Fracasso escolar e desigualdade social: uma perspectiva crítica e emancipatória
Thalles Azevedo Ladeira
Mestre em Ensino (UFF), professor da rede municipal de Rio das Ostras
Pretendemos, neste trabalho, trazer uma perspectiva crítica acerca das desigualdades sociais que atravessam os espaços escolares, resultando no fracasso escolar dos alunos das camadas populares. Neste sentido, cabe introduzirmos a discussão com Marx e Engels (1999), em O manifesto comunista, ao apontarem que as desigualdades sociais são produtos de uma desigualdade de classes, que por sua vez é uma caracteristica predominante do sistema capitalista.
Tal desigualdade gera uma sociedade dividida, onde uma minoria possui além do que necessita para sobreviver, enquanto a grande maioria da população é inserida em uma realidade de pobreza e até mesmo necessidades extremas. Desigualdade essa que é a causadora da falta de oportunidades para muitos em detrimento de uma minoria detentora de inúmeros privilégios.
O reflexo dessa desigualdade, ao ser refletido na esfera da Educação, promove o que é relatado pelo PNE - Notas críticas (2014), onde apenas 0,6% das escolas brasileiras possuem infraestrutura próxima ao padrão mínimo para escolarização, ou seja, biblioteca, laboratório de informática, quadra esportiva, laboratório de ciências, além de dependências adequadas para atender estudantes com necessidades especiais e básicas. Cabendo destacar também que somente 44% das instituições de Educação básica possuem água encanada, sanitário, energia elétrica, esgoto e cozinha, em sua infraestrutura (Colemarx, 2014).
Tal realidade apresentada acaba se tornando um mecanismo de dominação do ponto de vista da elite dominante na medida em que, historicamente, o acesso e a apropriação dos conhecimentos sistematizados nas escolas não foram pensados para estarem disponíveis à classe popular.
Isso nos leva a pensar que a partir da inserção dos mais pobres nas escolas, as mesmas passaram a se constituir como mais uma forma de materialização da divisão social, pois sendo ela o espaço por excelência do acesso ao saber crítico, a apropriação de conhecimento por parte do proletariado tornar-se-ia um risco à burguesia. É por isso que tal classe dominante procura manter esses conhecimentos distantes dos menos favorecidos socialmente, a fim de evitar o fim da alienação que certamente iria configurar-se como o início de mudanças sociais profundas. (Kuenzer, 2005).
Ainda de acordo com Kuenzer (2005), há uma estratégia de inclusão nas escolas da classe proletária, por parte do governo; todavia, essa inclusão possui como interesse majoritário preparar uma camada de trabalhadores capazes de melhor responder às demandas do mercado de trabalho.
É visto, portanto, que um forte mecanismo de dominação social é manter a desqualificação escolar para a classe trabalhadora, devendo ser levado em conta que, se nas escolas das classes populares há qualidade no ensino, essa qualificação é dada em doses homeopáticas, conforme é apontado por Marx (1996) ao se referir ao pensamento do economista e filósofo britânico Adam Smith (1996), “A fim de evitar a degeneração completa da massa do povo, Smith recomenda o ensino popular pelo Estado, embora em doses prudentemente homeopáticas” (Marx, 1996, p. 476).
Partindo desse contexto até então analisado, é possível justificar, portanto, o fracasso escolar como uma produção capitalista, cujo objetivo é produzir na escolarização dos mais pobres uma formação precária, acompanhada de um mínimo de criticidade, a partir de uma falta de investimentos, promovendo um escamoteamento de um ensino de qualidade, que é um direito inalienável desses alunos, a fim de preservar os interesses de dominação e de manutenção do próprio capitalismo.
Uma perspectiva crítica sobre as desigualdades de classes na sociedade atual
Primeiramente, é necessário pôr em evidência que a desigualdade social e, consequentemente, toda a pobreza advinda dela, seja material ou intelectual, é resultado da divisão de classes, conforme já foi destacado na introdução deste trabalho.
No entanto, há uma naturalização das desigualdades intrínsecas a uma despolitização das questões sociais, resultado de uma total negação à classe popular de um saber crítico e das riquezas culturais produzidas pela humanidade e que foram apropriadas e monopolizadas pelas classes domintes em diferentes tempos históricos como forma de manutenção da governabilidade.
Quando colocamos em evidência os interesses da classe dominante de manutenção do poder, deve ficar claro para nós que jamais poderá haver por parte dos governantes qualquer ação que caminhe no sentido de uma igualdade social dentro do sistema capitalista. Tudo o que podemos esperar, portanto, são ações assistencialistas, por parte da elite dominante, “cujo objetivo não é elevar a condição de vida, mas minorar a desgraça e ajudar, fornecendo o mínimo para que possam sobreviver na miséria” (Andrade, 2014, p. 177).
Filho e Guzzo (2009, p. 37) enriquecem essa discussão ao apontarem que, para o capitalismo, o mecanismo ideológico utilizado para ocultar a natureza predatória desse sistema social é responsabilizar o próprio indivíduo pelo seu “fracasso” ou “sucesso” na sociedade. Eles ainda afirmam que a ideologia propagada pelo capitalismo é de que o sucesso social de cada indivíduo só pode ser conquistado a partir do esforço individual.
É nesse sentido que os pobres, ou seja, todos aqueles que de acordo com as regras dessa sociedade são desprovidos da acumulação de riquezas, são consequentemente vistos como perdedores, como seres desvalorizados socialmente. E essa culpabilização do próprio indivíduo pela vida desigual e extremamente precária que lhe é posta pauta-se no discurso da competência, isto é, na ideia de que aqueles que não obtiveram um padrão de vida financeiramente melhor são pessoas que, de acordo com a ideologia do capital, não tiveram competência para isso.
Essa culpabilização à classe proletária pelas desigualdades em que são subsumidas serve para tentar justificar as desigualdades sociais e ocultar a lógica predatória do próprio capitalismo que sobrevive a partir dessas desigualdades e da acumulação de riquezas por uma minoria dominante.
Um exemplo claro dessa reprodução da desigualdade em nível nacional pode ser evidenciado, quando levamos em conta, de acordo com um estudo divulgado pela Oxfam, em 2018, ao evidenciar que cinco bilionários brasileiros concentram a mesma riqueza que metade da população mais pobre. Isso apenas revela o que já vem sendo apontado pelas Organizações das Nações Unidas, ao apontar o Brasil como um dos cinco países mais desiguais do mundo.
Esse acúmulo infrene de riquezas por uma elite minoritária é o resultado dessa desigualdade a qual estamos aqui salientando, compreendendo que a negação da oportunidade de acesso a uma Educação crítica, de qualidade e emancipadora, é a estratégia utilizada pela classe dominante para se manter no poder gozando de todos os privilégios que os circundam.
Tal negação do senso crítico à classe trabalhadora é uma tentativa de impugná-la da própria percepção de luta de classes na qual a humanidade está inserida, conforme afirmado por Marx (1999), ao anunciar que “a história de todas as sociedades até nossos dias tem sido a história das lutas de classes” (Marx; Engels, 1999 p. 7).
Todo esse panorama de desigualdade que esboçamos até aqui se materializa em dados objetivos ao apontarmos, por exemplo, uma pesquisa feita por Louzano (2013), ao utilizar-se do Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD (2013), para evidenciar que a renda dos 20% mais ricos do país é 21 vezes maior que a dos 20% mais pobres.
Esse panorama desenvolvido até aqui cumpre o objetivo de inserir o leitor nesse contexto de desigualdades sociais presentes na sociedade capitalista, para a partir de agora dar continuidade, destacando os desdobramentos dessas desigualdades na Educação, a fim de entendermos o fenômeno do fracasso escolar na sua totalidade.
Os reflexos das desigualdades sociais na Educação
Sabe-se que historicamente a escola não foi pensada para estar disponível às camadas populares, mas sim para servir como mais um aparelho ideológico do Estado. (Althusser, 1985). Logo, o alargamento do acesso à escola, bem como o prolongamento da escolaridade, devem ser vistos como o resultado de uma série de pressões da classe trabalhadora pelo direito de ter um acesso digno a ela. Arroyo (1980) chegou a afirmar que
o mais grave na relação entre escola e a formação da classe trabalhadora no Brasil é que se fez tudo para que o trabalhador não fosse educado, não dominasse a língua, não conhecesse sua história, não tivesse ao seu alcance instrumentos para elaborar e explicitar o seu saber, sua ciência e sua consciência (Arroyo, 1980, p. 162).
Em consonância com o pressuposto destacado, soma-se a contribuição de Ciavatta, Ramos e Frigotto (2008) ao afirmarem que primeiramente a gênese histórica da escola se deu ao longo do século XVIII, configurando-se como um importante papel de consolidação da hegemonia burguesa em relação à sociedade feudal e ao poder da Igreja e do Estado absolutista instalados naquele contexto.
Cabe evidenciar que desde o período em destaque, foi possível observar um caráter dual no qual as escolas passaram a ser formadas, onde de um lado via-se uma escola clássica, formativa, de ampla base científica e cultural para a elite, e outra de perfil instrumental e de preparação profissional para os trabalhadores, cujo objetivo era adestrá-los e capacitá-los para melhor serem utilizados no projeto de desenvolvimento pensado pelas classes dirigentes (Ciavatta; Ramos; Frigotto, 2008).
Logo, é possível perceber que historicamente foi oferecida às camadas populares uma Educação voltada para o trabalho material cujo compromisso passava longe de disponibilizar a elas toda a gama de conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade. Isso era justificado através de afirmações ideologizantes como a do conde francês Desttut de Tracy, que, no final do século XVIII e primeira metade do XIX, declarava:
Os homens da classe operária têm desde cedo à necessidade do trabalho de seus filhos. Essas crianças precisam adquirir desde cedo o conhecimento e sobretudo o hábito e a tradição do trabalho penoso a que se destinam. Não podem, portanto, perder tempo nas escolas (...). Os filhos da classe erudita, ao contrário, podem dedicar-se a estudar durante muito tempo, têm muitas coisas para aprender para alcançar o que se espera deles no futuro. (...). Esses são fatos que não dependem de qualquer vontade humana; decorrem necessariamente da própria natureza dos homens e da sociedade: ninguém está em condições de mudá-los. Portanto, trata-se de dados invariáveis dos quais devemos partir (Tracy, 1908 apud Frigotto, 2001, p. 34).
A fim de enriquecer essa discussão, iremos, a partir de agora, evidenciar como algumas tendências pedagógicas neoliberais, presentes na Educação hoje, se articulam a favor da hegemonia, a fim de comprometerem a apropriação dos saberes críticos que deveriam ser disponibilizados a todos os alunos, mas que, por sua vez, são substituídos por saberes voltados à lógica do mercado de trabalho e a salvaguardar os interesses da elite dominante, de forma geral.
Tendências pedagógicas neoliberais na Educação: entendendo como se articulam os interesses da classe dominante nas escolas
É necessário, a partir desse momento, destacar que os interesses da elite dominante penetram nas escolas populares a partir de certas tendências pedagógicas neoliberais, cujo objetivo é fazer com que prevaleçam em tais ambientes escolares, ideias hegemônicas. É importante ter em vista que dentro do sistema capitalista todos os conteúdos, métodos e formas de organização e gestão escolar, ou seja, toda a finalidade do trabalho pedagógico articula-se ao processo de trabalho capitalista, a fim de proporcionar um disciplinamento para o mercado produtivo, em perfeita conformidade com as especificidades que os processos de produção vão assumindo (Kuenzer, 2005).
A fim de ficar ainda mais claro como se articulam os interesses da classe dominante nos espaços escolares, iremos destacar brevemente três tentências pedagógicas neoliberais muito presente no Brasil e que cumprem o objetivo de alimentar na Educação a ideologia dominante, interferindo no trabalho pedagógico do professor e no processo de formação dos alunos. Segundo Duarte (2010): “Elas podem ser consideradas pedagogias negativas, na medida em que aquilo que melhor as define é sua negação das formas clássicas de Educação escolar” (Duarte, 2010, p. 33).
A primeira a ser destacada é o tecnicismo, cuja perspectiva é a de valorização dos princípios mercadológicos de produtividade, introduzindo na escola a lógica do mercado, valorizando a racionalidade técnica em detrimento do conhecimento cinetífico (Neto, 2006).
Outra tendência pedagógica neoliberal muito presente na Educação pública brasileira é o construtivismo, que justifica, por exemplo, ideias como a redução da participação do professor no processo de ensino-aprendizagem do aluno, a partir do pressuposto de que caberia ao aluno à construção de seu próprio conhecimento.
Fica claro nessa tendência pedagógica que, em busca de uma maior autonomia dos alunos, o exercício de ensinar os conhecimentos sistematizados que cabe ao professor fica secundarizado, passando a assumir de acordo com essa teoria, um papel que se encaixa mais como um colaborador e menos como de fato um educador.
De acordo com Duarte (2010), em relação à perspectiva do construtivismo,
não importa o que o aluno venha a saber por meio da educação escolar, mas sim o processo ativo de reinvenção do conhecimento. Aprender o conteúdo não é um fim, mas apenas um meio para a aquisição ativa e espontânea de um método de construção de conhecimentos (Duarte, 2010, p. 40).
Uma terceira tendência pedagógica neoliberal que também é importante ser destacada é a pedagogia dos projetos, que cultiva a ideia de que as atividades escolares não deveriam ser pedagogicamente organizadas em torno de um currículo previamente estabelecido, mas sim em torno de projetos, surgidos de forma expontânea a partir das discussões entre alunos e alunos e/ou alunos e professores. Em relação a ela, cabe destacar o nome de John Dewey, pois suas ideias foram a base filosófica do método de projetos (Duarte, 2010).
Outra ideia trazida por essa tendência pedagógica é o desenvolvimento da atitude investigativa e do pensamento científico autônomo que, por sua vez, cria relações pedagógicas em sala de aula movidas pelo espontaneísmo e que beiram o senso comum.
Outras tendências pedagógicas neoliberias podriam ser aqui citadas, mas vamos nos ater apenas a essas três, a fim de respeitar os limites desse trabalho. O que deve ficar claro nessas tendências pedagógicas é, primeiramente, a ausência, em todas elas, da perspectiva de superação da sociedade capitalista, embora existam momentos de crítica a determinados aspectos da sociedade capitalista.
Em relação a esse assunto, Duarte (2010) afirma que
a ideia de tais críticas acaba sendo neutralizada pela crença na possibilidade de resolução dos problemas sociais sem a superação radical da atual forma de organização da sociedade, a qual tem como centro dinâmico a lógica de reprodução do capital (Duarte, 2010, p. 34-35).
Compreende-se que todas as tendências pedagógicas citadas pautam a escolha de seus conteúdos no critério da utilidade prática que esses conteúdos deverão assumir no cotidiano dos alunos. E é importante deixar claro que essa valorização dos conteúdos a partir da utilidade prática dos mesmos caminha no mesmo sentido da desvalorização e negação dos conhecimentos clássicos (teóricos), que deveriam estar disponíveis à classe trabalhadora nas escolas como um direito inalienável (Duarte, 2010).
A inclusão excludente e a exclusão includente: alguns desdobramentos
Essa reprodução dos ideais dominantes na Educação reforça os interesses dos mais ricos em sobrepor os seus direitos em detrimento da exploração dos mais pobres economicamente e serve para acentuar o que Kuenzer (2005) denomina o fenômeno da inclusão excludente, que é aquele em que as estratégias de inclusão das classes populares às modalidades de ensino não correspondem aos padrões de qualidade que permitam a formação de identidades autônomas intelectual e eticamente.
Tal fato ocorre na medida em que determinados alunos não se adéquam ao tipo de estrutura escolar capitalista que está posta, sendo consequentemente excluídos dos processos de aprendizagem, reforçando, portanto a ideia exposta aqui de como a escola se constituiu como mais uma forma de materialização da divisão social, gerando em diversos alunos com baixo rendimento escolar a noção de que o espaço educacional no qual estão inseridos não pertence a eles, ocasionando o que observamos, como fenômeno imediato, o fracasso e a evasão escolar.
Logo, é possível observar, de forma geral, como o nosso sistema de ensino inclui para excluir, e, ao passo desse fenômeno da inclusão excludente, esses alunos serão excluídos dos mercados de trabalho formais e consequentemente incluídos em trabalhados informais, onde o nível de exploração será muito maior e a precarização mais intensa, sem ao menos se darem conta da exclusão includente a que foram subsumidos, internalizando a responsabilização individual pela sua condição, que passa a constituir sua forma de ser (Kuenzer, 2005).
Isso nos remete a Frigotto (2001), ao afirmar que a escola, de acordo com os padrões do capitalismo monopolista vigente, é aquela que permite um nível mínimo de cálculo, leitura e escrita, ou seja, o mínimo de senso crítico, pois seu objetivo não é formar indivíduos autônomos criticamente, e sim indivíduos capazes de viabilizarem a manutenção e o desenvolvimento das produções capitalistas.
Portanto, de acordo com ele, a ampliação do acesso à escola, bem como o prolongamento da escolaridade, representam maneiras de responder às necessidades do capital, pois, como já afirmamos, a escola produz uma massa de trabalhadores que servem de mão de obra qualificada para um trabalho extremamente explorado, sem ao menos oferecer a eles alguma consciência dos processos de proletarização de seu trabalho (Frigotto, 2001).
Partindo dessa compreensão, é necessário evidenciar também que o problema está cada vez menos na falta de vagas na escola, e fundamentalmente na desqualificação do processo educativo, resultando em uma “escola improdutiva”, que nega o acesso aos níveis mais elevados de saber às camadas populares, além de ser amplamente excludente (Frigotto, 2001).
Isso significa dizer que, embora o governo reconheça a importância fundamental da Educação para gerar crescimento econômico para o país, não há, de sua parte, nenhum compromisso que esteja vinculado com uma Educação de qualidade e crítica para as classes pobres na sociedade. Diante dessa afirmativa, é possível se perguntar “qual seria o interesse da classe burguesa em oferecer um ensino e uma Educação nivelados pela qualidade, para a classe trabalhadora?” (Frigotto, 2001, p. 165), haja vista que uma apropriação crítica da conjuntura social por parte da maioria da população seria encarada com um nível muito mais intenso de lutas e a favor da igualdade social.
É por essa razão que se pode compreender a falta profunda de investimentos nas escolas da periferia, desde seus aspectos físicos e materiais até as precárias condições de trabalho do corpo docente. Em relação a isso, Frigotto (2001) afirma:
O que fica patente, não só a nível de Brasil, mas de América Latina, é que os filhos da grande massa de trabalhadores proletarizados frequentam as escolas nas piores condições físicas e materiais, sem recursos didáticos, pedagógicos; permanecem na escola por menos tempo à medida que frequentam estabelecimentos com três ou até quatro turnos diurnos; e têm um professorado, não apenas atuando em condições precárias, mas sobretudo formado em instituições de ensino superior privadas cujo objetivo básico, salvo raras exceções, não é o ensino de qualidade, mas o comércio do ensino. (Frigotto, 2001, p. 168).
Diante do que foi destacado, pode-se perceber que essa desigualdade social refletida nas escolas é o maior motivo de sustentação da alienação dos alunos que frequentam essas escolas, que, por sua vez, não percebem que estão sendo negados de seus direitos de se apropriarem o máximo possível de uma Educação “robusta” que possibilite a eles uma emancipação capaz de fomentar uma sociedade mais equânime.
Isso nos remete a Saviani (2009), ao afirmar que um agravante presente nas escolas públicas é a imensa dificuldade de apropriação por parte da classe trabalhadora, dos conteúdos disponibilizados pelos educadores. Ao tratar desse assunto, o autor não está se referindo a qualquer conteúdo, mas sim a conhecimentos que possibilitem aos indivíduos a mobilização para uma transformação social. Em relação a isso, ele destaca que “os conteúdos são fundamentais, e sem conteúdos relevantes, conteúdos significativos, a aprendizagem deixa de existir, ela transforma-se num arremedo, ela transforma-se numa farsa” (Saviani, 2009, p. 50). Para além disso, ele também ressalta que
se os membros das camadas populares não dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e consolidar a sua dominação. Eu costumo, ás vezes, enunciar isso da seguinte forma: o dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar aquilo que os dominantes dominam é condição de libertação (Saviani, 2009, p. 50-51).
Diante disso, o autor compreende que essa dificuldade de assimilação dos conteúdos é, em muitos casos, reforçada pela própria figura dos docentes que, a partir de suas precárias condições de trabalho e da série de exigências e cobranças a que estão submetidos, fazem com que dediquem mais atenção àqueles que possuem maior facilidade, enquanto os que possuem uma dificuldade maior de assimilação acabam sendo deixados à margem desse processo de aquisição de conhecimentos em sala de aula (Saviani, 2009).
Tal realidade apresentada desencadeia o falacioso discurso da meritocracia, que, por sua vez, considera que a todos os alunos são dadas as mesmas condições de garantir uma trajetória escolar de sucesso e, se assim não fazem, é por puro demérito pessoal, deixando de considerar o acesso às oportunidades que, dentro do sistema capitalista, não são oferecidas de forma igualitária para todos os homens.
Com o propósito de elucidar melhor essa ideia, cabe citar Vieira (2003) ao afirmar que
a meritocracia surge como um sistema social, político e econômico em que os privilégios são obtidos pelo mérito e o poder é exercido pelos mais qualificados, mais competentes, mais talentosos. O principal argumento em favor desse modelo é o de que governos e organismos meritocráticos proporcionam maior justiça que os demais sistemas hierárquicos, pois as distinções não provêm de fatores biológicos, culturais ou econômicos (como o sexo, a etnia ou a classe social), mas do talento e das virtudes revelados pela Educação, forma de exercitar a justiça social (Vieira, 2003, p. 318).
Essa concepção transparece na Educação quando evidenciamos, por exemplo, as provas como o Saerj e Saerjinho, que, por sua vez, são instrumentos de controle do governo nos espaços escolares, contribuindo para fomentar a perversa lógica do “que vença o melhor”, deixando de considerar dialeticamente as tessituras das relações sociais e a própria lógica de oferta da Educação pública por parte do governo, cada vez mais de perfil privatista e empresarial, que não oferecem igualdade de oportunidades para todos.
No entanto, a fim de combater essa lógica da meritocracia, recorremos a Feijó; Silva e Araújo (2015), ao salientarem que a ideologia meritocrática não é nada mais do que “um modelo excludente e alienante que se fundamenta na competitividade e individualidade, empobrecendo as relações sociais” (Feijó; Silva; Araújo, 2015, p. 114).
Logo, é necessário ter em mente que a meritocracia é um modelo que visa atender os objetivos do Estado neoliberal, afastando o poder público de sua responsabilidade para com a qualidade de vida dos trabalhadores, tentando inverter e transformar uma questão de ordem coletiva em individual.
É por isso que reproduzir esse discurso enviesado em sala de aula, ou fora dela, enquanto educador, é, no mínimo, um desrespeito com aqueles alunos que partem de realidades sociais subalternizadas. Assim, interessa tão somente ao governo burguês utilizar-se desse discurso falacioso para justificar a dificuldade de aprendizagem desses alunos e atribuir a culpa do fracasso e da evasão escolar ao próprio aluno, que, de acordo com a concepção meritocrática, “não se esforçou o suficiente para manter-se na escola”.
Conclusão
Diante do exposto, cabe concluir este trabalho respondendo a uma pergunta que, de modo indireto, esteve presente em todo o tempo durante nossa análise: a quem interessa o fracasso escolar?
Partindo do entendimento de que o fracasso escolar é produzido no seio do sistema capitalista a partir de uma realidade de desigualdades também produzidas, como aqui já apresentado, é possível afirmar que a produção do fracasso escolar é sinônimo de negação de direitos para as camadas populares, ao mesmo tempo em que representa a objetivação do acúmulo de privilégios e da concentração de riquezas à elite dominante, ou seja, o fracasso escolar, por intermédio das desigualdades sociais que atravessam a realidade educacional, representa a manutenção da governabilidade daqueles que detêm o poder.
Por essa razão, é da maior importância insistir na ideia de que o sucesso escolar jamais pode ser exclusividade de uma minoria, pois é direito inalienável de todos acessar uma escola com qualidade, democrática, pública, laica e socialmente referenciada, assim como é direito de todos os alunos viverem uma experiência de sucesso na escola, a partir da apropriação significativa de um cabedal de conhecimentos que façam sentido para eles e os qualifiquem para o mercado de trabalho e para a vida. Nesse sentido, cabe a cada sujeito social ter a clareza de que ser a favor de uma escola livre de qualquer tipo de exclusão e que garanta os mesmos direitos a todos os alunos é de igual modo estar envolvido na luta pela superação das desigualdades sociais produzidas pelo sistema capitalista, pois, somente por meio da luta coletiva, será possível oferecer a todos os indivíduos condições objetivas de uma vida mais digna, igualitária, e um acesso à Educação absolutamente distante de qualquer possibilidade de fracasso escolar.
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Publicado em 09 de fevereiro de 2021
Como citar este artigo (ABNT)
LADEIRA, Thalles Azevedo. Fracasso escolar e desigualdade social: Uma perspectiva crítica e emancipatória. Revista Educação Pública, v. 21, nº 5, 9 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/4/fracasso-escolar-e-desigualdade-social-uma-perspectiva-critica-e-emancipatoria
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