As ideias do linguista Carlos Franchi: linguagem, gramática e criatividade

Washington Elias Paes

Graduando em Letras (UFF)

Carlos Mágno Domás da Silva

Graduando em Letras (IFF)

O fenômeno da criatividade teve sua relevância nos espaços escolares e profissionais reconhecida nas últimas décadas. A vida contemporânea se caracteriza pela instabilidade e pela complexidade, e nela a pessoa inovadora e criativa passou a ser valorizada em praticamente todos os âmbitos. Apesar disso, a criatividade no contexto escolar é tema ainda pouco explorado pela pesquisa acadêmica e frequentemente entendida de maneira errônea por professores e alunos (Vieira; Maia, 2018, p. 130).

Em Alencar (2007, p. 46), encontramos o seguinte trecho:

O que nos levou ao seu desenvolvimento [de um modelo para desenvolvimento da criatividade] foi a observação de várias práticas pedagógicas inibidoras à criatividade frequentes em escolas brasileiras, como ensino voltado para o passado, enfatizando-se a reprodução e memorização do conhecimento; uso de exercícios que admitem apenas uma única resposta correta, fortalecendo-se a dicotomia certo-errado e cultivando-se em demasia o medo do erro e do fracasso; estandardização do conteúdo, aliado ao pressuposto de que todos devem aprender no mesmo ritmo e da mesma forma; não valorização por parte de muitos docentes de formas alternativas de resolver problemas; baixas expectativas com relação a capacidade do aluno de produzir ideias inovadoras; além da centralização da instrução no professor.

Por outro lado, muito ainda se discute sobre o papel da gramática no ensino da Língua Portuguesa e os rumos que a aula de língua materna deveria ou não tomar. Essas discussões foram motivadas, entre outros fatores, por uma “crise” no ensino brasileiro causada pela chegada à escola de um grande contingente de alunos oriundos de diversas classes sociais, em particular a partir da Lei de Diretrizes e Bases de 1971 (Souza, 2012). Isso levou à escola a complexa diversidade sociolinguística do Brasil, que até então se havia decidido ignorar. Nesse contexto, observam-se críticas ferrenhas à perspectiva tradicional do ensino da gramática normativa, como as feitas por Franchi (1991 [1978]; 2006) e Geraldi (2013 [1991]).

Antunes (2003), no livro Aula de Português: encontro & interação, lista características criticáveis do ensino gramatical de viés tradicional, entre elas as constatações de que as atividades em torno da gramática dão-se pelo ensino de

uma gramática descontextualizada, amorfa, da língua como potencialidade; gramática que é muito mais “sobre a língua”, desvinculada, portanto, dos usos reais da língua escrita ou falada na comunicação do dia a dia;

uma gramática fragmentada, de frases inventadas, da palavra e da frase isoladas, sem sujeitos interlocutores, sem contexto, sem função; frases feitas para servir de lição, para virar exercício; [...]

uma gramática voltada para a nomenclatura e a classificação das unidades; portanto, uma gramática dos “nomes” das unidades, das classes e subclasses dessas unidades (e não das regras de seus usos); […]

uma gramática inflexível, petrificada, de uma língua supostamente uniforme e inalterável, irremediavelmente “fixada” num conjunto de regras que, conforme constam nos manuais, devem manter-se a todo custo imutáveis (apesar dos muitos usos contrários), como se o processo de mudança das línguas fosse apenas um fato do passado; […]

uma gramática predominantemente prescritiva, preocupada apenas com marcar o “certo” e o “errado”, dicotomicamente extremados, como se falar e escrever bem fosse apenas questão de falar e escrever corretamente, não importando o que se diz, como se diz, quando se diz, e se se tem algo a dizer (Antunes, 2003, p. 31-33).

Com o passar dos anos, observou-se a redução do espaço reservado ao ensino gramatical na aula de Português. Ao analisar os documentos oficiais sobre o ensino de Língua Portuguesa, Souza (2012, p. 686) observa que,

nos Parâmetros, o estudo gramatical ocupa um lugar marginal na prática do ensino de língua materna. Esse lugar à margem se caracteriza pelo uso da reflexão sobre a língua como instrumento para melhorar o desempenho linguístico dos alunos (“imprimir maior qualidade ao uso da linguagem”, MEC, 1997; “um exercício para o falar/escrever/ler melhor”, MEC, 2000). Condena-se aí explicitamente a prática “habitual” da “fala da e sobre a linguagem como se fosse um conteúdo em si”; condena-se a “gramática fora de contexto”.

Em razão desse processo de crítica e consequente enfraquecimento do ensino gramatical normativo-prescritivo, sem ocorrer, no entanto, a consolidação na prática escolar de uma proposta que substituísse o modelo tradicional, houve um movimento de esvaziamento do ensino gramatical nas escolas. Souza (2012) analisa esse processo de mudanças ocorridas entre os anos 1980 e 1990. Ao que lhe parece, houve não só abandono da prática de ensino gramatical normativo-prescritiva como o abandono de todo tipo de trabalho gramatical nas escolas (Souza, 2012, p. 686).

Nesse panorama de valorização da criatividade e incessante busca pela renovação das práticas de ensino de Língua Portuguesa, em especial aquelas voltadas à gramática, as ideias do professor e linguista Carlos Franchi (1932-2001) surgem como importantes contribuições na construção de uma práxis voltada ao aspecto criativo da linguagem. Franchi (1991 [1978]) busca articular o trabalho gramatical com a produção e a interpretação de textos, preocupando-se sempre com as relações entre a gramática e a criatividade. É preciso que se (re)criem condições de um comportamento criativo na linguagem, pois, segundo o autor,

acreditou-se que a criatividade estava só em outro lugar que não na linguagem verbal. Nas manifestações gestuais, na expressão corporal, no desenho livre etc. Aceitou-se por comodismo e muito sem refletir que a língua e a gramática fossem mesmo um lugar de opressão e regra (Franchi, 1991 [1978], p. 7).

Opondo-se a tal perspectiva, o autor afirma que “a criatividade é sempre um atributo do comportamento verbal” (Franchi, 1991 [1978], p. 12). Sendo assim, este artigo visa realizar uma pequena revisão bibliográfica dos escritos de Carlos Franchi (1991 [1978]; 1992; 2006). Em um primeiro momento, discutir-se-á a concepção de linguagem do autor, pois ela explica muito de suas ideias sobre gramática e criatividade. Em seguida, analisar-se-ão os conceitos de criatividade. Por último, as ideias sobre gramática e ensino gramatical serão abordadas. Este artigo objetiva construir observações iniciais sobre um autor que, a despeito de possuir reduzido número de publicações, deixou-nos reflexões que ainda hoje são importantes e atuais.

Uma concepção de linguagem

Não pretendemos aqui expor todas as faces e implicações do conceito de linguagem no pensamento de Carlos Franchi, mas situar alguns traços relevantes de sua perspectiva com finalidade de contextualização, pois a concepção de linguagem do teórico embasará suas concepções de gramática e de criatividade.

Franchi (1992 [1977]), em seu célebre artigo Linguagem – atividade constitutiva, publicado pela primeira vez em 1977, sustenta uma concepção de linguagem que evita reduzi-la a um papel meramente instrumental (Franchi, 1992). Segundo ele, abordagens que se comportam diante da linguagem como diante de uma instituição, como a de Ferdinand Saussure, contribuem para restringir o conjunto das formas da língua sobre o qual o sujeito efetua suas opções linguísticas expressivas. “Tomar, porém, a linguagem por essa via não permite ao estudioso ultrapassar as regularidades condicionadas por certas convenções e submetidas a um normativismo exterior” (Franchi, 1992, p. 10).

Embora considere o aspecto aparentemente paradoxal da linguagem verbal, que em si mesma carrega impulsos de mudança e de conservação, Franchi enfatiza o caráter criativo e dinâmico da linguagem humana, opondo-se à perspectiva conservadora da gramática de sua época (e não da nossa?). Segundo o linguista,

certamente a linguagem se utiliza como instrumento de comunicação, certamente comunicamos por ela aos outros nossas experiências, estabelecemos por ela, com os outros, laços “contratuais” por que interagimos e nos compreendemos, influenciamos os outros com nossas opções relativas ao modo peculiar de ver e sentir o mundo, com decisões consequentes sobre o modo de atuar nele. Mas, se queremos imaginar esse comportamento como uma “ação” livre e ativa e criadora, suscetível de pelo menos renovar-se ultrapassando as convenções e as heranças, processo em crise de quem é agente e não mero receptáculo da cultura, temos então de apreendê-la nessa relação instável de interioridade e exterioridade, de diálogo e solilóquio: antes de ser para a comunicação, a linguagem é para a elaboração; e antes de ser veículo de sentimentos, ideias, emoções, aspirações, a linguagem é um processo criador em que organizamos e informamos nossas experiências (Franchi, 1992, p. 25).

Ao ler o famoso ensaio Gramática e Criatividade, de Franchi, Moura (1992) observa:

Esta é uma das principais ideias do artigo: a linguagem deixa caminhos abertos à expressão. Suas regras não têm caráter coercitivo; elas apenas indicam possibilidades expressivas. Então por que não estudar as estruturas linguísticas, se através delas podemos expressar melhor nosso ponto de vista, formar nossa própria interpretação do real? (Moura, 1992, p. 99).

A observação de Moura (1992) contribui para a compreensão de que Franchi considera em todo momento a existência e a importância das “regras da linguagem” (da gramática em sentido não normativo-prescritivo), mas as relaciona às possibilidades de trabalho linguístico e não a um uso prescritivo do que seria considerado correto. Para Franchi (1992, p. 26),

dizer assim nos lembra Chomsky (pelo menos em parte): a linguagem não é esse sistema de caráter aberto, público e universal, porque se adapta à multiplicidade das situações comunicativas; ela é um sistema aberto e criativo e, por isso, disponível ao atendimento das necessidades e intenções das mais variadas condições de comunicação. Se fosse ao contrário, a linguagem seria a história do homem, quando, além disso, ela a faz, reformulando e reelaborando os sistemas de referência para a ação humana.

Aqui é preciso efetuar uma observação: Carlos Franchi fala de uma “criatividade na linguagem” em um sentido mais amplo que o atribuído por Chomsky. Segundo ele, deve-se deixar isso anotado, pois não se deseja que a referência a Chomsky leve a apagar os limites que o gerativista norte-americano fixou para a noção de criatividade. Franchi esclarece, assim, que a criatividade que adota é abrangente, sendo os procedimentos recursivos representações parciais dessa criatividade linguística mais ampla (Franchi, 1992, p. 26).

As assertivas encontradas em Franchi (1992) em alguns aspectos podem parecer “anárquicas” em razão da força disruptiva que possuem. Segundo ele, por exemplo, não podemos reduzir a atividade linguística a um “pensar” e “significar” lógicos, pois

a linguagem informa também um “pensar” e “significar” analógicos, que não exigem a equivalência nem a transitividade, mas suportam o devaneio sem volta das similitudes e da metáfora, sem quadros fixos de valores, sem limites categoriais precisamente impostos, sem necessidades de conclusões. Ela não toma, necessariamente, um sempre mesmo sistema de coordenadas, o mesmo referencial: pode constituir o seu próprio eixo provisório para o reconhecimento e a identificação, pode ultrapassar o sistema factual de referências estendendo os sistemas que constrói a indefinidos universos possíveis, imagináveis. Pensamos que se tem privilegiado (por sua aproximação às linguagens restritas dos sistemas formais) como instrumento de regularização e de normalidade, limitando-se a sua virtualidade, quando um de seus aspectos (essencial) é o de prestar-se eficazmente à subversão das categorias e valores, à expressão da “esquizofrenia” que cria universos encantados, poemas, teorias (Franchi, 1992, p. 27, grifos nossos).

Sendo assim, para esse autor, “não há nada imanente na linguagem, salvo sua força criadora e constitutiva” (Franchi, 1992, p. 31). Para ele,

a linguagem, pois, não é um dado ou resultado; mas um trabalho que “dá forma” ao conteúdo variável de nossas experiências, trabalho de construção, de retificação do “vivido”, que ao mesmo tempo constitui o sistema simbólico mediante o qual se opera sobre a realidade e constitui a realidade como um sistema de referências em que aquele se torna significante (Franchi, 1992, p. 31-32).

Um resumo valioso da perspectiva de Franchi sobre a linguagem encontramos em Almeida (2002, p. 113):

Rejeitando toda redução da linguagem a um sistema formal, Franchi mostra que a linguagem, na medida em que “dá forma”, é uma atividade quase-estruturante, mas não necessariamente estruturada, quer dizer, uma organização estável de categorias, “o instrumento de uma prática primitiva de estruturação dos fatos da experiência, de revisão e reformulação” (1992, p. 32), […] um dos aspectos fundamentais da linguagem, que é o de ser um meio de revisão de categorias e de criação de novas estruturas, um instrumento próprio de contínua retificação de todo o anteriormente organizado (Almeida, 2002, p. 113).

O espaço da criatividade no uso da língua

Crítico do ensino gramatical tradicional, Franchi (1991 [1978]) busca renovar as concepções de gramática e os meios para ensiná-la recorrendo, entre outros saberes teóricos, ao conceito de “criatividade”. Segundo ele, a criatividade não é uma “inspiração”, uma “sublimação” do mundo das regras, um mundo “estruturado”, mas uma atividade que trabalha com regras e se insere em práticas que supõem a existências de regras (Moura, 1992, p. 98).

E tais regras existem porque a atividade humana (em praticamente todas as áreas) é uma prática social, compartilhada. Ora, uma prática social sempre pressupõe regras, ou, em outros termos, uma relação intersubjetiva. Só na relação de sujeito para sujeito […] que as práticas adquirem significação, seja na vida social, na arte ou na ciência.

Como comentado no tópico anterior, a criatividade em Franchi (1991) não se restringe à noção chomskiana. A ideia de que a criatividade vincula-se a “opções” é crucial no pensamento de Franchi (1991), como se nota a seguir:

[A criatividade] não tem, enquanto processo, um domínio privilegiado: está nas artes, nas ciências, nas várias formas de representação e organização das experiências, na seleção dos materiais ou dos instrumentos adequados ao trabalho e aos propósitos que lhe atribuímos. Está onde se dão possibilidades de opção, mesmo a de optar pela opção dos outros (Franchi, 1991, p. 12, grifos nossos).

A linguagem é mais que uma atividade de reprodução e ativação de esquemas prévios, é um trabalho de reconstrução que envolve “optar sobre um feixe de possibilidades de expressão”, isto é, envolve sempre atos linguisticamente criativos Segundo Franchi (1991, p. 12),

essa atividade do sujeito está assegurada em dois polos. Em primeiro lugar, as línguas naturais não são sistemas tão sistemáticos como pensaram os estruturalistas: cada ato de fala é sempre um ato de opção sobre um feixe de possibilidades de expressão que o sujeito correlaciona às condições variáveis da produção do discurso. Em segundo lugar, as regras da linguagem não possuem, no geral, uma necessidade biológica ou lógica: sua regularidade tem um fundamento social e antropológico e a obediência a elas tem um fundamento funcional. Por isso essas regras podem ser alteradas, sobretudo quando o sujeito investe de significação recursos expressivos não necessariamente "catalogados" ou "codificados".

Em seu trabalho Gramática e criatividade, o linguista defende que existe criatividade no nível da construção das expressões que elaboramos, nos diferentes pontos de vista e perspectivas que adotamos para representar os eventos ou processos, organizar os aspectos da realidade que descrevemos, orientar nossa argumentação e expressar nossas atitudes, nos processos pelos quais estendemos, pela analogia ou pela metonímia, esquemas relacionais, sintáticos e semânticos e, no limite, nas rupturas sobre o "codificado" e nas manipulações do próprio material da linguagem, investindo-o de significação própria (Franchi, 1991).

Concepção de “criatividade linguística” semelhante encontramos no trabalho de Inês Duarte (2000), no qual a autora afirma que, ao falar de criatividade (linguística), está se referindo a um conceito que não é sinônimo de imaginação ou originalidade, pois “antes designa uma propriedade do uso da língua ancorada no desenho da linguagem humana” (Duarte, 2000, p. 107). No decorrer do artigo de Duarte, a concepção de criatividade linguística que acreditamos dialogar com a de Franchi (1991) torna-se evidente não só pelas fontes teóricas (ambos evocam os escritos de Noam Chomsky) como também pelos exemplos que fornecem. Em Duarte (2000), encontram-se menções à criatividade no nível sintático da língua, no nível morfológico, no que diz respeito ao processo de formação de palavras, no nível lexical, incluindo neste nível a metáfora, a metonímia e a sinédoque. Para a autora,

de uma maneira mais geral, é igualmente a criatividade linguística que está em jogo ao selecionarmos um dado registro ou estilo em função da situação e da nossa relação com os restantes na interacção, e ao escolhermos o vocabulário que melhor se adéqua ao assunto da interacção verbal (Duarte, 2000, p. 118).

Nota-se que, assim como Franchi (1991), Duarte relaciona criatividade a “escolhas e seleções”. Para Franchi, a criatividade é sempre um atributo do comportamento verbal, pois todo ato linguístico “é sempre um ato de opção sobre um feixe de possibilidades de expressão que o sujeito correlaciona às condições variáveis da produção do discurso” (Franchi, 1991, p. 12). Para esse autor, reservar o comportamento criativo aos aspectos da linguagem figurada, da ficção e da poética trata-se de uma visão parcial da realidade, uma redução. Esses processos certamente são criativos em certo sentido de criatividade, observa Franchi, mas há atividade criativa mesmo quando a linguagem se sujeita a suas próprias regras e na construção das expressões mais simples de nossos atos comunicativos (Franchi, 1991, p. 13).

Uma proposta de trabalho com a gramática

No artigo intitulado Mas que é mesmo ‘Gramática’?, Franchi (2006) discorre brevemente sobre algumas definições de gramática. A gramática normativa, segundo ele, é “o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores” (Franchi, 2006, p. 16, grifo do autor). Em seguida, define-se a gramática descritiva como um “um sistema de noções mediante as quais se descrevem os fatos de uma língua, permitindo associar a cada expressão dessa língua uma expressão estrutural e estabelecer suas regras de uso, de modo a separar o que é gramatical do que não é gramatical” (Franchi, 2006, p. 22). E, por fim, descreve-se a gramática interna (de natureza biológica e psicológica) como aquela que “corresponde ao saber linguístico que o falante de uma língua desenvolve dentro de certos limites impostos pela sua própria dotação genética humana, em condições apropriadas de natureza social e antropológica” (Franchi, 2006, p. 25).

Afastando-se da concepção de gramática normativa em direção às concepções “descritiva” e “interna”, Franchi (1991) define a gramática como o estudo das condições linguísticas de significação, como uma resposta sistemática e, quanto possível, explícita, à questão fundamental: “por que e como (e para quem e quando...) as expressões das línguas naturais significam tudo aquilo que significam” (Franchi, 1991, p. 32). Isto é, a prática pedagógica da gramática deve propiciar aos alunos a compreensão de como os recursos expressivos (sintáticos, morfológicos, fonológicos) condicionam e possibilitam as diversas formas de significar a realidade (Moura, 1992, p. 99), e aí reside o aspecto criativo da prática gramatical. Para Franchi, as regras gramaticais “não são uma bitola estreita, mas uma multiplicidade de caminhos, abertos à opção e mesmo à revisão e à violação” (Franchi, 1991, p. 39).

Segundo Souza (2012, p. 687),

a visão desse autor sobre o trabalho com gramática na escola está muito longe da prática tradicional, que tinha como fundo a preservação de uma determinada norma: é um trabalho de desenvolvimento de potencialidades, de apuração de capacidades, e, até, de autodescoberta. Mas não deixa de ser um trabalho de Reflexão Gramatical, e com letra maiúscula – o que só deve surpreender àqueles que, nas palavras do próprio autor, ainda concebem a gramática “de um modo estreito e restrito”, uma prática em que “estão em jogo somente questões de segmentação, descoberta de traços categoriais, classificações e nomenclatura”.

Franchi (1991) opõe-se ao trabalho gramatical de viés tradicional, pois, para ele, nesse exercício escolar “puramente classificatório se distancia o aspecto fundamental da atividade de caráter gramatical que consistiria em compreender os diferentes processos pelos quais o sujeito atua linguisticamente” (Franchi, 1991, p. 22). Segundo ele, “a tarefa fundamental do trabalho gramatical na escola é propiciar aos alunos oportunidades para operarem sobre a linguagem” (Souza, 2012, p. 689). Sendo assim,

interessa pouco descobrir a melhor definição de substantivo ou de sujeito ou do que quer que seja. No plano em que se dá a análise escolar, certamente não existem as boas definições. Seria mais fácil fazê-lo em uma teoria formal que em uma análise que tateie somente pela superfície das expressões. Mas interessa, e muito, levar os alunos a operar sobre a linguagem, rever e transformar seus textos, perceber nesse trabalho a riqueza das formas linguísticas disponíveis para suas mais diversas opções. Sobretudo quando, no texto escrito, ele necessita tornar muitas vezes conscientes os procedimentos expressivos de que se serve. Com isso, parece-me, reintroduz-se na gramática seu aspecto criativo: o que permite ao falante compreender, em um primeiro passo, os processos diferenciados de construção das expressões para, depois, um dia, e se for o caso, construir um sistema nocional que lhe permita descrever esses processos, falar deles, em uma teoria gramatical (Franchi, 1991, p. 20).

Os sentidos atribuíveis às construções linguísticas devem se transformar no foco da análise gramatical, a qual, por si só, é repleta de “criatividade”, pois lida sempre com possibilidades. Para Souza (2012, p. 690), “a reflexão sobre a relação entre a criatividade e limitações estruturais pode ser chamada de gramática”. Isto é, a gramática está no âmbito das possibilidades estruturalmente cabíveis em uma língua natural, mas, ao mesmo tempo, não é “restritiva” nem “limitante”, e sim condição de criatividade, pois permite

que o homem, baseado em suas próprias experiências, “possa viajar a universos inimagináveis”, criando e recriando expressões em seu sentido próprio. A gramática é, pois, um sistema aberto a uma multiplicidade de escolhas, que permite ajustar as expressões às intenções e propósitos significativos do locutor e marcar, em cada texto, o estilo pessoal e não menos expressivo (Clare, 2014, p. 38).

Para Carlos Franchi, a prática de ensino gramatical no Ensino Fundamental deveria restringir-se aos estudos linguísticos e epilinguísticos. Ou seja, ao trabalho com a linguagem, por vezes, de modo intuitivo, sem haver uma explicitação técnica sobre os fenômenos linguísticos (estudos metalinguísticos). O autor exemplifica sua abordagem com alguns exercícios gramaticais de análise e reelaboração de frases, dos quais retiramos o exemplo a seguir.

O jardim [estava florido; floria; florescia] o ano inteiro, porque (os habitantes) [tinham cuidado; cuidaram; se cuidara] de plantá-lo com espécies variadas, comuns nas [pequenas praças; pracinhas] das cidades brasileiras (Franchi, 1991, p. 30, adaptado).

Como forma de sintetizar a análise feita até este momento, citamos Franchi (1991):

O colega leitor pode estar perguntando-se o que tem a ver tudo isso [os exercícios apresentados] com "gramática". Se, de fato, está perguntando, ainda não percebeu o que é fundamental na descrição gramatical: estudar a variedade dos recursos sintáticos expressivos, colocados à disposição do falante ou do escritor para a construção do sentido. Repetindo, gramática é o estudo das condições linguísticas da significação. É uma resposta sistemática e, quanto possível, explícita, à questão fundamental a que já nos referimos neste texto e no início deste item: por que e como (e para quem e quando...) as expressões das línguas naturais significam tudo aquilo que significam! (Franchi, 1991, p. 32).

Considerações finais

Em tempos de valorização da capacidade criativa, torna-se importante reler autores que estudaram a interseção entre os conceitos de criatividade e linguagem verbal. As ideias de Carlos Franchi constituem um arcabouço teórico ainda muito atual e importante para as discussões sobre gramática, linguagem e ensino de Língua Portuguesa. Como analisado neste artigo, a linguagem para esse autor não é uma atividade estruturada, fechada e estável, mas um instrumento de uma prática de estruturação dos fatos da experiência, de revisão, de reformulação e de criação de novas estruturas. É um processo criador em que organizamos e informamos nossas experiências e um modo de reformular e reelaborar os sistemas de referência para a ação humana (Franchi, 1992).

Constatamos que, em Franchi (1991), a gramática é definida como o estudo da “variedade dos recursos sintáticos expressivos, colocados à disposição do falante ou do escritor para a construção do sentido”. Em toda prática linguística, assim como em toda análise gramatical, existe um fator criativo que se pode chamar de “criatividade linguística”.

Para Franchi, a noção de criatividade não se restringe àquela elaborada por Noam Chomsky; também não se confunde com recursividade linguística, pois essas concepções estariam “dentro” da noção mais abrangente de criatividade construída por Franchi. Para esse linguista, existe criatividade sempre que há seleção dentro de um campo de opções. Por isso, fala-se que todo ato linguístico é criativo, pois é sempre realizado sob um feixe de opções linguísticas gramaticalmente possíveis.

Sua proposta de ensino gramatical apoia-se nessas concepções para direcionar o estudo da gramática para a análise das múltiplas estruturas e recursos sintáticos expressivos da língua, que são naturalmente colocados à disposição do falante ou do escritor para a construção de sentido em todo ato linguístico. Isto é, o papel do ensino da gramática seria analisar “por que e como (e para quem e quando...) as expressões das línguas naturais significam tudo aquilo que significam” (Franchi, 1991, p. 32), pois, quando se opta por um elemento linguístico-gramatical (morfológico, sintático, pragmático etc.) dentro de um feixe de opções linguísticas, opta-se também por um caminho de sentidos, intenções e efeitos.

Referências

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Publicado em 09 de março de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

PAES, Washington Elias; SILVA, Carlos Mágno Domás da. As ideias do linguista Carlos Franchi: linguagem, gramática e criatividade. Revista Educação Pública, v. 21, nº 8, 9 de março de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/8/as-ideias-do-linguista-carlos-franchi-linguagem-gramatica-e-criatividade

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