Modernismo brasileiro e antirracismo: uma possibilidade para as aulas de literatura brasileira
Nayara Batista da Cruz
Licenciada em Letras – Português/Espanhol e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras - Literatura Brasileira (UERJ), especializanda em Educação das Relações Étnico-Raciais no Ensino Básico - Ererebá (CP II), professora da rede municipal do Rio de Janeiro (SME–Rio)
A cidade do Rio de Janeiro da virada do século XIX para o XX é a capital político-administrativa brasileira, sede da então recém-instaurada república. Tão recente quanto o regime republicano nesse período, proclamado em 15 de novembro de 1889, é a proclamação da Abolição da Escravatura, que ocorreu em 13 de maio de 1888. Esses dois acontecimentos simbolizaram mudanças no cenário nacional. Apesar do que eles poderiam representar para a organização e a conformação da política e da sociedade brasileiras, a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República não se efetivaram como medidas de melhoria para grande parcela da nossa população.
Sendo o último país do Ocidente a proibir o regime de escravidão, o Brasil não buscou medidas legais de reparação e inserção da população negra nas diversas esferas de sociabilidade. Além disso, a instituição republicana fundou-se por vias autoritárias, não contando com a participação popular, sobretudo a mais vulnerável. O que se tem é um panorama nacional dominado pelas elites, marcado por fortes desigualdades – social, econômica, educacional e racial – mas que busca, no início do século XX, a sua modernização.
É nesse período, conhecido como Belle Époque, caracterizado por uma visão universal e uniformizante, que se insere a atuação de um dos nossos mais significativos literatos, Afonso Henriques de Lima Barreto. Por intermédio de sua riquíssima obra, Lima Barreto transcreve, analisa e recria a cidade carioca, considerando todo esse contexto como provocador da configuração de nossa cidade daquela época.
Dessa maneira, com base nas observações realizadas por Velloso (2015) em Modernismo no Rio de Janeiro e Resende (2016) em Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, esta pesquisa se propõe a refletir sobre a conformação da modernidade carioca nas crônicas de Lima Barreto e a presença desse autor e desse gênero na educação escolar. Ao construir essa proposta, destacam-se os aspectos de uma educação antirracista e um trabalho de letramento literário crítico. Desse modo, com base na discussão estabelecida por este estudo, será possível abordar formas alternativas de trabalho literário nas escolas.
A modernidade carioca
Em Modernismo no Rio de Janeiro, Mônica Pimenta Velloso (2015) faz uma leitura de como o humor e a ideia de nacionalidade se inter-relacionam na modernidade carioca. Com base nessa premissa, a historiadora questiona a base de hegemonia conferida a São Paulo da década de 1920 como a capital referência do movimento modernista que desqualifica o Rio como uma das cidades com potencial representacional da Modernidade. Essa oposição entre Rio e São Paulo se caracteriza sinteticamente pela dialética entre ordem e desordem. Dessa forma, “a cidade do Rio de Janeiro caracterizar-se-ia pelo princípio do excesso e da desordem social” (Velloso, 2015, p. 26-27). A desordem, nesse sentido, pode ser compreendida não só como o humor presente nas relações cariocas como também pela sua composição diversificada em termos sociopolíticos.
Se, por um lado, o Rio de Janeiro pode ser lido como um lugar de matrizes múltiplas que compõem o plano da desordem, por outro há uma força compulsória que buscou a “estabilização” dessas matrizes de natureza tão diversa. É o caso do próprio processo de modernização pelo qual passou a cidade. A respeito disso, Beatriz Resende, em Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, afirma que “com parte expressiva da população composta pelas chamadas ‘classes perigosas’, sem direito de cidadania, a questão do controle da desordem e da imposição da ordem como fator de modernização irá se impor” (Resende, 2016, p. 31-32). Essa afirmação aponta o caráter universalizante da transformação urbanística à qual a cidade foi submetida no início do século XX.
Ao prefeito Pereira Passos caberia a tarefa de modernizar a cidade, torná-la atraente aos olhos europeus, mas também a tarefa de domesticá-la, instaurando a ordem para que o Rio de Janeiro se apresentasse como uma cidade cartão-postal da Belle Époque, onde não aparecesse, a turvar a imagem, o Brasil pobre, o Brasil negro, o Brasil mulato (Resende, 2016, p. 41, grifos da autora).
A modernização imposta, de acordo com Resende (2016), funciona como forma neutralizadora e totalizante do estilo de vida carioca. Mais do que isso, é possível entender a reforma urbanística com base em um padrão eurocêntrico que colocava Paris, a capital francesa, como o grande modelo de civilização a ser copiado pela capital carioca. Por essa lógica, as formas, as expressões culturais e os seus sujeitos que não se encaixavam nesse paradigma civilizatório eram reprimidos, aniquilados ou apartados desse núcleo metropolitano que era o Centro da cidade. Nesse movimento, a remodelação mórfica do espaço urbano carioca desencadeia a remoção de uma massa popular para áreas periféricas da cidade, formando os subúrbios, o que assinala a fragmentação da cidade já tão estratificada. Além disso, é possível mencionar o fato de que a região central é tomada, dentro dessa perspectiva moderna, como a transfiguração própria do que é ser a cidade, o que é ser a urbs, enquanto as periferias, em relação opositiva e inferior ao Centro, são a “sub-urbs”. Trata-se da conformação de dois status: o referencial do Centro e o de rebaixamento dos subúrbios. É a partir dessa tessitura que Lima Barreto constrói o seu discurso.
Na verdade, o antagonismo que Lima Barreto estabelece entre sua escrita e aquela coelhonetista para “fazer brindes de sobremesa, para satisfação dos ricaços” corresponde ao antagonismo que cresce entre bairros “aristocráticos”, “civilizados”, de “gente fina” e os subúrbios com sua burguesia e operariado que a sociedade clânica, clientelista, onde o favor predomina, expulsou em nome do progresso de seu cenário de “cartão-postal” para uma periferia desatendida pelo Estado. Nesse quadro, os verdadeiros atores da modernidade, como é a classe operária ou como são os artistas renovadores, não conseguem definir sua identidade como personagens da sociedade civil.
Nesta cidade de vida social fragmentada, a produção literária de Lima Barreto encontra uma possibilidade de representação crítica das questões da vida urbana na estrutura das crônicas, mas lançará o mais veemente protesto contra a cassação da cidadania, nos fragmentos que redige dentro do espaço de privação da liberdade que é o hospício (Resende, 2016, p. 18-19).
Na recente república do século XX, Lima Barreto cumpre seu papel como agente do “contramovimento”. Ele não só usa a cidade e seu constructo social como matéria-prima para sua produção artística e jornalística como também faz isso inserido dentro dessa ótica, sendo ele mesmo um homem negro, de poucos recursos, suburbano, marginalizado e desvalorizado. A desvalorização que enfrenta o cronista carioca atravessa a sua condição racial, mas não se resume a ela. A trama com o alcoolismo, desenvolvido por conta dos inúmeros problemas com que Lima se depara, as consequentes internações no hospício e a própria visão crítica que seus escritos carregam colocam-no como um indesejado.
Assim, jornalismo e literatura são importantes formas de pensar a cidade. Lima Barreto tem importante atuação nesse sentido, publicando crônicas e outros gêneros para manifestar sua visão a respeito da cidade, da modernidade, do regime republicano e da condição de pessoas marginalizadas. É justamente pela sua condição marginalizada que Lima tem de usar a imprensa como forma de produzir e divulgar a sua produção.
Desde o primeiro livro publicado por Lima Barreto, estabeleceu-se um conflito definitivo entre sua produção literária e os detentores do poder cultural na cidade letrada, capital da República Velha. Se a ruptura com os “mandarins da literatura” faz com que lhe seja negado o discurso legitimador da crítica oficial, a situação à margem garante à sua produção a preservação da independência. Diante das dificuldades de edição dos romances e contos que segue escrevendo, Lima Barreto busca na imprensa a forma de veiculação de sua escrita. Apartado dos grandes jornais, atuará em revistas, publicações de oposição ao regime, de associações de cunho político-corporativo, em periódicos de pequena circulação, frequentemente empastelados pela censura. Essa colaboração constante na pequena imprensa será definidora do perfil de grande parte de sua produção literária: as crônicas (Resende, 2016, p. 16).
Essa questão apresentada por Beatriz Resende (2016) revela dois caracteres da marginalidade de Barreto: a marginalização jornalístico-literária, relacionada à sua recusa em se identificar com os ditos escritores modernos e seus contemporâneos (Velloso, 2015, p. 42), e a marginalização dada pela sua condição sociorracial, uma vez que o autor do romance Clara dos Anjos era um homem negro, suburbano e fora das classes mais abastadas. De certa forma, essas duas vias de exclusão se cruzam e se confundem, conformando para o cronista barreiras que o impendem de ascender e alcançar o mesmo prestígio de outros escritores de sua época. É a partir dessa lógica que Lima assume essa identidade e personifica a imagem do próprio subalterno. Não representando nenhum tipo de reconhecimento, ele transita entre os “dois mundos”, as “duas cidades” que coexistem num só universo:
Apresentando-se ele mesmo como um representante das classes subalternas, movendo-se no espaço da cidade, entre o subúrbio onde mora, do qual se ressente por não conseguir uma identificação em sua vida íntima, pessoal, e o centro da cidade ocupado pelos gerentes desta cultura que recusa, Lima Barreto apresenta-se como transformador do discurso dos sem-fala numa fala pública (Resende, 2016, p. 20).
Ao se aproximar dessa identificação, Lima Barreto subverte a lógica de todas as expectativas e forja uma nova ordem para se colocar e superar os obstáculos que lhe foram impostos. O que se imagina é que, estando na periferia da alta produção literária nacional, o sujeito inserido nesse contexto não alcance meios de emitir enunciados e seja desprovido de divulgar sua produção intelectual. Além disso, o que se destaca, aqui, é o papel de um autor que se compreende pertencente a esse lugar. Distante da questão do distanciamento, estipula-se, “portanto, entre a vida do autor e sua produção, um vínculo que tem a ver com a própria temática de sua obra: a defesa incondicional do direito do cidadão, o acesso à informação e a valorização do nacional” (Resende, 2016, p. 17). A defesa dos desfavorecidos, juntamente com a crítica aos processos e meios opressores de seu tempo, são marcas inquestionáveis de seu trabalho.
Quando se fala em marca da sua obra, a visão analítica de Barreto se faz presente em sua produção jornalístico-literária não só sobre a República como sobre a Abolição e a Modernidade. Mas é importante ressaltar que criticar a modernidade não é sinônimo de rejeitá-la (Resende, 2016, p. 58). Sobre isso, também Velloso afirma que “essa crítica não significava desacordo com a Modernidade, mas antes desaprovação dos rumos que ela veio a tomar em nossa sociedade” (2015, p. 42).
A implementação da modernização, portanto, esteve presente não só em uma forma. Essa implementação foi um projeto de transformação da arquitetura, por exemplo, que visava a reurbanização da cidade do Rio de Janeiro. Ademais do plano arquitetônico, se esboçava, nesse momento do início do século XX, a modernização artístico-literária. Porém, tanto do ponto de vista literário quanto do ponto de vista da arquitetura, alguns problemas e questões cercam a noção de “modernidade”, ou seja, esse conceito não se estabelece de forma simples e desprovido de tensões. Ele pode ser encarado com base numa cadeia de conflitos instaurados pelo próprio contexto da época.
Não alheio a essas questões, Lima Barreto, transitando entre o meio da literatura e do jornalismo, capta esses dados e compõe a sua produção jornalístico-literária. O contista, crítico, romancista e funcionário público também construiu um legado como cronista, pelo qual transferiu sua visão e seu posicionamento crítico sobre seu contexto social e suas implicações.
A discussão racial no contexto educacional
Ao largo dos séculos, a instituição do cenário de ações político-educacionais pelo movimento negro ocorreu mediante uma sucessão de lutas e reivindicações. A exigência de acesso, permanência e qualidade da educação fez parte da agenda de lutas de lideranças e militantes negros e negras, de acordo com Gomes (2017). De maneira geral, a busca pelo direito à educação se concentrava no entendimento de que essa era a via para a superação de desigualdades sociais e raciais. Entre as exigências da pauta reivindicatória estiveram presentes: o acesso ao processo de escolarização, o combate ao analfabetismo e o enfrentamento ao racismo. Nesse sentido, destaca-se o importante papel de organizações do movimento negro brasileiro, como a Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental do Negro (TEN) e o Movimento Negro Unificado (MNU). De acordo com Nilma Lino Gomes (2017), essas organizações tiveram atuação de grande relevância na instituição e melhoria da educação de pessoas negras. Também segundo a autora, foi com o Movimento Negro Unificado que foi possível a participação de intelectuais negros na reabertura política a partir do fim da década de 1980.
Gomes (2017) afirma que o Estado Brasileiro, com a reabertura política, nos anos 1990, começou a discutir a questão das políticas afirmativas e a implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que estabelecem como um de seus temas transversais a “pluralidade cultural”. Esse tema debate os aspectos e a valorização de diferentes grupos étnicos que compõem a nossa sociedade, considerando as desigualdades socioeconômicas e as práticas discriminatórias que permeiam a realidade social brasileira marcada pela diversidade (Brasil, 1997). Mas foi no início dos anos 2000 que começou a ocorrer a grande efervescência estrutural da política nacional. Dentre outras medidas, as políticas de ações afirmativas começaram a ser efetivadas e foram aprovadas duas leis muito importantes para a discussão sobre a educação das relações étnico-raciais no nosso país. A sanção da Lei nº 10.639 em 2003 trouxe pela primeira vez a inserção da temática História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos educacionais, além da inclusão, no calendário escolar, do dia 20 de novembro como Dia da Nacional da Consciência Negra.
Art. 1º - A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes Arts. 26-A, 79-A e 79-B:
“Art. 26 - A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.” (...)
“Art. 79-B O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’” (Brasil, 2003).
Essa lei representou uma virada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, Lei nº 9.394/96, que se caracteriza como uma lei progressista. A Lei nº 10.639/03 precisou ser modificada, uma vez que, num primeiro momento, as culturas indígenas foram ignoradas na redação dessa primeira alteração da LDB. Portanto, foi com a aprovação da Lei nº 11.645, em 2008, que as histórias e culturas originárias passam a vigorar junto com as culturas de matriz africana na Lei nº 9.394/96 como temática obrigatória dos currículos de ensino (Brasil, 2008). Essas medidas exemplificam o reconhecimento do Estado brasileiro dos problemas de desigualdade e racismo que permeiam a educação e toda a sociedade brasileira.
Outras atitudes marcaram esse período. A partir do estabelecimento da Lei nº 10.639/03, foram instituídas, em 2004, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, que expressa em seu Parecer CNE nº 03/04 tratar
de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe a divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial – descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada (Brasil, 2004, p. 10).
Desse modo, o que se propõe é uma reflexão para adoção de encaminhamentos curriculares que reconsiderem as contribuições e a condição sócio-histórica do negro no Brasil. Isso inclui questionar ausências, desconstruir/reconstruir conceitos e alternar perspectivas.
Alteridade e as narrativas na educação
Mas, afinal, qual a relação entre a Modernidade carioca e Lima Barreto com a discussão étnico-racial na educação? Uma vez que as Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 inserem de forma obrigatória a abordagem das histórias e culturas afro-brasileira, africanas e indígenas nos currículos educacionais, existe a necessidade de repensar as narrativas comumente difundidas na trajetória educacional. Ademais, tendo sido Lima Barreto um homem negro, suburbano e marginalizado tanto em sua época quanto anos após a sua morte e que escrevia com base nessa condição e não de dentro da lógica elitista, a resposta para essa pergunta não poderia ser outra senão esta: tudo. Pela necessidade de reconsideração das narrativas veiculadas no espaço escolar, pode-se considerar, por exemplo, a problemática tomada do modernismo paulista como a síntese de um movimento mais amplo que extrapola as limitações de tal consideração.
A associação, às vezes involuntária, que frequentemente se estabelece entre os conceitos de moderno, modernidade e, especialmente, modernismo, de um lado, e a experiência paulista de 1922, de outro, acabou produzindo visões demasiado generalizantes. Em decorrência, temos as ideias de “pré-modernismo” ou “vazio cultural”, que explicariam o período da virada do século XIX para o XX. Nesses conceitos está subjacente a ideia de um referencial externo: “pré” e “vazio” em relação a quê? (Velloso, 2015, p. 50-51).
O que Mônica Pimenta Velloso (2015) questiona neste fragmento é o rebaixamento do Rio de Janeiro, assim como outras experiências, na construção da identidade moderna literária. Em conformidade a essa questão trazida pela historiadora, o que se propõe neste estudo é refletir sobre a circulação totalizante e universalizante do movimento modernista nas práticas pedagógicas voltadas para o ensino de Literatura Brasileira que desconsidera a produção carioca, sobretudo negra, a partir das crônicas de Lima Barreto. De acordo com a autora, a divulgação e o desenvolvimento dessa ideia estão diretamente ligados à própria história da literatura que consolidou uma visão que simplificou as mais variadas performances modernas. Assim sendo, pretendendo incluir atividades que se anteciparam à Semana de 22, “cabe deslocar os marcos temporais que foram consagrados pela nossa tradição cultural” (Velloso, 2015, p. 51).
Se o modernismo brasileiro é muito mais do que nos fizeram acreditar alguns estudos literários e a sua reprodução no meio escolar, olhando para o contexto carioca é possível prezar pela seleção curricular que privilegie a produção cronista de Lima nas aulas de Literatura. Ademais cumpre-se o trabalho em conformidade com a legislação em vigor prevista pelas leis anteriormente mencionadas, Leis nº 10.629/03 e nº 11.645/08. De forma geral, é interessante notar que:
a visão da cidade que Lima Barreto apresenta em suas crônicas é tão ampla que nela cabem representantes de todos os grupos sociais: presidentes, ditadores, deputados e senadores, militares, honestos ou desonestos doutores, moças de Botafogo, “melindrosas”, funcionários públicos de todos os escalões, meninas de subúrbio, poetas empobrecidos, músicos não reconhecidos, prostitutas infelizes ou de sucesso, aposentados, donas de casa, vagabundos, bêbados e loucos. São, no entanto, aqueles que a cidade rejeita que constituem o objeto principal de suas crônicas. Na verdade, o que Lima Barreto mostra é a verdadeira cara da cidade do Rio de Janeiro, sua resistência à ordem organizada imposta, ao Estado controlador, reação nem sempre organizada (Resende, 2016, p. 18-19, grifos da autora).
A preferência por personagens subalternizadas indica outras formas de leitura não só da cidade como também da conformação do conceito de modernidade, da produção da literária da época e da escrita de autoria negra. Assim, a realidade não oficial passa a ser tematizada, o que contribui para a rejeição do cronista. A título de exemplo, a crônica “O moambeiro”, de 1915, ilustra essa questão.
Quando saio de casa e vou à esquina da Estrada Real de Santa Cruz esperar o bonde, vejo bem a miséria que vai por este Rio de Janeiro. (...)
Pergunta-me um se deve assentar praça na Brigada, pois há oito meses não trabalha no seu ofício de carpinteiro; pergunta-me outro se deve votar no Sr. Fulano; e, às vezes mesmo, consultam-me sobre casos embaraçosos. Houve um matador de porcos que pediu a minha opinião sobre este caso curioso: se devia aceitar dez mil-réis para matar o cevado do capitão M., o que lhe dava trabalho por três dias, com a salga e o fabrico de linguiças; ou se devia comprar o canastra por cinquenta mil-réis e revendê-lo aos quilos pela redondeza (Barreto, s/d-b, p. 17).
Essa crônica que traz essas personagens suburbanas trata de alguns problemas enfrentados pelas classes marginalizadas, em especial a forma repressiva das ditas instituições de segurança pública. Ao abordar essa questão, o autor não só desloca a perspectiva com a qual constrói a sua narrativa como lança mão da crítica ao Estado republicano e moderno, como se pode conferir também na crônica “15 de novembro”, publicada em 1921.
Veio, entretanto, a vontade de lembrar-me o estado atual do Brasil, depois de trinta e dois anos de República. (...) Eu me comovi com a exposição do Dr. Ciro, mas me lembrei ao mesmo tempo do aspecto da Favela, do Salgueiro e outras passagens pitorescas desta cidade.
Em seguida, lembrei-me de que o eminente Sr. Prefeito quer cinco mil contos para reconstrução da Avenida Beira-Mar, recentemente esborrachada pelo mar.
Vi em tudo isso a República; e não sei por que, mas vi (Barreto, s/d-b, p. 3).
De forma irônica, Lima Barreto traz uma associação entre o Estado republicano e o descaso das entidades públicas com áreas periféricas da cidade e a exacerbada preocupação com outras áreas. Somado a isso, Lima também denuncia o descaso desse mesmo Estado em relação à população mais pobre – e negra –, como se pode conferir na crônica “A volta”, datada de 1915:
A grande cidade do Prata tem um milhão de habitantes; a capital argentina tem longas ruas retas; a capital argentina não tem pretos; portanto, meus senhores, o Rio de Janeiro, cortado de montanhas, deve ter largas ruas retas; o Rio de Janeiro, num país de três ou quatro grandes cidades, precisa ter um milhão; o Rio de Janeiro, capital de um país que recebeu durante quase três séculos milhões de pretos, não deve ter pretos (Barreto, s/d-a, p. 8).
Em crítica a uma política pública que incentiva pessoas a ocupar áreas coloniais do Rio, mas que invisibiliza a presença dos mais vulneráveis, o autor direciona a sua escrita de forma atenta aos problemas sociorraciais que estavam presentes naquela época. Não é de surpreender por que razão Lima Barreto, por tanto tempo, foi renegado.
Conclusão
As formas previstas em nossa legislação sobre o ensino das histórias e culturas afro-brasileira, africanas e indígenas respaldam toda iniciativa pedagógica que pretende colaborar com uma educação antirracista. Dessa forma, optar pela seleção de obras de autores como Lima Barreto nessa tarefa cumpre não só adotar uma educação para as relações étnico-raciais mais sadias como romper com as narrativas dominantes que simplificam o movimento modernista à atuação de artistas paulistas. Apesar de dificuldades que aparentemente podem surgir, não é uma ação impossível – como buscou provar este estudo.
Obviamente, a opção pelo autor em questão e por algumas de suas crônicas é apenas um recorte do que pode ser possível realizar. Há uma infinidade de possibilidades que devem conformar a prática docente no trabalho com a literatura: autores, gêneros literários, atuação em movimentos, temas etc. Aqui, procurou-se uma pequena contribuição, cabendo, portanto, ser ampliada por outras e novas pesquisas.
Referências
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GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Saberes construídos na luta por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
RESENDE, Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. Rio de Janeiro: Autêntica, 2016. e-book.
SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto, triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social no início do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro. Petrópolis: KBR, 2015. Kindle.
Publicado em 09 de fevereiro de 2021
Como citar este artigo (ABNT)
CRUZ, Nayara Batista da. Modernismo brasileiro e antirracismo: uma possibilidade para as aulas de literatura brasileira. Revista Educação Pública, v. 21, nº 5, 9 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/5/modernismo-brasileiro-e-antirracismo-uma-possibilidade-para-as-aulas-de-literatura-brasileira
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