Educação Física e as concepções pedagógicas crítico-emancipatória e crítico-superadora
Regina Márcia Ferreira Silva
Pós-Graduanda em Educação Profissional Tecnológica (ProfEPT/IF Goiano)
Fernando Barbosa Matos
Docente universitário (ProfEPT/IF Goiano)
Matias Noll
Docente universitário (ProfEPT/IF Goiano)
A ciência se desenvolveu ao longo dos anos tendo como objetivo atender aos anseios das classes dominantes. Conteúdos e contextos que não estejam dentro do bojo de interesse da classe hegemônica costumeiramente são deixados de lado. Os conflitos educacionais em busca de uma formação integral são um exemplo; aqui trataremos especificamente do quanto é difícil à consolidação da Educação Física como área de conhecimento e componente curricular para uma formação humana integral.
A Base Nacional Comum Curricular é um documento normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais da Educação Básica brasileira. Sua aplicação se refere exclusivamente à educação escolar, conforme definido pelo §1º do Art. 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/96). É orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, conforme previsto nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica.
No que se refere ao Ensino Médio na área de Educação Física, o foco se volta à reflexão das práticas corporais, de um estilo de vida ativo, da manutenção da saúde, da utilização dos espaços públicos e privados para as práticas corporais, objetivando o pleno exercício da cidadania e do protagonismo comunitário. Consciente da existência histórica da separação entre educação para o trabalho manual e para o trabalho intelectual, o Ensino Médio Integrado pertencente à Educação Profissional Técnica de Nível Médio surge como proposta de integração dos conhecimentos que outrora foram separados. Segundo Kuenzer (2002), possibilita assim aos jovens que vivam do trabalho uma nova síntese entre o geral e o particular, entre o lógico e o histórico, entre a teoria e a prática, entre o conhecimento, o trabalho e a cultura.
De acordo com Ciavatta (2008), a ideia de formação integrada sugere o ser humano dividido historicamente pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar. Trata-se de superar a redução da preparação para o trabalho ao seu aspecto operacional, simplificado, escoimado dos conhecimentos que estão na sua gênese científico-tecnológica e na sua apropriação histórico-social. Como formação humana, o que se busca é garantir ao adolescente, ao jovem e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para leitura do mundo e para atuação como pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política, formação que, nesse sentido, supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos.
Seguindo pela mesma linha de pensamento, Ramos (2014), no que se refere ao Ensino Médio Integrado, compreende como uma formação que contempla três sentidos: o sentido da omnilateralidade, que considera a formação “com base na integração de todas as dimensões da vida no processo formativo”; o sentido da integração, que considera a indissociabilidade entre Educação Profissional e Educação Básica; e, por fim, “a integração entre conhecimentos gerais e conhecimentos específicos, como totalidade”. Vários filósofos e teóricos desenvolveram contribuições considerando a complexidade humana, porém nenhum teórico finalizou sua teoria, mas conseguiu chegar a várias concepções diferentes dentro das teorias cognitivas (Camillo; Medeiros, 2018), pretendendo auxiliar assim no processo de ensino-aprendizagem. O objetivo deste estudo é apresentar uma sugestão de concepção pedagógica que atenda à demanda dos conteúdos da Educação Física prevista para o Ensino Médio brasileiro e para uma formação humana integral.
Breve histórico sobre as teorias de aprendizagem no Brasil
Segundo Camillo e Medeiros (2018), podemos dividir a história recente da educação brasileira em três grandes períodos: de 1969 a 1980, com influências da Pedagogia Tecnicista, Concepções Analíticas e Visão Crítico-Reprodutivista; de 1980 a 1991, das Pedagogias Críticas; e de 1991 a 2001 com a predominância do neoprodutivismo e suas variantes neoescolanovismo, neoconstrutivismo e neotecnicismo. No primeiro período, há forte predominância da pedagogia tecnicista que tinha inspiração no behaviorismo, exercendo o papel de uma engrenagem no sistema capitalista, tendo como objetivo a formação de sujeitos para o mercado de trabalho (especialmente com características objetivas e operacionais). Da mesma forma que ocorreu dentro das fábricas nesse período, a intenção era a objetivação do trabalho pedagógico, tornando-o racional; em primeiro plano ficava a organização racional e em segundo os professores e alunos, também marcado pela falta de reflexão e criticidade. Com a implantação da pós-graduação no Brasil nesse período, surgem as primeiras reflexões sobre as contradições da sociedade brasileira. Posteriormente, a visão crítico reprodutivista denunciava a escola como instituição de reprodução das diferenças sociais e como aparelho ideológico do Estado.
O segundo período é marcado pelas pedagogias contra-hegemônicas ou pedagogias de esquerda, pedagogia da educação popular, pedagogia prática e crítico social. No terceiro período, temos o neoprodutivismo, também conhecido como a pedagogia da exclusão, que colocava a educação escolar como instrumento de redução do desemprego e o neoescolanovismo, que utilizava-se do aprender a aprender, com foco na assimilação de determinados conhecimentos, o neotecnicismo, que valoriza os mecanismos do mercado e redução do Estado tratando a escola como empresa, e por fim o neoconstrutivismo, que tem no educador um ser reflexivo e que foca nas experiências do dia a dia.
Pedagogia histórico-crítica e concepções pedagógicas crítico-emancipatória e crítico-superadora na Educação Física brasileira
A Pedagogia Histórico-Crítica foi cunhada por Dermeval Saviani em 1978; tem como objetivo a transmissão de conteúdos científicos por parte da escola, porém sem ser conteudista (Saviani, 2007); isso quer dizer que se preocupa com o desenvolvimento intelectual, cultural e de raciocínio do aluno, preza pelo acesso aos conhecimentos e sua compreensão por parte do estudante, a fim de possibilitar que ele transforme a sociedade. Compreende as pedagogias contra-hegemônicas, inspiradas no marxismo, preocupadas com os problemas educacionais decorrentes da exploração do homem pelo homem. Na Pedagogia Histórico-Crítica tem que se garantir que os alunos compreendam e participem da sociedade de forma crítica, superando a visão de senso comum.
De acordo com Camara (2018), as tendências crítico-emancipatória e crítico-superadora são consideradas as linhas de trabalho mais eminentes das pedagogias críticas da Educação Física no Brasil. A linha crítico-emancipatória na Educação Física tem como principal idealizador o estudioso brasileiro Elenor Kunz (1991); está pautada nas obras de Paulo Freire, Maurice Merleau-Ponty e Jürgen Habermas. Enfatizar o diálogo e a participação ativa dos alunos é a ideia prevalente na Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas (1987) e na Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire (2002), que coloca a análise crítica como centro da prática pedagógica. Para Merleau-Ponty (1999), o corpo humano não é um simples mecanismo desconectado das funções mentais, mas sim uma unidade conectada ao mundo em que vive; além disso, ele representa nossas percepções da realidade.
Para colocar em prática a concepção crítico-emancipatória, Kunz (1991) sintetiza as seguintes competências: objetiva, social e comunicativa. Na competência objetiva, a meta do ensino da técnica deve servir para o desenvolvimento da autonomia. Já a competência social refere-se aos conteúdos que devem ser ofertados de maneira a possibilitar uma reflexão sobre o contexto social e cultural; por fim, a competência comunicativa deve estimular o desenvolvimento da linguagem (verbal, escrita e corporal) como via de acesso ao pensamento crítico.
Uma corrente contra-hegemônica foi fortalecida após a década de 1980, que decorreu do chamado “Movimento Renovador da Educação Física”, do qual se destaca a obra Metodologia do Ensino de Educação Física (1992), em que a concepção crítico-superadora foi debatida, pautada num referencial materialista histórico-dialético com inspiração na defesa da classe trabalhadora (Castenalli, 1992); a crítica à educação na sociedade capitalista e a visão de classes sociais de origem marxista são suas principais características e busca a defesa dos interesses das classes populares, estimula o conhecimento e a crítica da realidade com intenção de promover a justiça social. A metodologia de ensino crítico-superadora apresenta os seguintes princípios: a relevância social e a adequação do conteúdo, a simultaneidade e incorporação do conteúdo e a constante ressignificação do conhecimento.
As considerações de Saviani (2013) são relevantes, pois reforçam os princípios da concepção crítico-superadora; para ele, o ensino é uma forma de trabalho educativo não material cujo produto não se separa do ato de produção. No ato de ensinar é preciso identificar os elementos culturais que precisam ser apropriados pelos indivíduos para que se tornem humanos e quais as formas mais adequadas para que esse objetivo seja atingido.
Alves (2018) investigou e analisou os limites e possibilidades para a implementação de uma proposta pedagógica histórico-crítica na organização do trabalho pedagógico em uma escola estadual no Estado de Goiás. Com base em seus resultados, foi possível afirmar que a organização do trabalho pedagógico da Educação Física na escola pesquisada ainda reflete os desígnios da escola capitalista (Camara, 2018). No entanto, por meio da intervenção realizada, constatou-se que é possível promover rupturas a partir de um trabalho pedagógico pautado na pedagogia histórico-crítica.
Metodologia
A revisão de literatura proposta foi realizada mediante uma busca no Portal de Periódicos da Capes. Para tanto, foram utilizados os termos: “emancipatória” e “superadora”. O idioma definido foi o português, não foi aplicado filtro de período, com o intuito de abranger todos os documentos disponíveis na base, independente do ano. A busca retornou seis documentos, sendo um deles no formato livro e cinco artigos revisados por pares.
Discussões
O livro Martins; Duarte (2010) não tratou de questões específicas do contexto da Educação Física. O trabalho de Nogueira (2008) trouxe as características importantes das concepções pedagógicas crítico-emancipatória e crítico-superadora; promove uma reflexão particular da experiência educativa, permitindo a criação de práticas pedagógicas em que os alunos estabeleçam relações com suas próprias consciências.
No estudo de Araujo, Silva Souza e Ribas (2014) foram utilizados os princípios da concepção crítico-superadora para o ensino de voleibol. Portanto, a metodologia usada observou seus princípios, que são: a relevância social dos conteúdos, seus significados para a explicação da realidade do aluno, a contemporaneidade dos conteúdos de modo a se relacionar com o contexto social moderno e por fim a adequação às possibilidades sócias cognitivas e às possibilidades desse sujeito histórico.
No trabalho de Batista et al. (2014), é apontado que uma contribuição efetiva da Educação Física no Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) só poderá ocorrer se as ações pedagógicas realizem e socializem experiências pedagógicas contextualizadas com a função social do IFRN, na busca incansável da formação integrada. A importância do trabalho com as abordagens de ensino crítico-emancipatória e crítico-superadora na formação continuada para a qualificação do trabalho pedagógico do professor de Educação Física foi evidenciado no trabalho de Franchi et al. (2015).
Estudo recente de Medeiros (2019) revisou a literatura do Catálogo de Dissertações e Teses e o Portal de Periódicos da Capes e teve como objetivo compreender como a temática Educação Física nos currículos dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia vem sendo tratada na produção acadêmica científica. Apresentou como resultado uma baixa produção sobre a temática, um grande esforço da área para se consolidar como proposta pedagógica e o interesse em ressignificar o modo como os conteúdos são desenvolvidos, estabelecendo sentido ao que se aprende e como se aprende.
Quadro 1: Estudos identificados com os termos “emancipatória” e “superadora”
Ano |
Título |
Tipo de Documento |
Objetivo |
2010 |
Formação de professores: limites contemporâneos e alternativas necessárias |
Livro |
Contribuir para a formação de professores e debater as teorias pedagógicas |
2008 |
A reflexão como experiência pedagógica: um debate sobre as perspectivas críticas da Educação Física |
Artigo |
Analisar como a reflexão promove um tipo particular de experiência educativa |
2014 |
Praxiologia motriz e a abordagem crítico-superadora: aproximações preliminares |
Artigo |
Propor uma aproximação dentro do campo teórico-metodológico entre a abordagem crítico-superadora e os elementos conceituais da Praxiologia Motriz no sentido de apresentar as primeiras orientações para a prática pedagógica do professor de Educação Física |
2014 |
Artigo |
Discutir a relevância sociocultural do IFRN, assim como a função social da Educação Física como componente curricular no processo de formação do Ensino Médio Integrado |
|
2015 |
Artigo |
Analisar o entendimento dos professores sobre as abordagens de ensino da Educação Física na formação continuada da rede municipal de Santa Maria/RS |
|
2019 |
Artigo |
Compreender como a temática Educação Física nos currículos dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia vem sendo tratada na produção acadêmica científica |
Considerações finais
As orientações das concepções pedagógicas crítico-emancipadora e crítico-superadora são adequadas ao contexto da Educação Física no Ensino Médio, em especial quando nos referimos a uma formação integral, visto que elas possibilitam o desenvolvimento da criticidade e a busca pela justiça social; elas concorrem para uma formação integral, que é a semente que pode gerar frutos no sentido de extinguir a subserviência da Educação Física aos interesses dominantes.
Referências
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BATISTA, A. P. Possibilidades e desafios da Educação Física como componente curricular no processo de expansão regional do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte - IFRN. Holos, v. 4, nº 2014, p. 492, 2014.
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Publicado em 09 de fevereiro de 2021
Como citar este artigo (ABNT)
SILVA, Regina Márcia Ferreira; MATOS, Fernando Barbosa; NOL, Matias. Educação Física e as concepções pedagógicas crítico-emancipatória e crítico-superadora. Revista Educação Pública, v. 21, nº 5, 9 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/5/educacao-fisica-e-as-concepcoes-pedagogicas-critico-emancipatoria-e-critico-superadora
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