Brincar e aprender com a língua portuguesa: considerações sobre ludicidade e aprendizagem da linguagem
Rafael Rossi de Sousa
Pedagogo, aluno especial da disciplina Alfabetização e Linguagem nos Anos Iniciais, do Programa de Pós-graduação em Ensino na Educação Básica (UERJ)
Jonê Carla Baião
Doutora em Linguística, professora do CAp-UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Ensino em Educação Básica (UERJ)
Sabe-se que o lúdico é assunto explorado e pesquisado em diversos estudos sobre Educação Infantil, junto à sua importância e a repercussões no desenvolvimento humano. Porém, atentamos a uma observação de Santos (1997, p. 12), que preconiza que
a ludicidade é uma necessidade do ser humano em qualquer idade e não pode ser vista apenas como diversão. O desenvolvimento do aspecto lúdico facilita a aprendizagem, o desenvolvimento pessoal, social e cultural, colabora para uma boa saúde mental, prepara para um estado interior fértil, facilita os processos de socialização, comunicação, expressão e construção do conhecimento.
No percurso escolar, nota-se que, com o avançar dos anos de escolaridade, os aspectos lúdicos ocupam menor espaço nas discussões e fazeres pedagógicos, perdendo espaço para as complexificações curriculares e didáticas e seus desdobramentos, seja pela visão distorcida do lúdico como algo sem objetivos, não intencional, seja pela preocupação no cumprimento dos extensos programas de curso em exíguos prazos estabelecidos pelos sistemas.
Nessa perspectiva, buscamos explorar as questões históricas da ludicidade e suas implicações e repercussões nas didáticas do Ensino Fundamental, apresentando, além de reflexões e pressupostos teóricos, um relato de experiência em turma de 5º ano de uma escola pública da periferia da capital fluminense.
Concepções de brincadeira, brincar e jogo na infância
Brincar é inerente ao ser humano: brincamos quando crianças, quando adultos e quando idosos, pois brincar é uma ação contínua que envolve pensamento-ação-reação. O universo infantil está presente em cada um de nós. As experiências da infância deixam profundas marcas em nossas vidas e, mesmo sem sabermos disso, nós as trazemos nos gestos, nas falas e nos costumes. Os brinquedos, as brincadeiras e o brincar integram esse leque de experiências vividas por nós, seres humanos (Fortuna, 2004).
Falar de infância geralmente nos remete a um imaginário colorido, mágico, fantasioso, embalado pela curiosidade, pelo descobrir, pelo descompromisso e despreocupação com o tempo, com as rotinas e burocracias da vida cotidiana adulta. Lembra, também, o brincar, o explorar e o descobrir através das brincadeiras e jogos. Descobrir este, o eu, o outro, o ambiente, o “como se dá” e o “como se faz” dos objetos e das coisas. E isso é a infância (ou deveria ser) para as crianças.
Wajscop (2007, p. 25), numa perspectiva sociocultural, define a brincadeira como atividade social da infância.
A criança desenvolve-se pela experiência social, nas interações que estabelece, desde cedo, com a experiência sócio-histórica dos adultos e do mundo por eles criado. Dessa forma, a brincadeira é uma atividade humana na qual as crianças são introduzidas constituindo-se em um modo de assimilar e recriar a experiência sociocultural dos adultos.
Kishimoto (1993, p. 45) afirma que o brincar
é uma atividade fundamental para o desenvolvimento da identidade e da autonomia. Desde muito cedo as crianças se comunicam por gestos, sons e mais tarde a imaginação. Podemos dizer que brincar é uma atividade natural, espontânea e necessária para sua formação.
O jogo, segundo Brougère e Henriot (apud Kishimoto), pode ser visto como “o resultado de um sistema linguístico que funciona dentro de um contexto social, um sistema de regras ou como um objeto” (2011, p. 18).
Observamos, portanto, que brinquedo, jogo e brincadeira possuem suas similaridades, porém uma quase indissociação quando colocados em discussão, ora por generalizações, ora por banalização do ato de brincar.
Piaget (1977) afirma que o indivíduo, ao aprender, não desempenha um papel passivo no meio; ao contrário, ele, por meio das influências ambientais, procura adaptar-se a elas com uma atividade organizadora. A aprendizagem, em sua concepção, é um processo adaptativo contínuo, levando em conta adaptações do sujeito a estímulos anteriores e atuais. Para o autor, as atividades lúdicas desempenham papel fundamental no desenvolvimento intelectual da criança.
O jogo e o brincar, portanto, sob as suas duas formas essenciais de exercício sensório-motor e de simbolismo, proporciona uma assimilação real à atividade própria, fornecendo a esta seu alimento necessário e transformando o real em função das necessidades múltiplas do eu. Por isso, os métodos ativos de educação das crianças exigem todos que se forneça às crianças um material conveniente, a fim de que, jogando e brincando, elas cheguem a assimilar as realidades intelectuais que, sem isso, permanecem exteriores à inteligência infantil (Piaget, 1978, p. 160).
O jogo é ainda outro aliado do desenvolvimento, pois exerce grande influência sobre a linguagem, na qual
se torna possível o exercício – partilhado – da imaginação. A vivência dos diversos papéis, a ocupação – real, imaginária – dos diferentes lugares e posições do outro, as múltiplas significações que esses papéis e posições assumem acabam por constituir o drama das relações sociais que é internalizado no nível individual (Smolka; Nogueira, 2002, p. 93).
O brincar possibilita ainda à criança que assuma protagonismos que, por vezes, lhe são usurpados. Para Fillipini (1999, p. 125), “cada um de nós tem o direito de ser protagonista, de ter papel ativo na aprendizagem na relação com os outros”.
As características do jogo infantil são rediscutidas por Christie (1991 apud Kishimoto, 1994, p. 115), indicando uma série de aspectos que é necessário o pensar em sua importância:
- A não literalidade: brincadeiras em que a realidade interna predomina sobre a externa. O sentido habitual é substituído por um novo. São exemplos de situações em que o sentido não é literal: o ursinho de pelúcia servir como filhinho e a criança imitar o irmão que chora.
- Efeito positivo: o jogo infantil é caracterizado pelos signos do prazer ou da alegria, entre os quais o sorriso, que manifesta a satisfação da criança quando ela brinca livremente. Esse processo traz efeitos positivos aos aspectos corporal, moral e social da criança.
- Flexibilidade: o brincar leva a criança a tornar-se mais flexível e a buscar novas alternativas de ação.
- Prioridade do processo de brincar: enquanto a criança brinca, sua atenção está concentrada na atividade em si e não em seus resultados ou efeitos. O jogo infantil só pode receber essa designação quando o objetivo da criança é brincar. O jogo educativo utilizado em sala de aula muitas vezes desvirtua esse conceito ao dar ao produto a aprendizagem de noções e habilidades.
- Livre escolha: o jogo infantil só pode ser jogo quando escolhido livre e espontaneamente pela criança; caso contrário, é trabalho ou ensino.
- Controle interno: No jogo infantil são os próprios jogadores que determinam o desenvolvimento dos acontecimentos, oportunizando aos alunos liberdade e controle interno.
Nunes (1996) afirma que a relação da criança com o brincar representa um momento de encontro com o prazer, a fantasia, a alegria e descontração. O lúdico, para a autora, possibilita à criança afirmar-se portadora de uma natureza humano-social, caracterizando-se como atividade vital para sua construção como sujeito histórico.
O fazer lúdico no Ensino Fundamental
Segundo Oliveira, a ludicidade consiste em
um recurso metodológico capaz de propiciar uma aprendizagem espontânea e natural. Estimula a crítica, a criatividade, a sociabilização, sendo, portanto, reconhecido como uma das atividades mais significativas – senão a mais significativa – pelo seu conteúdo pedagógico social (Oliveira, 1985, p. 74).
As atividades lúdicas, nesse contexto, são observadas como potencializadoras das práticas pedagógicas, com seu apelo diversificado ao ensino, em que a criança é corriqueiramente exposta, seja por reposicionar o formato da sala de aula, a mudança de abordagem pedagógica, os novos arranjos observados e necessários para a efetivação da atividade, a diversidade de materiais nas dinâmicas indicadas, formadas ou criadas, pela oportunização de protagonismos, além, claro, da intencionalidade da proposta da atividade em si.
A oportunização de momentos lúdicos nas turmas de Ensino Fundamental é de necessária e real importância para o desenvolvimento do vínculo aluno-aprendizagem-espaço escolar e, para além, de significação com os objetos de conhecimento/aprendizagem. Através deles, é possível conceber abstrações e criar generalizações mais fundadas no contexto do aluno, pela sua prática cotidiana com o brincar e suas magnitudes, porém de forma orientada e supervisionada. Para Kishimoto (2011, p. 41),
quando as situações lúdicas são intencionalmente criadas pelo adulto com vistas a estimular certos tipos de aprendizagem, surge a dimensão educativa. Desde que mantidas as condições para a expressão do jogo, ou seja, a ação intencional da criança para o brincar, o educador está potencializado as situações de aprendizagem.
No Ensino Fundamental nota-se por vezes a imposição formal de conteúdos em detrimento da infância. Nas Indagações sobre currículo (Brasil, 2007), ao tratar do ingresso de crianças de seis anos no Ensino Fundamental de nove anos, reafirma-se a necessidade do espaço da temática nas práticas e discussões.
Partindo do princípio de que o brincar é da natureza de ser criança, não poderíamos deixar de assegurar um espaço privilegiado para o diálogo sobre tal temática [...], o brincar como uma das prioridades de estudo nos espaços de debates pedagógicos, nos programas de formação continuada, nos tempos de planejamento; o brincar com uma expressão legítima e única da infância; o lúdico como um dos princípios para a prática pedagógica; a brincadeira nos tempos e espaços da escola e das salas de aula; a brincadeira como possibilidade para conhecer mais as crianças e as infâncias que constituem os anos/séries inicias do EF de nove anos (Brasil, 2007, p. 10).
O lúdico é direito fundamental e inalienável da criança, assim como a educação, elencados no mesmo artigo da Declaração Universal dos Direitos da Criança (ONU, Art. 7º, 1959), representado neste documento pelo “brincar” e pelo “divertir-se”. "Brincar é algo que faz parte do contexto cultural da criança de modo geral, cada criança tem seu modo de aprender, criar cultura e vínculos afetivos" (Rapoport, 2009, p. 9). Ludicidade, portanto, é respirar a infância, não só por direito fundamental, por recomendação ou por estética, mas, sobretudo, por pulso.
Brincando, jogando e aprendendo com as regras ortográficas
Por muitas vezes, o ensino de Língua Portuguesa é (re)discutido e parece chegar sempre ao mesmo lugar: a discussão do tradicional, do convencional e do revolucionário. Alguns aspectos parecem estar sempre permeando essas discussões no meio educacional, perpassando o currículo, as metodologias e a didática, deixando o aluno como plano secundário da ação pedagógica.
Pensando nessa dimensão, em uma atividade desenvolvida em 2019 numa escola pública carioca, em uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental com 32 alunos, houve a proposta de intervenção por meio do lúdico para dirimir as dificuldades encontradas em ortografia mediante resultados observados por meio de sondagem específica.
A atividade consistiu na adaptação de um jogo tradicional (Imitatrix, da Estrela) para um jogo que focasse nas dificuldades ortográficas específicas. O jogo era composto por tiaras em EVA com corte para posicionamento da ficha e elástico; kit de fichas com as palavras-alvo e tabela de marcação e pincel para quadro branco. As fichas de palavras-alvo continham palavras com as ocorrências x/ch, g/j, s/z.
Para o jogo, a disposição da sala de aula foi feita em grupos previamente escolhidos e organizados pelos alunos livremente; foram dadas as orientações iniciais e entregue o material.
Figura 1: Alunos dispostos em grupos para realização da atividade
Fonte: Arquivo do autor, 2019.
Cada aluno, em sua vez, posicionaria, sem olhar, uma das fichas em sua tiara. Os demais alunos tinham como objetivo fazer com que o colega descobrisse a palavra em questão por meio da linguagem, porém sem anunciar a palavra em si, dando dicas verbais (significado, contextualização, aplicação da palavra em frases...) ou por meio de dicas não verbais (mímicas, apontamentos, desenhos...). Ao acertar, o aluno era ainda questionado sobre a escrita correta da palavra a partir da convenção ortográfica alvo, sendo indicada a forma correta na própria ficha. Os alunos foram incentivados ainda a formular outras questões relacionadas quanto aos aspectos da escrita da palavra.
Figura 2: Alunos na dinâmica proposta
Fonte: Arquivo do autor, 2019.
Segundo Pereira (1981, p. 11), pode-se sintetizar alguns dos valores do jogo da seguinte maneira:
- É fonte sadia de realização e diversão;
- É maneira de desenvolver-se fisicamente;
- É estímulo ao progresso, ao desenvolvimento da personalidade;
- É aprendizado para a vida em sociedade;
- É fonte de descoberta de capacidades e limites;
- É meio de cura para traumas e complexos;
- É descoberta do valor da pessoa humana;
- É respeito pelo ser da criança.
A dinâmica teve boa aceitabilidade dos alunos, os quais sugeriram opções de novas adaptações e maior demanda de atividades similares em sala de aula, denotando o impacto positivo de propostas pedagógicas lúdicas.
Considerações
A ludicidade na escola tem papel relevante e fundamental no desenvolvimento de competências e habilidades diversas, tornando a criança protagonista e envolvida no processo de aprendizagem intencional e formalmente, com um tom mais leve frente às demandas impostas pelos sistemas. No Ensino Fundamental, especificamente, observa-se a necessidade da ampliação de práticas dessa natureza, principalmente com a progressão dos anos escolares, em que ela perde espaço para currículos e práticas corriqueiramente repetitivas e desestimulantes. A atividade apresentada no relato de experiência demonstrou, por meio do envolvimento e observações das crianças, a repercussão e o impacto que propostas dessa natureza possuem, especificamente no campo da linguagem. Observa-se, pela leitura dos referenciais teóricos da área e do relato de experiência, a importância de ampliação de práticas que olhem para os alunos e com os alunos em sua singularidade e totalidade, tendo o lúdico para além de metodologia, mas como possibilitador de construções e aprendizagens mais contextualizadas e sincronizadas com o universo da criança por meio do brincar.
Referências
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SMOLKA, Ana Luiza; NOGUEIRA, Ana Lúcia Horta. O desenvolvimento cultural da criança: mediação, dialogia e (inter)regulação. In: OLIVEIRA, Marta Kohl de; SOUZA, Denise Trento R.; REGO, Teresa Cristina (Orgs.). Psicologia, Educação e as Temáticas da Vida Contemporânea. São Paulo: Moderna, 2008.
WAJSKOP, Gisela. Brincar na pré-escola. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.
Publicado em 29 de março de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
SOUSA, Rafael Rossi de; BAIÃO, Jonê Carla. Brincar e aprender com a língua portuguesa: considerações sobre ludicidade e aprendizagem da linguagem. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 11, 29 de março de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/11/brincar-e-aprender-com-a-lingua-portuguesa-consideracoes-sobre-ludicidade-e-aprendizagem-da-linguagem
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