sobre quais têm sidos os conhecimentos geográficos praticados na escola, ou seja, por que se aprende Geografia, entendendo que não existe um caminho único a ser trilhado pelo professor, já que existem contextos diferentes, inclusive históricos, nesse processo de construção do saber geográfico.
Nesse sentido, o professor deve (ou pelo menos deveria) investir em sua formação continuada, em que se coloca na condição de quem precisa aprender alguma coisa, problematizando sua experiência (seu saber docente) e sua identidade como professor. O texto nos coloca a refletir sobre algumas questões inerentes à formação docente do professor de Geografia, guiando-nos por caminhos possíveis (não os únicos) para a construção de processos formativos sólidos e suas ações educativas.
Formação de professores de Geografia: reflexões de ontem e de hoje
O ensino de Geografia foi por muito tempo baseado na perspectiva (tradicional) de uma disciplina que tinha quase exclusivamente que dar conta dos aspectos físicos da Terra. Memorizar nomes de rios, cidades e países e confeccionar mapas eram os principais pilares da disciplina. Hoje sabemos que, além desses aspectos descritivos, a disciplina tem um leque de opções extremamente grandioso, uma variedade de temas e conteúdos a serem trabalhados. Essa perspectiva tradicional da Geografia é criticada, conforme as palavras de Lacoste (1977, p. 9):
Uma disciplina maçante, mas antes de tudo simplória, pois, como qualquer um sabe, "em Geografia nada há para entender, mas é preciso ter memória..." De qualquer forma, após alguns anos, os alunos não querem mais ouvir falar dessas aulas que enumeram, para cada região ou para cada país, relevo, clima, vegetação, população, agricultura, cidades, indústrias.
Guimarães (2015), em um dos seus artigos, questiona: o que os sujeitos fazem com os conhecimentos geográficos aprendidos na escola? Qual o alcance dos conhecimentos geográficos tratados na escola? Assim, ela fala da autocrítica docente que passa pela reflexão da prática escolar, porque a Geografia não tem como pergunta principal “onde”, mas “como”, “quem”, “por quê”, “para quê” e “para quem o espaço é produzido e usado”.
Hoje, um dos grandes problemas enfrentados pelo professor de Geografia, assim como pela escola como um todo, é a dificuldade de atenção por parte dos alunos e como os professores têm competido com a tecnologia, muitas vezes mais atraente que uma sala de aula (Menezes; Kaercher, 2015). De acordo com Lacoste (1977), o professor precisa romper com a Geografia enciclopédica, mnemônica e sem sentido para o aluno. O professor, e isso é consenso, precisa deixar de ser o agente ativo que transmite o conteúdo e passar a ser um agente motivador, que dê sentido à sua prática e ao objeto de estudo, motivando esse aluno ao aprendizado.
Nóvoa (2008) afirma que o mais importante é refletir sobre a centralidade da aprendizagem do aluno, entendendo assim que não tem como pensar a aprendizagem desassociada da escola e do próprio aluno. Para Guimarães (2015), o professor de Geografia, a fim de desempenhar bem seu papel, precisa de muitas habilidades, envolvimento, domínio de conhecimentos e busca de inovação. É claro que não é só isso, mas já é um caminho possível.
A mesma autora (2015) cita uma pesquisa feita com jovens concluintes do Ensino Médio em 2010 em que esta pergunta foi feita a eles: quem quer ser professor? O resultado mostrou que apenas 2% dos concluintes do Ensino Médio demostraram interesse em licenciatura ou Pedagogia. Desse percentual, a maior parte era de mulheres. Outra informação relevante dessa pesquisa mostrou que quanto menor a escolarização dos pais maior o interesse do jovem por ser professor (Guimarães, 2015).
É importante charmar a atenção para o fato de que essa pesquisa mostra o quão desvalorizado é o professor diante da sociedade – já que para o Estado sempre fomos. Esse pensamento vai ao encontro da escola que temos hoje, principalmente das particulares, que vendem seu “produto” muitas vezes atrelado à ideia de que seguir em carreiras como Medicina, Direito, Engenharias é sinônimo de sucesso. Isso é apenas um exemplo para mostrar que a ideia de ser professor é quase que um caminho marcado pelo insucesso, já que, para se obter sucesso profissional e principalmente retorno financeiro, é mais atraente ser médico, advogado, engenheiro etc.
Podemos dizer que a trajetória docente é marcada por percalços ainda na universidade, uma vez que as disciplinas de Educação e Didática por vezes são vistas com desprezo por parte dos alunos e até mesmo dos professores. Com isso, Guimarães (2015) chama a atenção para três dilemas que afetam a formação de professores, em especial: o baixo interesse do jovem pela profissão docente, a má formação dos professores e a desvalorização social da identidade docente.
Nóvoa (2008, p. 3) traz outras provocações ao dizer que “a formação do professor é, por vezes, excessivamente teórica, outras vezes excessivamente metodológica, mas há um déficit de práticas, de refletir sobre as práticas, de trabalhar sobre as práticas, de saber como fazer”. Essa crítica é para dizer da importância de ultrapassar o dualismo entre a formação teórica e a formação prática, pois juntas são responsáveis pela formação docente. Como diria Freire (2001, p. 158), “separada da prática, a teoria é puro verbalismo inoperante; desvinculada da teoria, a prática é ativismo cego”.
Outro aspecto importante da formação docente, e que não pode ficar em segundo plano, é o trabalho de campo ou estudo do meio, como preferem chamar alguns estudiosos. O trabalho de campo é sempre um momento de nos apropriarmos de um discurso mais amplo e aberto, oportunizando um conhecimento que é menos resposta pronta e acabada e mais possibilidade de romper as quatro paredes da sala de aula.
Pereira e Souza (2007, p. 4) escrevem que o trabalho de campo desempenha na prática educativa quatro funções:
Ilustrativa, cujo objetivo é ilustrar os vários conceitos vistos nas salas de aula; motivadora, onde o objetivo é motivar o aluno a estudar determinado tema; treinadora, que visa a orientar a execução de uma habilidade técnica; e geradora de problemas, que visa orientar o aluno para resolver ou propor um problema.
Assim, independente do nível de ensino, o campo cumpre o objetivo de despertar no aluno a curiosidade dos conceitos e conhecimentos geográficos estudados em sala de aula, embora tal prática se mostre muitas vezes um grande desafio por muitas razões, desde falta de verba para o deslocamento até o campo até falta de tempo dos alunos e professores. Aliás, muitos professores da Educação Básica precisam estar em mais de uma escola e muitas vezes nos três turnos.
Ainda falando sobre alguns dilemas e conflitos, o professor também precisa atentar para a pluralidade do seu alunado, incentivando a convivência pacífica e harmônica entre eles. Espera-se, assim, que a escola seja local de acolhimento, respeito, tolerância e diversidade, que são pilares importantes para a vida em sociedade, sabendo que a escola é uma extensão da sociedade.
Alguns estudiosos do assunto levam a pensar sobre o conjunto de disciplinas do currículo do curso de licenciatura em Geografia, se mostrando favoráveis a uma carga horária que dê conta de assumir disciplinas específicas do curso com as disciplinas pedagógicas, de forma coesa, com interligação/articulação. Acreditamos que, quanto antes o licenciando puder estar em sala de aula (no estágio), mais sólida será sua formação como docente em Geografia (Pimenta; Lima, 2013).
Logo, o docente deve investir nas diversas linguagens (música, filme, literatura, imagens etc.) que podem ser usadas no processo de ensino-aprendizagem; é importante também o professor ter acesso na sua formação às diferentes culturas e aos artefatos culturais. Em outras palavras, é importante que o professor assuma uma postura que dê conta de abarcar um olhar multicultural, reconhecendo que nenhum aluno é igual ao outro, e isso atravessa questões de toda ordem (Guimarães, 2015).
Na atualidade, muitos professores têm investido em metodologias ativas, que é uma forma de colocar o aluno como protagonista do seu conhecimento, em que aluno e professor constroem juntos o aprendizado, de forma interativa e dialógica (Vallerius; Mota; Santos, 2019).
Hoje, quando olhamos para a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), para a Base Nacional Comum para a Formação Docente e os demais documentos/currículos, percebemos a mão de agentes empresariais. Será que de fato eles se preocupam com a educação? Sabemos que não. Dessa forma, o docente precisa questionar-se sobre sua identidade, porque somos construídos pelos discursos do outro, não pelo nosso. O professor como sujeito social é quem tem o poder de dizer quem ele é.
Considerações finais
A educação é o ponto inicial para o crescimento intelectual dos indivíduos, propiciando a eles uma vida com melhores oportunidades. A sociedade está passando por várias transformações que têm exercido fortes influências no campo educacional. Essas transformações têm exigido que a postura do professor seja crítica e questionadora, voltada para as necessidades cotidianas dos indivíduos, sendo um ato libertador e transformador (Freitas; Padilha, 2020). Para tanto, faz-se necessária uma formação inicial em que o licenciando tenha condições de romper o modelo vigente, e a Geografia pode, pelo seu objeto de estudo, favorecer essa empreitada docente. O professor que acredita saber tudo – e que por isso não busca se aprimorar – certamente ficará em algum momento perdido frente às mudanças que se colocam em diversos contextos e que influenciam diretamente a escola.
Se, por um lado, precisamos despertar nos alunos a criticidade, sendo essa uma das premissas da Geografia, devemos também, como professores, buscar atualização e igualmente ser críticos. E ser um bom professor custa anos de aprendizado.
Abrimos este texto com as palavras de Yves Lacoste para chamar a atenção para um problema histórico da Geografia e que perdura de alguma forma até os dias de hoje. Que Geografia tem sido praticada nas salas de aula do Brasil? Aquela que vai de encontro às palavras de Lacoste (1977) – mnemônica, sem sentido – ou uma Geografia libertária, emancipatória e crítica? Nós, como professores, podemos fazer a diferença, ainda que todo o entorno não seja favorável. Sejamos assim a diferença (como licenciandos e professores formados), que o nosso discurso se transforme em prática, em prática que abarque a Geografia no seu sentido mais plural.
Referências
BARROS, M. de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.
FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
FREITAS, R. A; PADILHA, M. N. Geografia e Literatura: um elo possível por meio da obra “O Quinze”, de Raquel de Queiroz. Revista Geofronter, Campo Grande, v. 6, p. 1-18, out. 2021. Disponível em: https://periodicosonline.uems.br/ index.php/GEOF/article/view/4873/pdf. Acesso em: 1 abr. 2021.
GUIMARÃES, I. V. Questões sobre a formação de professores de Geografia. In: RIBEIRO, Kamila Santos de Paula; BUENO, Mirian Aparecida (Orgs.). Currículo, políticas públicas e ensino de Geografia. Goiânia: Ed. PUC, 2015. p. 35-59.
LACOSTE, Yves. A Geografia serve antes de mais nada para fazer a guerra. São Paulo: Papirus, 1977.
MENEZES, V. S.; KAERCHER, N. A. A formação docente em Geografia: por uma mudanca de paradigma cientifico. Giramundo, Rio de Janeiro, v. 2, nº 4, p. 47-59, jul./dez. 2015.
NÓVOA, A. Nada substitui o bom professor. São Paulo: Sinpro-SP, 2008. Disponível em: http://www.sinpro.org.br/ noticias.asp?id_noticia=639. Acesso em: 31 mar. 2021.
PEREIRA, R. M.; SOUZA, J. C. de. Uma reflexão acerca da importância do trabalho de campo e sua aplicabilidade no ensino de Geografia. Revista Mirante, Goiânia, v. 1, nº 1, p. 1-15, set. 2007. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/ weby/up/215 /o/uma_reflexao_acerca_ da_importancia_do_trabalho _de_campo.pdf. Acesso em: 5 abr. 2021.
PIMENTA, S. G.; LIMA, M. S. L. Estágio e docência. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2013.
VALLERIUS, D. M.; MOTA, H. G.; SANTOS, L. A. (Orgs.). O estágio supervisionado e o professor de Geografia: multiplos olhares. Jundiaí: Paco, 2019.
Publicado em 21 de dezembro de 2021
Como citar este artigo (ABNT)
FREITAS, Rafael Alves. O ensino de Geografia, a formação docente e o papel dos professores de hoje: dilemas e conflitos. Revista Educação Pública, v. 21, nº 46, 21 de dezembro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/46/o-ensino-de-geografia-a-formacao-docente-e-o-papel-dos-professores-de-hoje-dilemas-e-conflitos
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