Professores da EJA em formação ampliam perspectivas a partir da escuta dos alunos
Letícia Miranda Medeiros
Doutoranda em Educação (FFP/UERJ), professora de Inglês (Seeduc/RJ)
Helena Amaral da Fontoura
Professora titular do Departamento de Educação (FFP/UERJ)
O Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio foi um curso de formação continuada instituído pela Portaria no 1.140, de 22 de novembro de 2013 (Brasil, 2013), articulado entre a União e os governos estaduais e do Distrito Federal; teve como objetivos:
- a promoção da melhoria da qualidade do Ensino Médio;
- a ampliação dos espaços de formação de todos os profissionais envolvidos nessa etapa da Educação Básica;
- o desencadeamento de reflexões sobre as práticas curriculares e o desenvolvimento de práticas educativas efetivas para a formação humana integral.
Por meio do estudo de onze cadernos produzidos pelo setor de Educação da Universidade do Paraná (UFPR) em parceria com a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, o curso de formação foi dividido em duas etapas. Na primeira, os participantes estabeleceram diálogos culturais e pedagógicos que possibilitaram uma (re)leitura do desenvolvimento do aprendizado e da formação humana integral dos estudantes do colégio, assim como do funcionamento da escola em si. Na segunda etapa, os professores puderam estudar e participar mais efetivamente da organização do trabalho pedagógico e até mesmo se engajar na reescrita do projeto político-pedagógico (PPP) da escola, além de refletir coletivamente sobre o ensino-aprendizado de cada área do conhecimento.
Com duração de seis meses, esse curso de formação foi financiado pelo Ministério da Educação; todos os participantes do Pacto receberam bolsa de estudo. Com reuniões semanais, cada encontro presencial realizado em um colégio estadual da região norte de Niterói/RJ contou com a participação de uma equipe de sete professores do ensino regular e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que atuam nas seguintes áreas do conhecimento: das Ciências Humanas, participaram uma professora de História e um professor de Geografia; da Matemática, estiveram presentes dois professores; da área de Linguagens, participaram dois docentes de Língua Portuguesa e uma professora de Língua Estrangeira – Inglês, cuja participação se deu também como orientadora dessa equipe de formação. Na segunda etapa, apesar de não estar inscrito no Pacto, um professor de Biologia da própria escola participou de um dos encontros para conduzir o estudo do caderno da área de Ciências da Natureza.
Este artigo pretende analisar os dados oriundos de relatos dos professores da EJA que participaram desse curso de formação. Tais relatos foram escritos pelos próprios professores participantes do Pacto com base em perguntas propostas em um dos cadernos de estudo. Após a partilha com os demais membros da equipe, esses escritos foram enviados por e-mail para a orientadora do curso de formação. É importante relatar também que a orientadora de estudos, além de participar de encontros periódicos com os orientadores de outras escolas, enviava regularmente relatórios ao coordenador regional do Pacto a fim de prestar contas do trabalho realizado na escola.
É necessário ainda sublinhar que o portfólio com os relatos dos professores foi cedido voluntariamente pela professora/orientadora de estudos desse curso de formação, e todos os professores participantes do Pacto assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido que assegura seu anonimato e concede autorização para utilizar os seus escritos. Como dito, cabe salientar que neste texto serão utilizados para análise somente os relatos dos docentes da Educação de Jovens e Adultos, que é o nosso foco de análise e pesquisa. Além disso, seus nomes serão resguardados para preservar seus nomes; neste artigo serão indicados como Docente 1, Docente 2 e assim por diante.
As narrativas foram analisadas à luz da metodologia da tematização proposta por Fontoura (2011). A autora salienta que “relatos orais ou escritos sobre experiências vividas permitem obter informações na essência subjetiva de cada um; se quisermos saber perspectivas pessoais, não há melhor caminho do que obter essas informações através da sua própria voz” (Fontoura, 2011, p. 75). A metodologia da tematização, em linhas gerais, consiste em demarcar palavras, expressões e/ou temas que são realmente relevantes para a análise, a partir de uma leitura detalhada dos relatos. Com isso, é possível apreender núcleos de sentidos contidos nas narrativas a fim de estabelecer ligações com o referencial teórico. Sendo assim, após a leitura atenta e a análise dos escritos dos professores da EJA participantes do Pacto, o tema encontrado para ser apresentado e discutido neste artigo foi “Alunos da EJA: sua relação com o trabalho e objetivos de estudo”.
Alunos da EJA: sua relação com o trabalho e objetivos de estudo
Pensar nos alunos que frequentam a escola na modalidade Educação de Jovens e Adultos é o ponto de partida. Quem são esses estudantes? Por que eles resolveram voltar aos bancos escolares? Tais perguntas provocam que os professores da EJA reflitam e pensem as suas práticas pedagógicas. Nesse sentido, Arroyo (2007) dá um caminho:
Como ver esses jovens-adultos? Reconhecendo e entendendo seu protagonismo. A visibilidade com que a juventude emerge nas últimas décadas e seu protagonismo não vêm apenas das lacunas escolares, das trajetórias escolares truncadas, mas vêm das múltiplas lacunas a que a sociedade os condena. Sua visibilidade vem de sua vulnerabilidade, de sua presença como sujeitos sociais, culturais, vivenciando tempos da vida sobre os quais incidem de maneira peculiar o desemprego e a falta de horizontes; como vítimas da violência e do extermínio e das múltiplas facetas da opressão e exclusão social. As carências escolares se entrelaçam com tantas carências sociais. Nesse olhar mais abrangente da juventude, as políticas públicas e as políticas educativas da juventude, como a EJA, adquirem configurações muito mais abrangentes. Radicalizam o legítimo direito à educação para todos. Esse "todos" abstrato se particulariza em sujeitos concretos (Arroyo, 2007, p. 24).
O ponto crucial é enxergar os/as estudantes da EJA com lentes humanas, ou seja, eles/elas são pessoas, são mães, são pais, são filhos, são chefes de família, desempenham funções importantes na sociedade, têm metas na vida e procuram os bancos escolares para realizar sonhos, para conseguir uma melhor colocação no mercado de trabalho, entre outros objetivos. Não se deve olhar para o aluno da EJA com a visão da escolarização como, por exemplo, são analfabetos ou iletrados, pois esses rótulos categorizam e são excludentes. Precisamos humanizar o nosso olhar; a maioria dos alunos é oriunda da classe trabalhadora e está, como todos nós estamos, em processo de formação. Cada aluno chega à sala de aula com a sua própria bagagem cultural, que foi conquistada ao longo da vida, ou seja, cada um deles traz conhecimentos adquiridos nos ambientes sociais: na família e no trabalho, entre outros espaços formativos. Tachá-los pela ótica da escolarização e designá-los como atrasados nos anos de escolaridade seria diminuir ou menosprezar os saberes desses alunos e, definitivamente, esse não é objetivo da EJA. Pelo contrário, como lembram Paiva e Fernandes (2016) após a V Conferência Internacional de Educação de Adultos (a V Confintea), que aconteceu em 1996, a EJA se consolidava como educação para além da escolarização, em uma “perspectiva de educação ao longo da vida/educação continuada” (Paiva; Fernandes, 2016, p. 26).
O desafio de pensar nesses alunos e em suas expectativas quanto ao futuro profissional, saber se eles já trabalham, onde trabalham, se eles pensam em faculdade ou em cursos técnicos foi transformado em entrevistas, observações e reflexões feitas pelos professores participantes do Pacto para elucidar o seguinte dilema: quem é de fato o nosso aluno?
Após um tempo de observação, coleta de dados e diálogos com os alunos, os professores participantes puderam fazer um retrato do corpo discente do colégio onde estavam atuando, registraram os seus achados e compartilharam os escritos com os demais membros da equipe do curso de formação.
Com o seu olhar voltado para a área do trabalho, a Docente 1 percebeu que os seus alunos buscam no emprego a forma de realização de desejos pelos itens da modernidade:
Os jovens entre 15 e 17 anos geralmente pensam no imediatismo! Estão preocupados principalmente em comprar objetos, em estar na moda, em ser aceito hoje. Normalmente oriundos de famílias pobres, os jovens entram no mercado de trabalho formal ou informal para conseguir realizar seus objetivos de possuir itens tecnológicos e roupas. Aqui no colégio, é possível encontrar muitos alunos trabalhando na informalidade, em lava-jatos ou como entregadores de farmácias, por exemplo; outros têm carteira assinada, trabalhando em empresas parceiras do Programa Jovem Aprendiz (Docente 1).
Tal relato nos remete ao que escreveu Martins (2012) no capítulo “As hesitações do moderno e as contradições da modernidade no Brasil”. Ele adverte que essa dualidade entre o ideal moderno e a realidade desigual está presente em muitas casas brasileiras por meio do apelo das propagandas que fazem os jovens da periferia entrarem no mercado de trabalho precocemente.
Um surpreendente número de antenas parabólicas indica que a casa incompleta e precária e a mesa pobre não estranham a tecnologia sofisticada do satélite e o imaginário luxuoso e manipulável da televisão. É como se as pessoas morassem no interior da imagem e comessem imagens. A imagem se tornou no imaginário da modernidade um nutriente tão ou mais fundamental do que o pão, a água e o livro (Martins, 2012, p. 35-36).
De fato, há limitações da concretude do moderno na realidade das famílias brasileiras, como os itens expostos nas propagandas, tais como celular, laptop, viagens, roupas e carros, entre outros que acabam provocando o consumismo irrefletido. Muitos, então, se lançam ao mercado de trabalho para a realização de alguns desses desejos.
Na atualidade pandêmica de ensino remoto, outro agravante ficou exposto: muitos alunos até possuem celular, mas seus aparelhos não têm memória suficiente para baixar os arquivos e textos propostos pelos professores ou a conexão de rede de internet não é suficiente para assistir às aulas e aos vídeos indicados. Com isso, constata-se que, em uma realidade desigual, o moderno não consegue estar plenamente presente em todos os contextos sociais, pois, com o cenário pandêmico do distanciamento físico, a escassez de itens tecnológicos e a limitação da rede de internet evidenciou e alargou o fosso das desigualdades, impedindo muitos alunos de estar presentes efetivamente nas plataformas de ensino remoto.
Como lembra Maria de Fátima Mello, “A pandemia da covid-19 não só expõe a desigualdade social – apesar de alguns tentarem minimizá-la ou ignorá-la –, como ainda a aprofunda, sobretudo, para a classe trabalhadora” (Mello, 2021, p. 39). A autora salienta que a escola pública já vinha passando por momentos de crise; porém, com a pandemia, o quadro se agravou, levando-a para “um lugar desconhecido, muito mais desconfortável e incerto do que o habitual” (Mello, 2021, p. 54).
No curso de formação em tela, o mercado de trabalho foi tema de diálogo e reflexão. Pensando em como orientar os alunos quanto a esse assunto e principalmente levando-os a pensar na vocação, o Docente 2 deu como sugestão promover um debate com os alunos para posteriores entrevistas com profissionais. Assim, ele pontuou:
A estratégia é chegar ao estudante de forma aparentemente despreocupada, criando mecanismos de associação entre o que pretende e o que acha mais coerente para sua vida. Para saber o que quer, é necessário que a escola possa abrir para ele um leque de oportunidades profissionais e crie entre eles possibilidades de debater e conflitar ideias e perspectivas. As entrevistas com profissionais devem ocorrer a partir de um debate anterior dos alunos com mediação do professor. Não podemos, segundo nosso conhecimento e discernimento, escolher os profissionais e as profissões que devam ser apresentadas; reafirmo que são eles que precisam ser estimulados a decidir quais profissionais querem em suas entrevistas, inclusive o que querem saber desses profissionais (Docente 2).
O alerta do professor no relato acima sobre a necessidade de ouvir primeiro as expectativas dos alunos para depois partir para a prática faz lembrar a escuta atenta da bagagem cultural dos alunos, proposta por Freire quando diz: “o educador que respeita a leitura de mundo do educando, reconhece a historicidade do saber, o caráter histórico da curiosidade, desta forma, recusando a arrogância cientificista, assume a humildade crítica, própria da posição verdadeiramente científica” (Freire, 1996, p. 77).
Ouvir os alunos para entender os seus anseios pode alargar a nossa compreensão de como vivem e convivem em seus contextos de vida familiar, lazer e trabalho. Foi o que relatou a Docente 3 após escutar atentamente os seus alunos:
Em uma dinâmica realizada em sala de aula, numa turma de NEJA III [Nova Educação de Jovens e Adultos – módulo III], com 25 alunos presentes, verificamos que apenas cinco não trabalham, só estudam. O restante está a maioria em comércio, tendo que cumprir turnos em horários variados. Uns na função de vendedor, outros como recepcionistas, operadores de caixa etc. Três trabalham em estaleiro, na função de soldador ou eletricista. Temos também alunas trabalhando como diaristas em casa de família. Todos têm pretensão de continuar estudando. Alguns querem prestar vestibular em áreas bem variadas, como: Recursos Humanos, Administração, Educação Física, Engenharia de Produção. Outros não querem fazer curso superior, mas pretendem fazer cursos técnicos. Por tudo isso, temos que estar sempre atentos a não somente passar conteúdos programáticos, mas também inserir esses alunos na realidade de nosso país, auxiliando-os em suas escolhas e perspectivas (Docente 3).
O ato de ouvir os alunos para depois pensar nos conteúdos que serão trabalhados traz sentido e motivação para o estudante trabalhador e nos leva a lembrar como os professores devem enxergar todos os alunos – não só os da EJA. De forma alguma podemos tratar os estudantes como sujeitos sem conhecimento. Como já foi dito, eles têm bagagem cultural, eles trazem saberes diferentes, oriundos de suas vivências, e esse conhecimento precisa ser valorizado, reconhecido e levado a dialogar com os conteúdos previstos no currículo formal. Nesse viés, Oliveira (2007) alerta que
os objetivos do trabalho pedagógico deixariam de ser apenas os de levar ao aluno alguns conhecimentos escolares clássicos formais e passariam a incorporar as possibilidades dos conteúdos de contribuir para as ações concretas que os alunos devem ser capazes de desenvolver na sua vida cotidiana, tanto para melhorar sua própria qualidade de vida como para associar esta com a vida do conjunto da sociedade (Oliveira, 2007, p. 98).
Enxergar os alunos da Educação de Jovens e Adultos como trabalhadores que chegam à escola com demandas exaustivas é o primeiro passo para entender a sala de aula da EJA; por isso, o olhar do professor para os alunos nunca deve ser o de arrogância e sim um olhar de compreensão que se expressa em uma atuação mais humana e solidária na partilha do conhecimento. De fato, de acordo com Haddad (2007), é necessário enxergar que não existem apenas fatores socioeconômicos que contribuem para a heterogeneidade dos educandos da EJA. Segundo esse autor, apesar de a grande maioria dos alunos pertencer às camadas mais pobres da população, outros fatores como a localização da escola (zona urbana ou rural) e se o aluno é portador de alguma deficiência, entre outras características, auxiliam os professores a ter um olhar diferenciado sobre os estudantes dessa modalidade.
Durante o curso de formação, o Docente 4, ao entrevistar os seus alunos, deparou-se com a realidade social deles:
A grande maioria dos meus alunos é de trabalhadores. Em pesquisa, descobri que muitos se submetem ao subemprego e à exploração do mercado de trabalho. Tenho na minha turma várias diaristas (sem carteira assinada), funcionários do McDonald’s como primeiro emprego, lavadores de carros em lava-jato, atendente de balcão, funcionário de padaria, segurança, manicure, motorista, e assim por diante. Nenhum deles com um emprego de especialização em algo. Trabalham em empregos que exigem deles um grande esforço físico durante todo o dia, o que os prejudica quando chegam à escola para estudar à noite. Esses mesmos alunos não têm ambição de aprender realmente os conteúdos. Eles próprios me dizem: “Professor, eu não quero aprender, eu só quero o diploma”. Acho muito lamentável esse pensamento; tento de alguma forma mudar esse pensamento deles, mas por outro lado vejo o quanto eles chegam cansados e abatidos em sala de aula. Eles não almejam, na grande maioria, ingressar em um curso superior ou se especializar em alguma profissão (Docente 4).
Esse relato, que demonstrou a angústia do professor, pode muito bem ser eco de outros educadores da EJA. Sua narrativa nos faz pensar na proposta de práticas pedagógicas mais significativas para os alunos trabalhadores, ou seja, se “os conteúdos aparentemente abstratos fossem trabalhados em relação com sua utilidade concreta, a escola poderia ter, na adesão dos alunos à necessidade de aprendizagem deles, um contributo fundamental para a facilitação dos processos pedagógicos (Oliveira, 2007, p. 90).
A própria EJA é, por si só, um desafio para o professor; nela é possível encontrar adolescentes com 15 anos, jovens, adultos e idosos estudando juntos em uma mesma sala de aula. Esse público heterogêneo merece atenção cuidadosa pela diversidade de saberes que carregam. Haddad (2007) enfatiza que um novo olhar para o educando da EJA desdobra-se em participação efetiva deles, que é o “princípio básico dos processos de escolarização, garantindo que os modelos de escola vão se produzindo e reproduzindo como resultado dessa ação participativa” (Haddad, 2007, p. 15). Assim, os conteúdos da EJA podem ser reorganizados e adaptados ao(s) tema(s) que os jovens e adultos precisam e desejam aprender, de modo que a flexibilização do currículo na EJA significa aproveitar as experiências diversas que os alunos trazem pelos processos formativos que vivenciam no trabalho, na família e na vida cotidiana. Como pontuou Freire: “não é possível ao(a) educador(a) desconhecer, subestimar ou negar os saberes de experiência feitos com que os educandos chegam à escola (Freire, 2013, p. 57).
Nesse viés, o diálogo é a peça-chave para que novas propostas de currículo possam fazer sentido para esse público. A Docente 5, mesmo depois de relatar a desmotivação dos seus alunos, apresentou possíveis soluções para reverter esse processo de desvalorização do ambiente escolar e do processo de ensino-aprendizagem. Ela apontou assim:
Os nossos alunos têm ideias de projetos de vida que nos é necessário conhecer. O diálogo é peça fundamental para que isso ocorra. O aluno precisa sentir que pode confiar em seu professor, que pode dialogar com ele sem medo da repreensão. Porém isso se daria em um ambiente ideal, em que nossos alunos tivessem comprometimento e compreendessem o valor do estudo. O que percebo em nossa escola é que muitas vezes os discentes pedem, ao entrarmos em uma sala, que façamos uma aula diferente, ou, quando se começa a relatar um assunto, percebo que eles fazem perguntas e não fazem questão de esconder que é para passar o tempo e não ter conteúdo. Que propostas podemos implementar para que haja uma mudança nessa situação? Primeiro, tentando aproximar comunidade e escola para que ocorra uma valorização do que é feito e ensinado aos alunos. Um projeto em que ex-alunos fossem relatar suas experiências e como cresceram com o que vivenciaram na escola poderia trazer um pouco dessa valorização. Segundo, realmente dando voz aos nossos alunos, promovendo encontros, debates, festivais (sendo bem sonhadora rsrsrs) que atraiam a atenção deles (Docente 5).
Ao ressaltar o diálogo em sala de aula, a Docente 5 dá ao aluno a vez e a voz e proporciona uma educação emancipadora. Ao relatar a desmotivação dos alunos, a professora revela uma angústia que a desafia a pensar em outras práticas. De certo modo, essa queixa não é solitária; ela ecoa em muitas salas de aula, como aponta Arroyo (2007) ao trazer um relato parecido:
Um professor de EJA comentava: "O que mais me impressiona nesses jovens-adultos é a falta de horizontes. Estão atolados no presente, na sobrevivência mais imediata". De fato, ninguém os perguntou, nem eles e elas se atreveram a perguntar-se "o que vou ser na vida quando crescer". Mas chegaram a escolher voltar a estudar com essas idades. Mais uma escolha nada fácil. Talvez mais um engano. Ao voltar às aulas, à noite, após o trabalho, não terão recepções como quando crianças. Nem músicas, cantos, rodas, festinhas, histórias, fantasias... O mundo encantado da infância que a escola tão bem reproduz deverá ficar distante. A EJA será mais pragmática, aprender a seco? Mais parecida com suas duras vivências de jovens-adultos? Talvez alguns coletivos de professores(as) decidam por colorido, músicas, discursos de acolhida, fantasia, sentimento. Um clima humano, como os educandos merecem, exatamente porque suas vivências de jovens-adultos são duras mesmo e porque da EJA esperam alguma forma de ser mais livres em suas escolhas (Arroyo, 2007, p. 41).
De fato, ler esses relatos nos faz pensar que ações educativas a partir da escuta atenta dos alunos torna o fazer pedagógico mais significativo. O trabalho do professor é orgânico, tem dinamismo e exige proatividade. Como lembra Tardif (2000): “O objeto do trabalho do docente são os seres humanos e, por conseguinte, os saberes dos professores carregam as marcas do ser humano” (p. 16).
Lidar com diversos outros seres humanos complexos, com volições e emoções diferentes em uma mesma sala de aula, é um desafio para o processo de ensino-aprendizagem, principalmente, quando os alunos são da EJA e chegam à escola à noite e cansados por conta do dia exaustivo de trabalho. “Motivar os alunos é uma atividade emocional e social que exige mediações complexas da interação humana: a sedução, a persuasão, a autoridade, a retórica, as recompensas, as punições etc.” (Tardif, 2000, p. 17). Sem dúvida, a autoridade e o conforto por meio do diálogo amoroso são necessários para o crescimento e para a compreensão dos mundos dos sujeitos envolvidos na sala de aula, pois ensinar exige comprometimento em uma relação de confiança que há entre os alunos e professores.
Além disso, foi possível perceber, com a escuta atenta dos professores da EJA participantes do Pacto, a importância do trabalho em equipe e da formação continuada dentro da escola. O Docente 4, quando questionado sobre as contribuições do curso, externou a relevância da troca de saberes:
O trabalho em equipe, certamente, reacendeu e fortaleceu o entusiasmo e a motivação ao preparo de novos planos de aula adequados à realidade da nossa clientela discente. O grupo apresentou-se muito harmonioso, dedicado e interessado em compartilhar as informações e conhecimentos através das trocas, possibilitando até propostas de interdisciplinaridade. Gostei demais de ter participado desse projeto e gostaria que houvesse, se possível, uma continuação dele, pois nós, professores, somos agentes em constante formação (Docente 4).
Cursos assim, como o Pacto pelo Fortalecimento do Ensino Médio, realizados dentro da escola, proporcionam uma formação mais efetiva, proveitosa e voltada para a realidade dos sujeitos da comunidade local e corroboram o que diz Nóvoa (2009) sobre a necessidade de a formação de professores ser construída dentro da profissão em diálogo direto com os colegas:
Os novos modos de profissionalidade docente implicam um reforço das dimensões colectivas e colaborativas, do trabalho em equipa, da intervenção conjunta nos projectos educativos de escola. O exercício profissional organiza-se, cada vez mais, em torno de “comunidades de prática”, no interior de cada escola (Nóvoa, 2009, p. 30).
De fato, como foi possível perceber com o depoimento do Docente 4, a formação docente dentro do espaço escolar é bastante relevante e traz benefícios múltiplos, como o estímulo ao “debate, a socialização de boas práticas, a discussão das dificuldades no processo ensino-aprendizagem de alunos jovens e adultos e a avaliação e estudo de materiais produzidos para e sobre a EJA” (Almeida, 2016, p. 6).
Por fim, a principal lição aprendida com esse curso de formação foi o valor da escuta amorosa. Como vimos, ouvir atentamente os alunos para conhecer seus saberes e suas expectativas precisa ser o ponto de partida para pensar em práticas mais significativas para os estudantes. O diálogo horizontal, respeitoso e solidário precisa marcar todo o processo educativo nas escolas. Ademais, além de escutar os alunos para entender as suas reais necessidades, a troca de saberes entre os próprios colegas professores a fim de compartilhar práticas e sugestões para o trabalho em equipe demonstrou o quão potentes são as reuniões pedagógicas para o fortalecimento do corpo docente de uma escola, pois as reflexões oriundas dessas conversas trazem acolhimento e encorajamento mútuos. Esses encontros pedagógicos periódicos são importantes para potencializar a produção de reflexões e posteriores ações educativas mais relevantes para os alunos, o que confirma que o investimento na carreira docente por meio de cursos de formação dentro da escola é urgente e precisa ser uma prática contínua.
Referências
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ARROYO, Miguel Gonzáles. Educação de jovens-adultos: um campo de direitos e de responsabilidade pública. In: SOARES, Leôncio; GIOVANETTI, Maria Amélia; GOMES, Nilma Lino (Orgs.). Diálogos na Educação de Jovens e Adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 19-50.
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Publicado em 29 de março de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
MEDEIROS, Letícia Miranda; FONTOURA, Helena Amaral da. Professores da EJA em formação ampliam perspectivas a partir da escuta dos alunos. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 11, 29 de março de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/11/professores-da-eja-em-formacao-ampliam-perspectivas-a-partir-da-escuta-dos-alunos
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