Desconstruindo as falácias do negacionismo e das fake news: um manual para professores do Ensino Médio
Isabel Cristina Weisz
Licenciada e mestra em Língua Portuguesa (PUC-SP), pedagoga com múltiplas especializações, pós-graduanda em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem (PUC-RS)
Vivemos a Era do Epistemicídio. Ele é colocado em prática por meio da eliminação, do “assassinato” de espaços de discussão válida, bem-intencionada, construída à base de diálogos de mão dupla para se chegar a um novo conhecimento. Atualmente, a “ordem do dia” é a lavagem cerebral realizada de maneira profissional para fins políticos, ideológicos, financeiros e geopolíticos tendo como veículo as principais mídias sociais da web. A palavra escrita é o principal instrumento utilizado para a execução de tal fraude.
Assim, por meio da elucidação de um gênero de engodo argumentativo chamado falácia, este artigo visa oferecer material para que professores e demais interessados no processo educativo possam identificar fake news e discursos negacionistas.
Origem do termo falácia
Dadas a extensão e a complexidade do tema, este artigo não objetiva enfocá-lo de maneira exaustiva e sim oferecer subsídios para que tanto os professores – especialmente os de Filosofia e os de Língua Portuguesa (naquilo que tange à produção e análise textual) – possam trabalhar a questão das fake news e do negacionismo científico, lamentavelmente tão presentes e atuantes em nossa sociedade atual.
Por conseguinte, iniciamos nosso trabalho explicando que ainda não existe uma teoria geral e definitiva que dê conta de conceituar o termo falácia. Segundo Vega (2013), a obra que iniciou o estudo moderno do assunto data de 1970. Chama-se Fallacies, de Charles L Hamblin.
Já no início deste estudo desejamos esclarecer que o vocábulo falácia é aqui empregado e analisado somente como prática presente no gênero discursivo, visto que tal expressão também é empregada de maneira genérica, referindo-se a manobras de distração e a toda uma gama de outras atitudes que tenham por objetivo confundir e, subsequentemente, defraudar alguém. Portanto, explicitamos que a parte interessada na acepção de falácia estudada por nós é a esfera pública do discurso.
Não obstante a ausência de uma teoria classificatória única, há alguns campos do conhecimento que identificam determinados tipos recorrentes de falácia. Como exemplo disso temos a “falácia da Economia”, por meio da qual especialistas da área costumam menosprezar os riscos derivados de determinado plano de investimento que estejam tentando persuadir algum cliente a adquirir.
Vemos assim que nem sempre é fácil identificar uma falácia em um discurso corrente, pois ela não apresenta marca linguística própria. Em geral, sua detecção é feita a posteriori, quando se constata que as coisas não saem ou não se apresentam exatamente como aquilo que foi dito ou propagandeado.
Desse modo, para alcançarmos uma significação mais geral e acadêmica do termo falácia, partiremos do Dicionário Etimológico Nova Fronteira.
Em tal obra, ao buscarmos o verbete falácia, nos deparamos com a seguinte remissão:
faláci.a –oso »»» falaz
Informados de que a palavra falácia é uma derivação do termo falaz e que, portanto, compartilham a mesma etimologia encontramos:
falaz adj 2 g. ‘enganador, ardiloso’ vão, quimérico XVI. Do lat. Fallāx - āxis ║falaciA XVI ║falacI . oso XIX
A leitura e análise dos dois verbetes nos levam à conclusão de que produz uma falácia todo aquele que fala com o intuito de burlar, criar ilusões (quimeras) para obter alguma vantagem ou ganho, sejam eles de ordem material ou egoica. Entendemos portanto que, para alcançar seus objetivos, o “falacioso” faz uso de discursos embasados em dolos e inverdades. A falácia é, pois, uma estratégia deliberadamente enganosa de discurso que tenta se passar por boa argumentação. Porém, seu único objetivo é induzir ao erro. (Vega, 2013).
Ora, se, como sabemos, existe uma lógica e uma ética para a argumentação, em contrapartida a falácia é uma “terra sem lei” quanto a esses quesitos. Sua única lógica é a quebra da confiança, que, em geral, passa despercebida. É exatamente essa característica que torna praticamente impossível a criação de uma conceituação que abarque completa e definitivamente aquilo que venha a ser uma falácia. A sociedade se modifica e com ela se modificam as maneiras de engendrar mentiras, fantasias, falsidades, enganações e outras artimanhas verbais fraudulentas passíveis de serem resumidas no termo falácia.
Desconstruindo a mecânica das falácias
Em uma discussão face a face, o criador de falácias costuma, dentre outros ardis, desrespeitar os argumentos de seus oponentes, tentando diminuí-los, reduzi-los ao ridículo. Tal prática foi estudada por Aristóteles, que a chamou de Reductio ad Absurdum. Por ser essa uma das categorias de falácia mais utilizadas contemporaneamente, tanto no mundo virtual quanto no atual (ou seja, mundo no qual atuamos, desempenhamos movimentos e ações físicas), discorreremos sobre ela neste artigo.
Aristóteles e sua busca pela verdade
Considerado o “pai da Lógica”, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) foi um dos mais importantes filósofos da Magna Grécia. Para discorrermos com segurança sobre esse importante autor e o vasto conjunto de sua obra utilizaremos a solidez da Enciclopédia Britânica como fonte de referência.
Nascido em Estagira, uma pequena colônia da Grécia, Aristóteles era filho de um médico importante. Como era tradicional nas culturas mais antigas, uma profissão costumava ser transmitida de pai para filho, de geração em geração.
Destarte, ainda criança Aristóteles foi introduzido nos estudos de Biologia e Medicina. Naquele tempo e lugar, a grade curricular da formação de médico era composta por estudos sobre dieta alimentar, medicamentos e exercícios físicos. Os estudantes aprendiam, por exemplo, a checar a circulação sanguínea, fazer curativos, aplicar talas em membros faturados, reduzir luxações e fazer cataplasmas usando farinha, azeite e vinho. Presume-se que Aristóteles tenha realizado seus estudos formais no Liceu de Atenas. Ao concluir uma formação nesse nível, um homem era considerado suficientemente educado para ser tratado como um cavalheiro, ainda que nunca chegasse a praticar a medicina como meio de obter renda. Não é difícil concluir que com um ambiente familiar e uma formação acadêmica fundamentados nos aspectos materiais da vida, Aristóteles, em oposição a Platão, se interessava pelos aspectos mais práticos da Filosofia, dentre os quais aqueles que orbitavam em torno da política (ética, retórica, lógica etc.), entendida como “governo da pólis”. Tanto é verdade que ele dividiu as ciências em três tipos: produtivas, práticas e teóricas.
Aristóteles lecionou no Liceu de Atenas, e sua notabilidade e reputação foram tais que ele foi contratado para ser preceptor de Alexandre Magno (conhecido como Alexandre, o Grande) quando este tinha 13 anos de idade.
A título de ilustração da importância da filosofia desenvolvida por ele, que se caracteriza por enfatizar os aspectos manifestos e palpáveis da vida, destacamos a imagem da Figura 1.
Figura 1: Detalhe da obra Academia de Atenas, Rafael Sanzio
Observando o material visual apresentado na figura, vemos que a imagem que aparece à esquerda é uma ampliação da parte central do afresco renascentista originalmente chamado Scuola di Atene, pintado por Rafael Sanzio entre 1509 e 1510.
A obra, como um todo, retrata uma cena na qual dois homens – Platão e Aristóteles – conversam. À direita, Aristóteles, segurando sua Ética a Nicômano com a mão esquerda e com a direita espalmada indicando o solo, argumenta com seu interlocutor que o que importa são os assuntos terrenos ou seja, um modelo de filosofia que raciocine sobre a natureza do mundo físico para a compreensão da vida e de todos os fenômenos observáveis neste planeta. Platão, expressando opinião oposta, segura Timeu com uma mão e aponta o céu com a outra, alegando que o mundo material está em constante mudança e perecimento; portanto, o que interessa compreender são as coisas transcendentes, o mundo espiritual (Vesari, 1998).
Em sua busca pela verdade terrena, Aristóteles nos deixou como legado o valor da observação empírica como instrumento para conhecer seres, objetos e acontecimentos. Esse conhecimento foi o fundador da ciência conforme hoje a conhecemos.
O conjunto de sua obra se estende às Ciências Humanas em virtude da complexidade da vida nas cidades e das relações entre as pessoas que habitam nelas. A política, como administração da res publica (coisas do povo, bens públicos, não privados), que originou o termo República, surgiu na Grécia. Sua prática é um fato social público, observável e mediado pelo discurso. Aristóteles considerava a democracia como a mais justa forma de governo e se interessou por estudar os elementos retóricos e argumentativos utilizados pelos políticos de seu tempo. Nessa perspectiva, escreveu obras como A Ética, A Política e A Retórica, dentre outras. É de sua autoria a conceituação de Reductio ad Absurdum, a falácia lógica que demonstraremos a seguir.
Reductio ad Absurdum
As falácias possuem dimensões cognitivas; elas distorcem a realidade objetiva dos fatos a partir da criação de sofismas. Por isso, de modo mais geral, podem ser definidas como um modo incorreto tanto de pensar (para estabelecer analogias) quanto de argumentar. Nesse universo, cada uma das falácias segue sua lógica própria e peculiar. Para elucidar isso, demonstraremos, por meio de um exemplo, como se dá a prática da falácia Reductio ad Absurdum.
Consideremos, pois, o seguinte diálogo extraído da página @everything.astronomy da mídia social Instagram. A postagem à qual tal diálogo se refere versa sobre as características singulares do planeta Terra que, em conjunto, permitiram a existência de vida nele (o link está nas referências deste trabalho).
Para efeito didático chamaremos os interlocutores de Debatedor 1 e Debatedor 2:
Debatedor 1:
Versão livre do comentário para a língua portuguesa falada no Brasil:
Ahh, a entropia sendo distorcida para confirmar o criacionismo. Leia sobre a entropia e pense de maneira crítica por dois minutos e você entenderá o porquê não se confirma um universo com um design (prévio). Só um tolo olha para um universo que está 99% morto ou tóxico para a existência de vida e pensa: “Sabe de uma coisa, tudo isso deve ter sido criado para mim”.
Logo após publicar esse comentário, o Debatedor 1 o complementa seu discurso com o seguinte texto:
Para ser justo (e eu sei que os meus amigos criacionistas considerarão isso uma vitória Ahahah): isso também não refuta a criação. [A asserção] simplesmente não é falseável, então não pode provar nada, exceto que realmente existimos. [O que algumas pessoas ainda contestariam]. Eu argumentaria que isso refuta o design inteligente para humanos, mas minha ênfase está na parte que diz “inteligentes” e não na parte que diz “humanos”.
Uma explicação: argumento não falseável consiste em uma alegação para a qual não há possibilidade de realizar observação empírica ou experimento científico que a comprove ou a contradiga. Exemplo de argumento não falseável: “Sonhei com você essa noite e por isso sabia que iria entrar em contato comigo hoje”. Não há como comprovar cientificamente se A sonhou com B e muito menos se o sonho (tendo ele, de fato, ocorrido) seria um prognóstico confiável do contato entre seres humanos. Continuando o debate:
Debatedor 2:
Versão livre para a língua portuguesa falada no Brasil:
Sendo assim... tudo aconteceu com absoluta precisão... De um lago de lama surgiu uma bolha que rastejou para fora e começou a escrever livros, compor música, construir estruturas, reunir-se em cidades, educar-se e ensinar os outros. Uau! Realmente precisa ter bastante fé para acreditar nisso.
Entendendo o diálogo
Os leitores que estão familiarizados como o tipo de discurso predominante na área dos comentários das redes sociais sabem que a polarização caracteriza tal espaço. Explicando de maneira mais genérica: as discussões acaloradas começam quando alguém expressa uma opinião sobre algum assunto inerente ao post. Em seguida, a crença no suposto anonimato que muitas pessoas acreditam existir na web as encoraja a postar uma resposta bastante reativa e diametralmente oposta ao que foi dito. É essa a sequência que se verifica no diálogo exposto acima.
Nele, o Debatedor 1 (cuja foto de perfil exibe um homem jovem) apresenta o conceito da entropia aplicado ao surgimento e desenvolvimento do universo. Ele diz que, a partir desse conhecimento, a ideia criacionista não tem sustentação científica.
Surge, então, o Debatedor 2 (a foto mostra uma mulher madura que, na descrição autobiográfica de sua página, descreve a si mesma como “vovó orgulhosa” e “seguidora de Jesus”, ou seja, uma mulher idosa e cristã praticante), que, de maneira jocosa e irônica, diz que é necessário ter muita fé para acreditar que uma “bolha” – provavelmente referindo-se aos aminoácidos que, segundo algumas teorias científicas da Biologia, deram início ao material orgânico do qual se originou toda a diversidade de vida no planeta Terra – tenha se desenvolvido a ponto de se tornar Homo sapiens.
Vimos que o Debatedor 2, no intuito de atacar e destruir de modo definitivo a afirmação do Debatedor 1, lança mão do recurso de ridicularizar o conteúdo da comunicação deste último. Essa fórmula reducente de recapitular uma ideia pretende expô-la ao ridículo e, não raras vezes, consegue surtir efeito em uma audiência que não tem muito conhecimento sobre aquilo o que está sendo discutido. Tal prática sofismática de discurso estudada por Aristóteles passou a ser conhecida pelo termo latino Reductio ad Absurdum.
Por meio dessa demonstração, é possível entender que as falácias estão presentes de modo abundante nas mídias da web. Nesse âmbito, pessoas fazem uso de artifícios diversos para tentar convencer as demais a pensar de determinada maneira, seja em termos de crenças, de política, de visões de mundo ou de cosmovisão dos fenômenos sociais.
Logo, por extensão, podemos perceber que a comunicação em massa propiciada pela web, espaço que poderia utilizado exclusivamente como veículo de propagação da verdade, da instrução e do conhecimento, é também usada como dispositivo deliberado, planejado, de condução de pessoas a erros, preconceitos e crenças cientificamente questionáveis quando não totalmente falsas e ilusórias.
Com vistas a informar, e ainda que não exista um manual definitivo explicitando todos os modelos possíveis de falácia, conforme já discorremos no início deste artigo –, elencaremos a seguir aqueles tipos que estão mais comumente presentes nos discursos negacionistas e nas fake news da sociedade atual.
Tipos recorrentes de falácias no Brasil
- Falácia Ad Hominen – é aquela que busca desqualificar o argumentador, e não o argumento que ele apresenta. Exemplo: atacar um psicólogo solteiro que aconselha sobre a vida conjugal.
- Falácia do apelo à autoridade – busca atribuir credibilidade a algo por meio da citação de uma pessoa famosa ou entidade tida como respeitável. Essa falácia é muito comum em propagandas comerciais. Exemplo: O jogador Pelé dando a entender que seu vigor e agilidade física eram resultantes do uso de uma vitamina chamada Vitasay.
- Falácia da alegação especial – esse tipo de falácia fica caracterizado quando seu autor, constatando que sua argumentação foi refutada por fatos concretos, cita exceções. Exemplo: um famoso vidente prevê a morte de um apresentador de TV em dado ano e, ao final dele, verifica-se que tal previsão não se confirma. Ao ser questionado ele responde: “Vejo que você não conhece o poder das boas vibrações”.
- Falácia da falsa dicotomia – é a construção de um falso dilema caracterizado por duas alternativas extremas como se não houvesse outras possibilidades além delas. Um bom exemplo é a frase “Brasil: ame-o ou deixe-o!”, usada na propaganda do regime militar nos anos 1970. Na época das eleições, costumamos ouvir essa falácia em dicotomias como “Se o candidato X não vencer, este país vai ficar pior do que Cuba”.
- Falácia da falsa causalidade – estabelece uma falsa relação de causa e efeito entre dois fatos ou fenômenos que ocorrem simultaneamente. Exemplo: “O número de analfabetos funcionais aumentou no Brasil. Isso está acontecendo porque as pessoas hoje em dia se comunicam por meio de fotos e emojis no celular; ou seja, a tecnologia acabou com a cultura”.
Síntese das principais características das falácias
Da leitura de Vega (2013) extraímos os elementos que comumente estão presentes na maioria das falácias:
- Falácias rompem com o acordo tácito de confiança entre as partes que estão dialogando;
- O usuário de falácias tende a recorrer a uma “economia de crenças”, buscando elementos do “pensamento mágico” para rebater argumentos lógicos;
- Falácias costumam se amparar em recursos retóricos ou emotivos para compensar a carência ou insuficiência de meios de persuasão racional;
- A detecção de uma falácia em um discurso de determinado indivíduo coloca em suspeita tudo o que foi dito anteriormente por ele sobre o assunto; em outras palavras, fica caracterizada a sua intenção de dolo referente à questão em pauta;
- Cada falácia tem sua contrapartida correta. Isso significa que um indivíduo tenta falsear uma verdade. Por exemplo, para a falácia anticientífica de que o ser humano nunca pisou na lua existe uma copiosa documentação que prova o contrário, seja em imagens gravadas, seja em elementos minerais trazidos dela, como tranquilitita, armalcolita, piroxferroíta, que somente após vários anos de sua captação em solo lunar foram buscadas e encontradas no planeta Terra (Revista Veja, 2016).
Convém notar que uma falácia não precisa necessariamente preencher todos esses requisitos para ser reconhecida como tal.
Meios para testar falácias
Uma vez identificadas características falaciosas em um argumento, devemos submetê-lo a alguns testes para verificar ou não sua veracidade. Para tanto, utilizaremos parte do material apresentado por Carl Sagan em seu Kit de Detecção de Mentiras (Sagan, 1996, cap. 12) com orientações para o reconhecimento de argumentos falaciosos ou fraudulentos:
- Sempre que possível deve haver uma confirmação independente para verificar se os “fatos” descritos são compatíveis com a realidade;
- Se há uma cadeia de argumentos, todos os elos dela devem funcionar. Essa afirmação expressa que absolutamente tudo, o discurso como um todo, deve fazer sentido e não apenas alguns de seus argumentos;
- Devemos sempre perguntar se as hipóteses apresentadas em uma argumentação são ou não passíveis de serem testadas. Nesse caso, não se deve atribuir credibilidade a argumentos místicos ou anedóticos.
Para os tempos da circulação de informações via web/redes sociais, acrescentamos: é necessário saber qual a fonte de referência nas informações veiculadas por um post antes de tomá-lo por verdadeiro. Se não for possível encontrar fontes confiáveis que comprovem suas afirmações, não devemos de modo algum compartilhá-lo. Nessa importante observação convém testar a advertência de Sagan:
A questão não é se gostamos da conclusão que emerge de uma cadeia de raciocínio, mas se a conclusão deriva da premissa ou do ponto de partida e se essa premissa é verdade (Sagan, 1996, p.182, grifo do autor).
Encerramos este tópico pontuando que uma pessoa que esteja disposta a dizer a verdade por meio da argumentação jamais fará uso de expedientes que sequer se aproximem de uma falácia. Portanto, uma vez que nos deparemos com semelhante atitude discursiva, podemos nos cientificar da má-fé do argumentador. A credibilidade que eventualmente tivéssemos depositado nele no início do diálogo estará destruída e, por conseguinte, está extinto o interesse em prosseguir debatendo; restou claro que tal pessoa não possui argumentos válidos.
O poder político e universo das fake news
Há atualmente uma discussão constante, presente até mesmo nos meios acadêmicos, em torno da seguinte pergunta: “Como o poder político, de maneira geral, consegue tão facilmente convencer as pessoas leigas a aceitar ideias tão excêntricas e anticientíficas?” E, mais especificamente: “de que meios eles se servem para levar tal manobra a efeito de maneira tão eficiente?”.
Para elucidar essa questão, utilizaremos um triste fato que pertence à história mundial: a propaganda nazista. No decorrer das últimas sete décadas, foram realizados robustos estudos no campo da comunicação enfocando a propaganda política da Alemanha dos anos 1930 e primeira metade dos anos 1940. É muito fácil encontrar copioso material produzido pelos próprios nazistas explicando os seus procedimentos para conseguir conduzir o povo. A metodologia continua sendo a mesma em todo o mundo ocidental.
Veja, por exemplo, o que disse Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler:
A ideia permanece inalterável. A propaganda, contudo, é sempre instável, passível de acomodação às respectivas situações e exigências. Ela volta-se às amplas massas de milhões de pessoas do povo trabalhador e precisa ser, por isso, acima de tudo, popular. Ela não deve rejeitar o uso daqueles meios que certamente decepcionam o intelecto, mas que, muito mais, emocionam o coração do povo. Um bom propagandista fala sempre a língua do povo ao qual ele se dirige. Ele não procura pelas causas últimas de nossa existência, senão assume o conhecimento pronto que o filósofo encontrou; sua tarefa é fundi-lo em uma fórmula que também o homem simples compreenda. Uma ideia só pode ter proveito quando entendida pelos homens. O propagandista, por isso, precisa adaptar-se àquele a quem quer transmitir seus conhecimentos. Ele irá falar nos seus discursos, nos seus cartazes aos camponeses, diferente do que falará aos trabalhadores. Transformar, inculcar de outra forma um resultado científico ou emocional conseguido com sacrifício, e dele fazer um lema popular, que tem penetração na cabeça do povo, este é o seu objetivo. [...] O jornal deve ser um agitador de rua. Nossa imprensa é quase exclusivamente determinada por essa tendência. Seu objetivo não é informar, transmitir fatos claros e objetivos, senão incitar, estimular, mover. Para nós, a imprensa é propaganda com meios jornalísticos. [...] Ela (a imprensa) tira de suas informações consequências políticas, mas não deixa que o leitor as elabore segundo seu próprio gosto. Ela realiza propositada e conscientemente a influência política. Todo o seu pensar e sentir deve ser levado de qualquer jeito, com seus meios, numa determinada direção ideológica. [...]
Não é sentido da propaganda ser brilhante. Sua tarefa é levar ao sucesso. Se uma propaganda foi boa, isso se vê quando ela pôde atuar por um tempo mais longo sobre as pessoas que ela pretendia conquistar. Se ela foi ruim, também se mostra. Se uma natureza atinge um círculo de pessoas que ela pretendia ganhar, então ela foi possivelmente boa; se não, foi ruim. Ninguém pode por isso dizer dela que ela foi muito crua, baixa ou não suficientemente honesta. Ela também não precisa sê-lo. Ela não precisa nada, a não ser levar ao sucesso (Goebbels, 1934 apud Marcondes Filho, apud Weisz, 2010).
Assim, respondendo ao questionamento levantado no início deste tópico, podemos demonstrar que a classe política consegue persuadir facilmente o senso comum porque as preocupações diárias das pessoas são muito comezinhas. Em sentido amplo, pode-se dizer que a atenção delas é dirigida, quase exclusivamente, a assuntos relacionados ao trabalho, aos horários da escola/creche dos filhos, à saúde etc. A maior fração numérica da população comumente não tem tempo, energia ou interesse para checar se aquilo que a imprensa propaga é ou não verdade. Nesse sentido, Wilhelm Reich afirma:
A consciência de classes das mais vastas massas é inteiramente do tipo pessoal [...]; ela está orientada para reflexos, incrustações e efeitos desse mecanismo objetivo da subjetividade sob a forma de inúmeras questões da vida cotidiana; o seu conteúdo é, pois, o interesse pela alimentação, o vestuário, a moda, as relações com os outros, as possibilidades de satisfação sexual e outras em sentido mais restrito, tais como cinema, teatro [a TV e as redes sociais da web, diríamos atualmente], as festas e as danças e também o interesse pelas dificuldades de educação das crianças, o arranjo da casa, a duração e o conteúdo dos tempos livres etc. (Reich, 1976).
Pela leitura do excerto acima, entendemos que a vida cotidiana da maioria das pessoas é marcada pelo cansaço e pelas preocupações. Tais elementos acabam acarretando tensões psíquicas e emocionais que levam os indivíduos a usar o seu tempo livre na busca de prazeres palpáveis que os atenuem. Em face a tantas contingências da vida prática, poucas são as pessoas das camadas mais populares que se interessam em questionar se aquilo que seu político preferido está dizendo tem ou não algum embasamento na realidade dos fatos. Pensar, estudar, refletir, comparar cansa, exige raciocínio lógico, consome tempo e energia. Por isso, é mais simples aceitar as ideias e as teorias de conspiração que são lançadas nos trend topics a partir do trabalho profissional (que inclui o uso de robôs) de marqueteiros contratados pelos membros das políticas partidárias.
Propostas de atividades para o Ensino Médio
Em vista da complexidade do tema apresentado neste texto e da relevância dele para a Educação de nossos tempos, gostaríamos de sugerir aos professores da área das Ciências Humanas (notadamente os de Filosofia, Língua Portuguesa, Sociologia, História) algumas atividades que propiciam o debate entre os alunos.
- Trabalhando a conceituação – o professor poderá utilizar este artigo como referência para produzir um texto explicando a seus alunos o que é falácia e qual a importância de não nos deixarmos manipular por argumentos fraudulentos.
- Debate – tendo trabalhado a conceituação de “falácia” em sala de aula, o professor pode pedir aos alunos que encontrem textos, posts ou mensagens supostamente falaciosos nas redes sociais, façam prints (ou usem qualquer outro meio de reprodução) e os levem para a sala para que a turma possa analisar e categorizar os tipos de falácia encontrados.
- Envolvendo a comunidade mais ampla e a sociedade – com conhecimento e autorização dos pais, monitorar os alunos na elaboração de um blog com textos, prints e sugestões de leitura sobre falácias, negacionismo e fake news, priorizando formas de alertar a população contra os danos sociais e políticos decorrentes deles.
Considerações finais
A título de fechamento deste texto, desejamos lembrar a todos os colegas professores que nos encontramos em um importante ano político. Independentemente de predileção ou filiação partidária, todos os brasileiros necessitam e têm pleno direito a ter acesso a informações verídicas quanto às ciências, à saúde e à vida pública dos políticos de destaque. Nunca é demais nos lembrar também de que somos professores e que sobre nós repousa a responsabilidade de preservar e dar continuidade ao progresso da civilização humana.
Referências bibliográficas
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REICH, W. O que é consciência de classe? São Paulo: Martins Fontes, 1976.
SAGAN, C. O mundo assombrado pelos demônios. A ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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VESARI, G. The lives of the artists. A new translation by Julia Conaway Bondanella and Peter Bondanella. 2ª ed. Nova York: Oxford University Press, 1998.
WEISZ. I. C. Sociedade e cultura. A transmutação da palavra no espaço da notícia-publicidade. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/14640/1/Isabel%20Cristina%20Weisz.pdf Acesso em: 08 fev. 2021.
Recurso virtual
@everything.astronomy. Our planet. Instagram. 21 nov. 21. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CWV6O2jM3xe/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em: 07 fev. 2022.
Publicado em 22 de março de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
WEISZ, Isabel Cristina. Desconstruindo as falácias do negacionismo e das fake news: um manual para professores do Ensino Médio. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 10, 22 de março de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/10/desconstruindo-as-falacias-do-negacionismo-e-das-fake-news-um-manual-para-professores-do-ensino-medio
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