Milton Santos e o atual estado de coisas: reflexões em tempos pandêmicos

Rafael Alves de Freitas

Mestrando em Geografia (PPGGEO/UFRRJ), licenciado em Geografia (UERJ)

Talvez a Geografia – mais do que qualquer outro saber da Humanidade – possa ajudar a entender certos aspectos que se dão quase sem se notar em tempo pandêmico e globalizado de hoje – que, por vezes, parece mais fabuloso que trágico! De fato, diferentemente de outros estudos humanísticos, a Geografia, em sua constituição e desenvolvimento, sempre teve que lidar com a questão da Natureza e de como tal saber concebe seu objeto, uma vez que se inicia como descrição da paisagem e do meio. Disso dependeria até sua classificação como ciência humana ou ciência natural. Para nós, geógrafos, tal debate é desprovido de sentido, uma vez que todo saber, justamente por ser humano, não pode ser natural, ainda que seu objeto seja a Natureza – física ou biológica. A Natureza não produz saberes nem constitui ciências. Somos nós que os construímos com base em nossas necessidades e anseios.

Ora, uma das nossas maiores necessidades no momento está em tecer redes de relações conceituais para compreender este acontecimento – a pandemia de Covid-19 – que nos parecia inaudito, impossível, moldado pelo espanto e o medo. Um espanto que não seria apenas dos indivíduos, mas também das ciências. Ademais, ainda que a pandemia seja um acontecimento grandemente complexo para os saberes e as ciências, eles parecem não ter entendido que tal complexidade não pode ser abarcada apenas dentro de seus feudos disciplinares, isto é, na compartimentação fragmentária dos diversos objetos de cada ciência. Não se trata apenas de interdisciplinaridade, porém do real que nunca se realiza por simples ajuntamento de particularismos.

A cultura da especialização acelerou os conhecimentos e apressou os resultados técnicos, porém fez de cada ciência uma fronteira inalcançável, incapaz de enxergar além de seus próprios limites. Quantos de nós, com formações especializadas, conseguimos pensar e entrar em diálogo com outros saberes e ciências? A cultura da especialização meramente técnica é um teatro de monólogos paralelos sem espectadores.

Desse modo, é preciso se voltar uma vez mais para a totalidade, como disse Milton Santos em um de seus últimos e mais acalorados debates. Mas é, talvez, no artigo Globalização e redescoberta da Natureza, fruto de uma aula inaugural proferida por ele em 1992, que encontramos, em síntese, elementos que jogam luz sobre o nosso atual estado de coisas fragmentadas.

Desde o início de 2020 ouvimos que estamos em “guerra contra o vírus”. Nesse pensamento, a Natureza é sempre afastada de nós, subordinando-se ao nosso poderio técnico. Ela é, portanto, uma realidade que vai se tornando cada vez mais passiva. Com a globalização, conforme esclarece Milton Santos, além desse aspecto, que foi se dando como próprio da ação técnica humana, a Natureza passa a nos ser apresentada como simples imagem, uma vez que teria sido plenamente “domesticada”.

Certamente um bom exemplo de tal aspecto é a invenção e a ida aos zoológicos: dominando um sentimento de nostalgia e relaxamento, podemos observar plenamente o “exótico” e o “selvagem” da Natureza sem nos preocupar com a nossa segurança. É a Natureza sendo-nos dada como fragmentação e pura representação, cuja única finalidade seria sua disponibilidade, que aliás é algo puramente ilusório. Porque aquilo que nos aparece como natural nada mais é que pura artificialidade, um puro arranjo humano que busca imitar (simulacro) uma pretensa realidade originária.

É como imagem, ressalta Santos, que a Natureza começa a aparecer como crise ambiental. As imagens, por exemplo, de pequenos cataclismas, grandes furações, tsunamis, deslizamentos e outros abalos decorrentes da crise ambiental foram se moldando ao processo midiático, reforçando, portanto, a ideia de uma falsa proximidade que tanto experimentamos hoje com os slogans de que “o mundo está na palma das nossas mãos”; “nas telas dos nossos computadores”. O geógrafo alertava, em outras palavras, que ontem, o homem se comunicava com o seu pedaço de Natureza praticamente sem mediação; hoje, a própria definição do que é esse entorno, próximo ou distante, o local ou o global, é cheia de mistérios. Foi nessas condições que se deu e está se dando o atual processo pandêmico: na confusão generalizada entre o local e o global, o próximo e o distante.

Nesse sentido, não poderíamos nos espantar com as atitudes daqueles que negam a pandemia. Os negacionistas não são um fenômeno político isolado; são também efeito desse mundo de confusão entre as grandes e as pequenas escalas; entre falso concreto e verdadeiro abstrato. É a atitude do homem comum que não enxerga problemas em furar as medidas de isolamento e proteção sanitária locais, ainda que esteja diuturnamente exposto à informação do agravamento de certas condições da pandemia; ainda assim não podemos dizer que se trata de um fenômeno anedótico, atípico.

Assistir ao agravamento da situação em outros lugares, seja em esfera local, seja em esfera nacional ou mundial não o comove quanto a suas responsabilidades, ao contrário da obviedade que isso poderia parecer. Esse homem apenas assistiu ao que é contado a ele sob a forma da pura linguagem funcional que tem força de entreter, mas que dificilmente poderá mudar seus hábitos cotidianos, ainda mais quando eles se apresentam a ele como normalidade. Ele está separado da notícia que, enquanto não lhe seja realmente próxima, se perde na confusão das escalas, se desfaz na pretensa concretude que possuiria.

Não se pode esquecer que a escala local aqui não é apenas a cidade, mas o bairro, a parte do bairro que mais frequenta, a rua onde mora, sua casa. Ou seja, a escala mais determinante neste caso é aquela das suas relações concretas, como o próprio conceito de lugar direciona. Enquanto o perigo não lhe for realmente próximo, não estiver literalmente em sua escala corporal, ele dificilmente mudará de opinião apenas em virtude da exposição informacional. Por mais que a pandemia seja para ele algo real e de grandes escalas, enquanto ela estiver apenas na tela do celular ou do computador não passará de imagem: será assim a proximidade mais distante. Por isso, é possível se solidarizar com os mortos de outros países e continuar a agir em casa e na parte da cidade que habita como se a escala local não fizesse parte da escala mundial.

Dessa maneira, ao contrário do que poderia parecer, as incessantes imagens midiáticas da Natureza são na verdade o seu apagamento, pois aumentam em nós a sensação do dissídio e da separação. Experimentamos certa sensação de que estamos a viver aquilo, posto que estamos vendo, interagindo, compartilhando e dando likes, mas, em verdade, não estamos, pois essas realidades se dão longe de onde estamos; nós apenas assistimos. Os eventos locais, ainda que viralizem na babel da virtualidade, não perdem sua escala originária – as únicas coisas que os fazem parecer maiores são o manuseio das imagens e a funcionalidade do discurso que ele pode gerar.

Desse modo, estamos acostumados a recordar que, apesar da nossa esmagadora realidade urbana, há uma natureza contemplativa – a imagem da Floresta Amazônica, das baleias, da aurora boreal etc., mas sempre distante de nós. Os objetos técnicos nos afastariam dela e nos protegeriam de sua excessiva desproporcionalidade de forças. Ora, Milton Santos ensina que essa Natureza separada, originária e intacta é uma ilusão. Por isso, ela pode ser rapidamente capturada pelo discurso midiático dos tempos globalizados, pois facilmente pode se prestar ao papel de imagem fabulada. A Natureza sempre se dá no contato e na relação que o homem estabelece com ela; fora disso, não sabemos como ela é de fato. Por isso, a história da Natureza para o homem nada mais é que parte de sua própria história.

Nesse sentido, este capítulo pandêmico da nossa história fatídica não é um ponto fora da curva. Ele reforça a confusão que a globalização tornou possível entre as escalas e submete ainda mais a Natureza à fragmentação das imagens, aos discursos superficiais da funcionalidade comunicativa. Há rotas de fuga?, perguntaríamos ao professor Milton Santos, que, pela potência de seu pensamento, se torna nosso contemporâneo. Talvez o passo decisivo seja não esquecer que a primeira escala é aquela das verdadeiras relações concretas: quer entre homens, quer entre homens e Natureza. O local e as particularidades não podem ser escamoteados, suas determinações nunca podem ser completamente apagadas.

Concluímos assim que a globalização perversa, como ensina Santos, subverte escalas e nos aparta ainda mais da Natureza. A ciência, hiperespecializada, tornou-se cega a fenômenos complexos. A pandemia, sem contexto, reduz-se a espetáculo. Como voltar, agora, à totalidade? Eis a questão...

Publicado em 02 de março de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

FREITAS, Rafael Alves de. Milton Santos e o atual estado de coisas: reflexões em tempos pandêmicos. Revista Educação Pública, v. 21, nº 7, 2 de março de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/7/milton-santos-e-o-atual-estado-de-coisas-reflexoes-em-tempos-pandemicos

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