Um diálogo entre a dança e a Psicomotricidade: a importância do professor em sala de aula

Ingrid de Melo Labeta

Especialista em Neurociência Pedagógica (AVM), pós-graduanda em Neuropsicomotricidade (AVM), professora, ensaiadora e bailarina licenciada em Dança (UCAM)

A Psicomotricidade tem como característica o fazer incluir o indivíduo por meio lúdico-educativo. A dança nesse cenário por vezes entra como intensificadora das potências do corpo, criando conceitos que impulsionam a produção de um corpo que dança num espaço dançado por ele (dialético). Essa inter-relação do corpo que dança no espaço acaba por não se limitar a um meio externo, sequer a um espaço interno subjetivo. A relação da dança – com todo o seu arcabouço essencial de ser/fazer dança – e o espaço, visando a construção de um processo, se indissocia do corpo que dança.

A dança, em parceria a uma prática psicomotora, portanto, pode estruturar uma prática que contribua significativamente para a consciência do corpo em relação ao mundo, atuando diretamente em aspectos que podem colaborar para o desenvolvimento do indivíduo. A dança, por envolver formas variadas de expressão e comunicação, se torna parte integrante e fundamental em processos que implicam o cotidiano do ser humano, tanto com relação a aspectos motores quanto afetivos e sociais, além de colaborar para os espaços educativos. Diante dessas colocações, a atuação do profissional com conhecimentos psicomotricistas pode contribuir positivamente para o aprendizado do indivíduo de modo que, como agente facilitador, gere condições e resultados no diálogo ensino-aprendizagem por meio da experimentação pelo corpo.

São muitos os desafios enfrentados pela educação dentro do cenário atual, em que se depara desde o revisionismo até de fato o desmonte que ocorre na educação pública. O papel do(a) professor(a) não deveria recair para uma discussão restrita se a Psicomotricidade ou a Dança obviamente são duas fontes de riqueza de conhecimentos, sabedorias e de fácil compreensão da razão para ser tão necessário haver esses profissionais nos ambientes escolares hoje. Mas o papel do(a) professor(a) precisa ser discutido como sendo um(a) professor(a) no contexto em que está inserido, apesar de qualquer que seja a sua especialidade.

No entanto, por que a Psicomotricidade e as artes acabam sendo bastante solicitadas nas escolas, principalmente para atuar diretamente contra perturbações psicomotoras? De fato, poderia ser apontada aqui uma série de problemas presentes no sistema brasileiro, sistema este dentro e fora das pautas sobre a educação, porém que, mesmo assim, impactam a sociedade. Nessa perspectiva, em concordância com a concepção dialética de Vygotsky, não existe uma natureza humana apartada do meio (Neves; Damiani, 2006).

Por outro lado, há uma pesquisa de 2014/2015 disponível pelo IBGE com dados do PNAD mostrando que 123 milhões de pessoas não praticavam atividades esportivas; das pessoas entrevistadas, 38,2% justificaram com falta de tempo e 35% disseram não gostar ou não querer. Entre os que alegaram não gostar ou não querer estavam 57,3% de adolescentes entre 15 e 17 anos. Esses dados nada falam diretamente sobre a Psicomotricidade, tampouco sobre a dança, mas alertam sobre corpos que pouco se movimentaram, corpos também presentes na escola. Cinco anos após a pesquisa, o mundo está passando por uma pandemia e esses corpos estão ainda mais limitados e tomando como aprendizado, quando é possível possuir um equipamento eletrônico, apenas simulações da vida por meio virtual e conteúdos digitalizados. Tanto a Psicomotricidade quanto a Dança concordam que o movimento é de fundamental importância no desenvolvimento físico, intelectual, emocional. Concordam também sobre o papel do professor como facilitador do desenvolvimento da capacidade de aprender, de modo que ofereça situações e estímulos variados, proporcionando experiências concretas e plenamente vividas por meio do corpo. Com isso aumenta a responsabilidade dos profissionais que trabalham diretamente com esse corpo; entretanto, não se pode deixar de destacar que as escolas públicas não possuem sempre esses profissionais. Portanto, a prática educativa-crítica defendida por Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia deve (re)aparecer de modo que essa exploração do conhecimento ocorra também pelo movimento e se faça pensar na correlação entre educação e liberdade.

Para Aquino, Alves e Bolchat (s/d), o movimento "estimula a respiração e a circulação de modo que nutre as células e promove a eliminação de detritos celulares". Os autores trazem também outro ponto fundamental do movimento: permitir a exploração do mundo exterior por meio de experiências concretas sobre as quais são construídas as noções básicas para o desenvolvimento intelectual.

Com base nessas duas afirmações e debruçado no movimento de maneira especial, é visto que por meio dele há uma infinitude de possibilidades de aprendizagens e, consequentemente, de desenvolvimento de habilidades corporais, cognitivas, afetivas e sociais, de forma que o corpo, o movimento e os gestos são fundamentais para a formação humana. Uma prática pedagógica humanizadora não pode permitir assistir um corpo estático, inerte, indolente nos mais variados ambientes educativos.

Em um corpo vivido, pelo movimento, é possível explorar o mundo que o cerca. É por meio da exploração que o indivíduo constrói conhecimentos sobre os objetos, os ambientes e as pessoas que estão no seu entorno, permitindo compreender as relações que é possível estabelecer com eles e aprender sobre seus limites pessoais e interpessoais.

O filósofo José Gil traz um trecho em seu livro Movimento total (2002, p. 86) em que disserta sobre o gesto e o sentido em sua discussão sobre o corpo e a dança que pode caber quando nos é colocada a função de estimular, interferir, quando necessário, e observar esse corpo que se movimenta e aprende por meio dele: 

Os movimentos de transição do corpo não são próprios apenas da dança: encontram-se em todos os movimentos e gestos da vida comum. Mas a dança transforma-os, condensando-os e concentrando-os quando se achavam dispersos, conectando-os diretamente quando entravam em sequências narrativas ao serviço de movimentos significativos, ampliando-os quando eram imperceptíveis na vida, pondo-os no próprio centro do movimento dançado. Em suma, a dança ordena esses movimentos numa gramática semântica: a dança dança essa gramática.

Posteriormente, na mesma página, José Gil afirma que é certo que os gestos tendem a construir-se como signos, embora não o consigam por completo. Em seguida, faz uma reflexão que pode ser entendida como uma das razões pelas quais a dança é utilizada como atividade contribuinte a uma ação educativa/psicomotora:

Os gestos dançados, enquanto signos sobrearticulados e de imediato dotados de sentido, ordenam-se numa coreografia cujo nexo apresenta um sentido, não significações (Gil, 2002, p. 86).

É de fácil compreensão e, por isso, essencial entender a importância da participação desse profissional capacitado para acompanhar o processo, uma vez que a Dança não diz respeito apenas a um aprendizado pelo movimento e pelo exercício, mas carrega em si própria a possibilidade de o profissional mediar ou o expectador que o aprecia fazer uma leitura profunda desses quase-signos permeados de sentido.

Relvas (2017, p. 70-71) afirma que educar é uma tarefa complexa que requer competência e dedicação dos educadores, dentre diversos  fatores. Destaca a importância de aulas participativas e do conhecimento do professor sobre o funcionamento do cérebro cognitivo, emocional e motor sem ter omitido nas suas sugestões a importância da promoção de atividades corporais usando a dança e a música (p. 71). Certamente Relvas não estava ditando a predileção a um ensino baseado e estruturado a partir da dança, mas também não dá um sentido que negue a sua feliz contribuição dentro de um processo educacional, assim como a psicomotricidade. Mosé (2018, p. 120-121) traz uma reflexão a respeito da linguagem como "um processo de simplificação, de redução da vida que é multiplicidade, para um conjunto reduzido de códigos" direta ou indiretamente; linguagem, vivência, comunicação são palavras que reduzem ou simplificam a vida que nada mais é que um corpo vivido, em movimento, estado fundamental para haver aprendizagem.

Se a palavra fosse o rastro de uma experiência vivida, ou seja, se cada palavra dita remetesse ao universo móvel que lhe deu origem, não conseguiríamos dizer mais do que poucas palavras por dia, e a palavra não seria possível, a não ser como magia ou como arte (Mosé, 2018, p. 121).

Sobre a arte, Mosé (2018, p. 103-107), com base nos escritos de Nietzsche, traz afirmações para a atividade como instintiva, inconsciente, criadora, metafórica, fisiológica, orgânica, como vontade de potência, como processo interpretativo contínuo, como condição do próprio intelecto, da imaginação ser uma faculdade essencial da razão, dentre outros, mas que em todos os pontos faz-se refletir sobre esse movimento, às vezes lúdico, participar diretamente do processo de desenvolvimento humano.

A dança, dissociada de qualquer interferência, a partir da sua essência instintiva, inconsciente, está para além da institucionalização e definição de obra, mas na organicidade humana. A arte humana pode ser compreendida como a apropriação criadora do estado de ser, nascida da imprecisão e da incerteza da razão de se viver, um produto da vontade de se perceber no mundo.

Mosé (2015, p. 21) não hesitou em iniciar seu texto dando destaque à frase "proletários de todo o mundo, uni-vos" afirmando que, com esta, ocorreu uma das maiores transformações sociais e econômicas no século XX. Também trouxe outro ponto bastante presente em mesas sobre Educação, que é do saber ser desde sempre sinônimo de poder e ter sido por meio de uma consciência política, o primeiro acesso ao conhecimento obtido pelas classes populares. Por ela foi dito que fazer pensar foi "a grande arma do marxismo, o acesso ao saber, por meio do estímulo ao pensamento argumentativo e à consciência crítica". O marxismo presenteia-nos também com o termo "práxis", sendo ele uma compreensão dialética entre teoria e prática, não havendo qualquer incomunicação ou separação entre elas (Engels; Marx, 2007).

Oliveira (2014, p. 17) afirma que a função do sistema nervoso é selecionar e processar as informações, canalizá-las para regiões motoras correspondentes do cérebro e posteriormente emitir respostas adequadas de acordo com a vivência e a experiência do indivíduo. Entretanto, de acordo com a mesma autora, (2014, p. 26), o movimento pelo movimento não leva a nenhuma aprendizagem; talvez esse ponto seja o que mais pode traduzir o papel e a responsabilidade do(a) professor(a) nesse contexto de facilitador para estudantes com e/ou sem qualquer tipo de deficiência. Oliveira (2014, p. 26) continua sua reflexão dizendo ser necessário e fundamental que o estudante deseje, reflita e analise seus movimentos por meio de uma interiorização para que seja possível atingir uma aprendizagem significativa de si e de suas possibilidades.

O trabalho do(a) professor(a) começa antes da sala de aula. Não é possível pensar no fazer pedagógico sem considerar a realidade social do educando que está inserido num processo histórico e cultural. Só a partir do conhecimento dos seus discentes é possível planejar e propor atividades, questionando o que, o por que e para quê realizar cada uma delas, atuando como facilitador desse processo para uma instrução que estimule a criatividade, a autonomia, a relação com o outro e a consciência crítica sobre o meio, de forma que favoreça a identificação de questões, o levantamentos de hipóteses e reflexões sobre situações relacionadas ao fazer e ao pensar, ou seja, proporcionando uma aprendizagem significativa, provocativa às modificações do nosso comportamento na sociedade.

O objetivo da Psicomotricidade, para Bueno (1998, p. 19 apud Aquino; Alves; Bolchat, s/d), é fazer do indivíduo um ser de comunicação, de criação e um ser de pensamento operativo; a Psicomotricidade leva em conta o aspecto comunicativo do ser humano, do corpo e da gestualidade. Nesse sentido, a observação, a investigação e a reflexão por meio do corpo e a experiência com ele permite se fazer conhecer a si, ao outro e ao mundo. Portanto, a dança torna-se uma das artes com ricas possibilidades de experiências e estímulos para esse cenário. Contudo, o diálogo entre a Dança, a Psicomotricidade e a Neurociência tem proporcionado saberes e novos conhecimentos que podem contribuir para os processos metodológicos no ensino, sem haver ideia de sobreposição de uma área em relação à outra. Cada uma carrega em si competências semelhantes e distintas, porém, se somadas, contribuem para um aprendizado eficaz e significativo.

Referências

AQUINO, A. G. T.; ALVES, F. M. O.; BOLCHAT, L. M. R. Educação Psicomotora. Rio de Janeiro: AVM/Ucam (s/d).

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

GIL, José. Movimento total. São Paulo: Iluminarus, 2002.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Falta de tempo e de interesse são os principais motivos para não se praticar esportes no Brasil. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/15128-falta-de-tempo-e-de-interesse-sao-os-principais-motivos-para-nao-se-praticar-esportes-no-brasil. Acesso em: 16 nov. 2020.

MOSÉ, Viviane. Nietzsche hoje: sobre os desafios da vida contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2018.

______. A escola e os desafios contemporâneos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

NEVES, R. A.; DAMIANI, M. F. Vygotsky e as teorias da aprendizagem. UNIrevista, São Leopoldo, v. 1, nº 2, p. 1-10, 2006.

OLIVEIRA, G. C. Psicomotricidade: educação e reeducação num enfoque psicopedagógico. 19ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

RELVAS, M. P. A Neurobiologia da aprendizagem para uma escola humanizadora: observar, investigar e escutar. Rio de Janeiro: Wak, 2017.

Publicado em 09 de março de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

LABETA, Ingrid de Melo. Um diálogo entre a dança e a Psicomotricidade: a importância do professor em sala de aula. Revista Educação Pública, v. 21, nº 8, 9 de março de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/8/um-dialogo-entre-a-danca-e-a-psicomotricidade-a-importancia-do-professor-em-sala-de-aula

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