A virtualização do ensino público na Educação Básica: desafios necessários na pandemia
Fernanda Dias Rangel
Professora de Biologia (Seeduc/RJ), orientadora educacional, mestranda do em Ensino das Ciências (Unigranrio)
Um dos momentos mais marcantes do processo de aprendizagem se encontra nas aulas presenciais, em que o contato mais próximo entre aluno e professor ocorre de forma natural e desencadeia uma sequência de estágios, como a socialização, a autonomia e o questionamento, entre outros. A estratégia de adoção do ensino remoto pode ser vista como fator desencadeante de preocupações na relação entre escola e aluno, perante o enfrentamento de vários obstáculos que surgem no decorrer desse processo. Nesse contexto, em que o pensar as questões vivenciadas é um norteador para o fazer do estudante, cabe refletir sobre as diferenças entre aula presencial e aula virtual.
Nas aulas presenciais, o professor acompanha de perto o desempenho dos alunos, seus sucessos e fracassos no cotidiano escolar, ponderando e articulando de que forma pode melhorar esse desempenho – que também depende de participação efetiva da família. No ambiente virtual, ocorre uma transferência de conteúdos e estratégias que contarão com uma capacidade maior de entendimento do aluno, que terá que se adaptar em seu espaço; seu fazer torna-se então um exercício diário e mais intenso perante os acontecimentos. Portanto, no ensino remoto, o vínculo entre escola e aluno deve ser cultivado de modo a tornar essa nova realidade possível, sem desvalorizar o papel do professor e, ao mesmo tempo, fortalecer a necessidade de um ambiente saudável e dinâmico que compense a distância estabelecida.
O desafio é formar e informar em um processo permanente de acompanhamento que possibilite o pensar e o fazer diante dos obstáculos que aparecem pelo caminho. Ocorre que a intensificação das perspectivas quanto a esse método pode gerar consequências e impactos sociais na definição desse novo cenário, e o resultados surgirão dentro de longo prazo. Um ambiente familiar desestruturado, em que a imposição de regras tenha de ser feita de forma brusca, pode prejudicar o andamento do processo; o ideal seria manter um diálogo aberto sobre as escolhas que devem ser feitas, sem abrir mão da capacidade de argumentação, incentivando sempre que o sentido do estudo se faz necessário a todo instante e que a utilização de outras ferramentas se faz necessária diante das circunstâncias.
O cenário educacional ao longo do tempo vem passando por muitas mudanças; as fontes de pesquisa podem ser acessadas por diferentes meios, torna-se cada vez mais volúvel esse vaivém de informações que surgem de vários lugares e a todo instante. E tanto alunos quanto professores devem acompanhar de perto essas transformações que influenciam de alguma maneira o processo de ensino-aprendizagem e a necessidade do uso da tecnologia pelas escolas. Uma reformulação das propostas pedagógicas nesse sentido amplia esse novo horizonte, e o centro desse processo está pautado em uma relação mais dinâmica entre professor-aluno. Segundo Gasparin (2011, p. 3), “o ponto de partida do novo método não será a escola nem a sala de aula, mas a realidade social mais ampla. A leitura crítica dessa realidade torna possível apontar um novo pensar e agir pedagógicos”.
Pensar a escola hoje remete a refletir sobre cada realidade e que o ensino remoto pode e deve fazer parte (de forma complementar), desde que as barreiras sociais para esse acesso sejam rompidas e que as especificidades de cada escola e região sejam observadas. Os conhecimentos tecnológicos no cenário atual estão mais valorizados e contribuem para uma formação individual muito específica, mas que precisa de outras metodologias para ser mais eficiente. Desse modo, cabe enfatizar que cada modalidade de ensino se constitui por um conjunto de aquisições, cuja finalidade é contribuir para a aplicação do conhecimento.
Bastos (2000) salienta que “a presença de tecnologia em todos os setores da sociedade constitui um dos argumentos que comprovam a necessidade de sua presença na escola”. Esse argumento só reforça a ideia de que as formas tradicionais de ensinar estão se renovando e criando espaços para que as maneiras de pensar e agir sejam ressignificadas a todo instante. Com base nessas premissas, o objetivo deste estudo é mostrar que o ensino remoto ou virtual na rede pública abre espaço para as discussões dos desafios que serão enfrentados como a capacitação de professores e os fatores sociais envolvidos, mas que se tornam necessários para que, do ponto de vista pedagógico, possamos ter uma alternativa como complemento dos conteúdos curriculares.
Não se trata de classificar esse método como modalidade permanente de ensino, mas que pode ser uma alternativa trabalhada de forma temporária, podendo substituir em determinado momento as atividades presenciais, flexibilizando o tempo e a aplicação de conteúdos programáticos. É um assunto que permite redefinir as noções de tempo e espaço, atitudes e valores, teoria e prática, rotina e dedicação, colocando-nos dentro de realidades e contextos diferentes, mas que precisam ser relevantes e necessários para a Educação Básica neste momento de aflições e incertezas.
A formação atual do professor
Há muito tempo esse assunto está se tornando um dos principais temas de estudo, o que remete a refletir sobre tal importância, já que se trata de formar os profissionais que formam todos os outros. Investir no processo de formação continuada, em um mundo que está em constante mudança, requer repensar as concepções de ensino-aprendizagem e admitir que esse processo também depende de uma reflexão sobre a prática do professor em sua trajetória profissional e acadêmica.
O desenvolvimento de saberes e competências só acontece se existirem meios para que se realizem, e isso vai além da formação na universidade, pois estão vinculados à prática da profissão e à continuidade da formação. Para Tardif (2014, p. 287), “em suma, as fontes de formação profissional dos professores não se limitam à formação inicial na universidade; trata-se, no verdadeiro sentido do termo, de uma formação contínua e continuada que abrange toda a carreira docente”.
Mudar esse panorama depende de investimentos em cursos de capacitação, que, de maneira geral, preparam de forma mais rápida e de acordo com as necessidades e demandas do mercado; dependendo do perfil profissional, alcançam resultados bem significativos, principalmente para o ensino remoto, que necessita de manuseio de ferramentas tecnológicas como computadores e tablets para aplicação na prática educativa. E isso depende também de políticas educacionais que viabilizem esses recursos para o professor como forma de aprimoramento e aporte profissional. Os resultados desses investimentos são observados com o aumento da interatividade e da conectividade com outras formas de conhecimento. A capacidade humana de se adaptar ao novo depende da adoção de estratégias que estimulem o uso de diferentes meios de ensinar e aprender.
Encarar as formas de aprender como exercício da prática estimula a aquisição de novas metodologias, colaborando para um melhor desempenho na atividade docente e, de forma permanente, para os saberes necessários à formação profissional. É um processo de construção com o objetivo de assegurar um ensino de qualidade aos estudantes e promover uma participação mais ativa, incentivando a autonomia e promovendo o desenvolvimento intelectual. Podemos considerar então que a formação do professor é um dos pontos de partida para uma mudança educacional que deve se pautar em uma prática mais reflexiva e que reforce a autonomia de acordo com a realidade de cada um, dentro desse contexto.
Assim, diante desses desafios, a adoção de novas metodologias de ensino, por meio de um ambiente virtual, favorece o crescimento profissional e estabelece um desafio entre o modelo tradicional de ensino oferecido com uma prática mais alternativa e dinâmica para o docente. A reelaboração constante dos saberes que se realizam pelas experiências vividas e pelo constante processo de formação é ponto chave para uma condição favorável do trabalho remoto. Para Pimenta (2012), “essa perspectiva apresenta um novo paradigma sobre a formação dos professores e suas implicações sobre a formação docente”, em que o compartilhamento de experiências entre os diferentes níveis de ensino se faz cada vez mais necessário.
O perfil socioeconômico dos alunos ingressantes da rede pública
As desigualdades sociais no Brasil vêm aumentando nos últimos anos, e esse cenário expressa certa influência na educação. Os impactos vão desde aumento da evasão escolar à distorção idade-série entre os estudantes da Educação Básica. De acordo com estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), “desde o fim de 2014 até o segundo trimestre de 2019, a renda dos 50% mais pobres da população caiu 17% e a do 1% mais rico cresceu 10%” (Portal FGV). Essa queda vem acompanhada por diminuição da escolaridade e por falta de experiência para desempenho de funções que exigem um preparo técnico.
O perfil dos alunos da escola pública reflete essa triste realidade: são famílias formadas por quatro pessoas ou mais e que necessitam muitas vezes do auxílio de programas sociais, como o Bolsa-família. Esse aspecto reforça a dificuldade de acesso a uma rede de internet e a computadores e celulares, excluindo os alunos do acesso às plataformas digitais de aprendizagem. Outro fator importante é a estrutura habitacional desses indivíduos, que na maioria dos casos, não possuem local adequado para realização dos estudos diários no lar.
Isso nos desperta para um debate sobre como garantir avanços na educação, mesmo sob condições precárias de estrutura em algumas escolas e das condições de vida das famílias. Esses desafios são, em verdade, fundamentais para o desenvolvimento de políticas públicas que reforcem uma consciência igualitária no ensino, da Educação Básica à universidade. Essa disparidade deve ser encarada como uma discussão permanente entre professores, alunos, equipe pedagógica e comunidade escolar, na adaptação dos currículos, das metodologias e das práticas educativas, possibilitando um suporte para o enfrentamento desse problema.
A conscientização sobre o papel de cada cidadão, seus direitos e deveres deve ser tema constante dentro do contexto escolar, e essa responsabilidade é de todos os envolvidos e comprometidos com o processo de desenvolvimento educacional, seja ele público ou privado. Reestruturar os investimentos em geração de empregos e preparo de mão de obra contribui para a diminuição da evasão escolar e, consequentemente, para a melhoria das condições de vida de grande parte da população, principalmente dos que vivem em periferias e não têm acesso às condições mínimas para acompanhar o ensino remoto.
O ensino na era da internet
Por ser considerado um dos recursos digitais mais complexos, o acesso à internet depende de um sistema de redes que se conectam, fornecendo ampla comunicação em qualquer lugar do mundo. E a dificuldade de acesso vai além, pois não se trata apenas de empecilhos financeiros, mas sim de condições tecnológicas das redes disponíveis no país para garantir esse acesso. E o ensino remoto depende prioritariamente desse recurso para garantir a comunicação entre professor e aluno nas plataformas virtuais. Mas como garantir condições igualitárias de educação a famílias que dependem de recursos financeiros para tal condição? Primeiro, é preciso avaliar como esse método, quando oferecido pela rede pública, irá contemplar todas as famílias; segundo, de que forma o acesso poderá chegar a elas, em planos de internet ou chips distribuídos para os alunos.
A falta de mobilidade de rede de internet é um agravante, pois, nesse caso, limita o acesso a esses recursos e dá menos oportunidade aos estudantes, agravando a desigualdade. Sem contar que estamos falando de núcleos de famílias que podem (ou não) dispor de um computador ou aparelho celular para desenvolver o trabalho remoto e da falta de espaço adequado em casa, tornando-se mais um obstáculo para o modelo proposto. O investimento é muito grande, mas não distante de se realizar; trata-se de criar formas de fazê-lo através de planejamento para adesão digital, políticas públicas em educação e inclusão para o trabalho com ferramentas digitais na Educação Básica, dando possibilidade de igualdade de acesso, qualificando e preparando os mais pobres para a cultura digital, dentro e fora do espaço escolar.
A virtualização do ensino em tempos de pandemia
Vivemos em um momento delicado e nunca esperado em nossas vidas, tendo que nos resguardar em nossos lares, manter o distanciamento social e ao mesmo tempo cumprir nossos compromissos profissionais, sem saber até quando e com o desafio de enfrentar dificuldades diversas que surgem nesse período. Para o ensino não está sendo diferente, tanto para professores quanto para alunos, que precisam lidar com as frustrações e dificuldades que a pandemia tem trazido cotidianamente. Essas alterações comportamentais nos mostram a importância de olhar a capacidade do ser humano de se adaptar nesse momento tão peculiar pelo qual estamos passando.
Não dependemos exclusivamente da escola para estar ativamente descobrindo e aprendendo novos conceitos e ensinamentos, e o cotidiano vem se aprimorando com a prática da cibercultura, que, de acordo com o pensamento de Lèvy (2010), “é um conjunto de práticas, atitudes, modos de pensamentos e valores que se desenvolvem em um ambiente virtual viabilizado pela internet”. Isso significa que estamos cada vez mais dependentes das tecnologias digitais para a interação e a disseminação de outras culturas existentes no mundo e que a sociedade pode e deve interagir com essa ferramenta de comunicação. Mas essa imersão deve estar pautada em critérios rígidos de segurança das fontes de informação e na capacidade de criticidade das pessoas envolvidas (estudantes e professores).
Esse cenário esclarece que, apesar de a escola estar fisicamente distante, as aulas continuam acontecendo e em tempo real, só que de forma remota. Por isso, deve-se ter muita cautela com as questões pedagógicas envolvidas, principalmente no que diz respeito às condições perante o acesso de alunos e professores. A criação de regras é necessária para que o ambiente virtual seja o mais prazeroso possível e a convivência se dê forma saudável. O acompanhamento da equipe de gestão deve ser constante, considerando a especificidade de cada turma e as estratégias adotadas por cada professor para o desempenho nas aulas e seus conteúdos.
Considerações finais
A adoção de medidas que viabilizem o ensino remoto está intimamente ligada à necessidade de preparo de professores e alunos para a tecnologia digital via capacitação e investimento nas escolas. Por outro lado, temos uma precariedade muito grande por parte das famílias quanto a espaços adequados para os filhos estudarem, falta de acesso à internet e a equipamentos como computadores e tablets. Neste momento, que é excepcional, uma forma de incluir todos os alunos é investindo na adesão às tecnologias digitais, dando os suportes necessários para o acesso ao ambiente virtual como também fazer uso de estratégias mais simples, se necessário, facilitando o uso dos materiais pedagógicos que podem ser impressos e entregues aos que enfrentam mais dificuldades para se conectar às plataformas virtuais.
Conquistar a autonomia e preparar os estudantes para a imersão na cultura digital é também um desafio que precisa ser pensado por todos os envolvidos, e isso requer repensar os currículos, investir em práticas mais dinâmicas nas escolas e reestruturar as redes de ensino para a aprendizagem remota. É um debate constante e que deve fazer parte do campo educacional como um todo, a fim de proporcionar melhoria da oferta de recursos para os sistemas públicos educacionais. O importante é entender as complexidades que existem entre ensinar e aprender, com todas as suas amplitudes, para que possamos avançar cada vez mais mesmo que de forma lenta e gradual nas questões tecnológicas que envolvem o ensino remoto e suas potencialidades na vida dos estudantes.
Referências
BASTOS, João Augusto (Org.). Educação Tecnológica: imaterial e comunicativa. Curitiba: Cefet-PR, 2000 (Coletânea Educação & Tecnologia).
GASPARIN, José Luiz. Uma didática para a pedagogia histórico-crítica. 5ª ed. Campinas: Autores Associados, 2011.
LÈVY, P. Cibercultura. 3ª ed. São Paulo: Editora 34, 2010.
PIMENTA, Selma Garrido. Saberes pedagógicos e atividade docente. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2012.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 17ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
Publicado em 23 de fevereiro de 2021
Como citar este artigo (ABNT)
RANGEL, Fernanda Dias. A virtualização do ensino público na Educação Básica: desafios necessários na pandemia. Revista Educação Pública, v. 21, nº 6, 23 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/6/a-virtualizacao-do-ensino-publico-na-educacao-basica-desafios-necessarios-na-pandemia
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