Reflexões acerca da pessoa surda e as dificuldades em reconhecer a estrutura gramatical da língua portuguesa

Shirley Alves da Silva Ferreira

Pedagoga (UNIT), pós-graduada em Atendimento Educacional Especializado e Educação Inclusiva (Farese)

Ivan Rêgo Aragão

Professor do curso de Pedagogia (UNIT), licenciado em História (UNIT), mestre em Cultura & Turismo (UESC)

Este trabalho debruça-se sobre a Educação Inclusiva, a sua essência, princípios e procedimentos as serem implementados no mundo educacional em termos organizacionais e pedagógicos. Com base em suas políticas e práticas, busca-se entender as dificuldades da pessoa surda na compreensão da estrutura gramatical da língua portuguesa.

Há mais de 30 anos as leis em favor da pessoa surda deram inicio aos direitos adquiridos por essa parcela de estudantes, muitas vezes preterizados pelo sistema educacional. Desde a Constituição Federal de 1988, passando pela LDB (1996), pelos PCN, pela Lei nº 10.436/02 e pelo Decreto nº 5.626/05, a educação tem sido vista de modo inclusivo, em nível nacional. A Declaração de Salamanca em 1994 trouxe ambrangência internacional, ao tema. É uma resolução das Nações Unidas que trata dos princípios, política e práticas em Educação Especial. Adotada em Assembleia Geral, apresenta os procedimentos padrão das Nações Unidas para a equalização de oportunidades para pessoas com deficiência. É considerada mundialmente um dos mais importantes documentos que visam a inclusão social.

Ainda com os avanços socioeducacionais pensados para as pessoas com deficiência auditiva, existe constantamente a necessidade de repensar a inclusão escolar de maneira expansiva, proporcionando aos alunos o acesso à Libras desde muito cedo. Essa atitude traz autonomia na realização das atividades relativas ao processo de desenvolvimento, direcionando o estudante desde pouca idade a compreender melhor as estratégias para o ensino da língua portuguesa.

Nesse contexto, a família não pode deixar de fazer uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras), pois é por meio dela que as primeiras iniciativas voltadas para a comunicação acontecem. Isolar ou privar a pessoa surda da sociabilidade pode desencadear sérios problemas relacionados a fatores emocionais e cognitivos, visto que a Libras é a primeira língua de comunicação e expressão da pessoa surda, realizada de forma visual.

As dificuldades das pessoas surdas na comunicação estão relacionadas aos problemas de enfrentamento em (re)conhecer a língua portuguesa, por que ela tem uma estrutura gramatical diferente da Libras; muitas pessoas que usam a Língua Brasileira de Sinais não se alfabetizaram em língua portuguesa, por isso não sabem ler ou não conseguem entender totalmente o contexto de materiais escritos. Aqui entra a importância de iniciativas e estratégias de ensino-aprendizagem para que a pessoa surda adquira autonomia.

A justificativa deste trabalho se dá pela revisão e análise relativas às mudanças e metodologias que estão sendo propostas na educação para atender às especificidades desse alunado, tendo como pressuposto compreender a necessidade de um melhor acesso e interação na comunicação dos surdos e buscando uma maneira de contribuir para que a escola seja um ambiente de relações mais agradáveis, comunicativas, inclusivas e que busca oportunizar a equidade a todos, construindo materiais estruturados para subsidiar o ensino da língua portuguesa como segundo idioma da pessoa surda.

A hipótese que guia este trabalho é compreender as dificuldades da pessoa surda na compreensão da língua portuguesa. Esse é o caminho mais adequado a ser executado para alcançar autonomia nas atividades educativas com colegas não surdos, seja na escola ou fora dela. O estudante surdo usuário de Libras tem maior independência na escola no tocante à assimilação do conhhecimento do currículo formal adaptado.

Concomitante ao conhecimento da linguagem de sinais, conhecer os aspectos da lingua portuguesa instiga os discentes a manifestar interesse em perceber os processos de aprendizagem para um desenvolvimento subjetivo, desenvolvimento esse pautado na vivência do aluno, suas diferenças culturais e históricos educacionais diferenciados, primando e incentivando um atendimento democrático do ensino da Libras em todas as etapas do ensino básico.

Os objetivos deste estudo reflexivo-crítico foram analisar e discutir estratégias de ensino para pessoas surdas e promover reflexão acerca das dificuldades que o surdo apresenta.

A metodologia utilizada para a construção deste trabalho foi a pesquisa bibliográfica com aspectos qualitativos, a partir da fundamentação teórica em Guedes (2006), Lacerda (2009), Masini (2004) e Turetta (2009), entre outros.

Desenvolvimento

O conteúdo que contempla esta seção foi obtido por revisão bibliográfica, estabelecido pelo primeiro contato com o tema proposto, que discute as dificuldades da pessoa surda em compreender a estrutura gramatical da língua portuguesa e as estratégias utilizadas pelo professor para fazer alcançar o conhecimento ao aluno surdo.

A escola tem papel importantíssimo na sociedade; portanto, é inegável o valor cultural atribuído à escola pela comunidade que ela hospeda. Professores, interpretes, gestores e alunos apontam com positividade a inserção do estudante de Libras no espaço escolar da escola inclusiva (Lacerda, 2006). Sendo um ambiente de diversidade, no espaço escolar se compartilham saberes e fazeres que enriquecem as experiências, amadurecem as ideias e tornam os indivíduos mais produtivos. A escola é um espaço heterogêneo, que busca compreender diferentes formas de expressão e reação de cada pessoa.

Turetta e Goes (2009) informam que está no papel da escola entender a diversidade, privilegiando o sujeito como indivíduo e valorizando os saberes advindos de sua realidade. De acordo com as autoras,

cabe à escola identificar as peculiaridades de cada indivíduo, considerar suas diferenças orgânicas e/ou constituídas socialmente e fornecer recursos, métodos de ensino e de avaliação diferenciados para cada um de seus alunos; para isso é preciso levar em conta que os objetivos devem ser igualitários, mas que os meios para atingi-los podem e devem ser diferentes, adequados à realidade de cada educando (Turetta; Goes, 2009, p. 82).

Vale ressaltar que, como informam Mendes, Figureiredo e Ribeiro (2015, p. 33), “a inclusão não pode ser concebida como mera inserção, alocação, integração do aluno surdo no espaço escolar, mas como aquela que atente à diversidade e contemple conhecimentos sobre as especificidades de todos os alunos”, ou seja, estudantes não surdos e surdos possuem os mesmos direitos no processo de formação educacional e cidadã.

Essa é uma orientação de que a escola e o professor devem atuar de maneira democrática, dando oportunidades de aprendizagem a todos; por isso, a escola deve procurar se preparar para a construção de novas metodologias e desafios, pois só a partir da redemocratização da educação, a sociedade cumpre as determinações exigidas por lei para garantir acessibilidade a pessoas com alguma especificidade.

Numa perspectiva que transcende a visão integracionista, a inclusão “pretende a construção de uma nova sociedade, propondo mudanças na consciência e na estrutura social” (Machado, 2008, p. 37). Sabe-se que, em teoria, essa ideia se torna algo que não requer tantos esforços ou é até romantizada. No entanto, são nescessárias práticas em prol da inclusão de pessoas com deficiência (PcD). Para Masini (2004, p. 31), “a Educação Inclusiva abandona a ideia de que só a criança normal pode contribuir, volta-se para o atendimento às necessidades da criança com deficiência, e para tal requer um currículo adaptado”.

Dentro do universo surdo, o aluno precisa muito mais que um intérprete de Libras; o professor precisa mudar sua prática, atentar para as habilidades visuais da pessoa surda e aproximar-se do aluno para conhecer suas peculiaridades. Lacerda (2009) ressalta que apenas a presença do intérprete de Libras em sala de aula não garante o sucesso da aprendizagem. Machado (2008) registra a necessidade de conhecer as peculiaridades dos alunos surdos para, a partir desses conhecimentos, identificar necessidades diferenciadas no processo de ensino-aprendizagem.

A orientação dos estudiosos sobre o plano de ensino e currículo é de que, ao entrar na sala de aula, o professor de Língua Portuguesa já deve ter definidos objetivos que norteiam sua prática ao longo do processo, porém seu plano de ensino não deve estar cristalizado. Um plano de aula flexivel ajuda na identificação das necessidades de aprendizagem específicas da classe, fazer alterações ou até mesmo incluir ações que julgar pertinentes. Uma vez traçados os objetivos, o professor parte para a definição das estratégias.

Para alcançar os objetivos propostos, o professor deve definir estratégias que possam privilegiar diferentes habilidades. A melhor forma de ensinar é a forma como o aluno aprende. Talvez por essa razão, Guedes (2006) proponha um olhar democratizante para a educação, capaz de enxergar as amarras que se configuram no ensino de Língua Portuguesa. Critica as “decorebas” gramaticais que extirpam as possibilidades de interação discursiva e interativa da língua que não valorizam a língua brasileira na leitura e escrita produzidas empiricamente nas relações sociais dos estudantes.

As estratégias utilizadas para o trabalho com o aluno surdo enfatizam o uso de imagens, desenhos e tudo que possa privilegiar a cultura visual dos surdos; no entanto, ao trabalhar sílabas tônicas, o conteúdo exige um domínio que os surdos não possuem: o som; assim, destacar sílabas tônicas de palavras colocadas em um cartaz em nada ajuda o aluno surdo.

As adaptações curriculares oferecem flexibilidade para o professor selecionar os conteúdos conforme julgar significativo e funcional para o aluno com deficiência. Sendo assim, há que se refletir sobre a funcionalidade de explorar sílabas tônicas ou o estudo do som das palavras com alunos surdos. Pensar na aprendizagem de Língua Portuguesa de forma discursiva demanda abordagens que utilizem textos de diferentes intenções comunicativas. O trabalho com “picuinhas da gramática”, como afirma Guedes (2006, p. 14), não leva ao domínio do uso social da língua em diferentes contextos.

Mediante os vigores da lei, espera-se que a presença do intérprete da Língua Brasileira de Sinais favoreça e facilite uma melhor compreensão e aprendizado da pessoa surda. Sobre essa colocação, Lacerda (2009, p. 34) afirma que “a presença de um ILS (intérprete de língua de sinais) não garante que questões metodológicas sejam consideradas e também não existe garantia de que o espaço socioeducacional em um sentido mais geral seja adequado”. Segundo a autora, o processo de ensino se faz nos procedimentos metodológicos e nas adaptações adequadas, algo que cabe apenas ao professor definir. O intérprete da lingua de sinais, pelas atribuições de sua função e por sua formação, não garante ao aluno surdo uma educação plenamente inclusiva.

O intérprete de Libras é apenas um dos elementos constituintes da inclusão que, por si só, pode não garantir a total acessibilidade. Sem conhecimento das peculiaridades do aluno surdo, o professor limita as possibilidades de traçar objetivos, estratégias e procedimentos de avaliação que atendam às necessidades, respeitem as peculiaridades e potencializem as habilidades desse educando. Há um mito de que, se o aluno surdo tem um intérprete de Libras, não se faz necessária qualquer outra adequação na prática educativa. É como se a simples presença do intérprete tornasse o processo completo.

Caso a adaptação curricular na disciplina de Língua Portuguesa demande estratégias pedagógicas diferenciadas, não se pode aceitar atividades que utilizem exclusivamente textos escritos, complementadas com apresentação de vídeos sem legenda e debates orais sobre o tema que eles abordam, como se o surdo tivesse o mesmo acesso às informações que o aluno ouvinte.

A adaptação curricular também implica respeito ao pluriculturalismo ou multiculturalismo. A cultura afro-brasileira está dentro das escolas, assim como a cultura indígena, mas a cultura do povo surdo, que tem uma história rica de lutas, conquistas, contribuições sociais e episódios que servem de experiências de vida para toda uma sociedade, não é contemplada nos currículos escolares. Quando se fala de inclusão, de convivência entre diferentes culturas, pressupondo-se que o surdo precisa conhecer os saberes convencionalmente instituídos pelos ouvintes, é no mínimo incoerente que o surdo seja privado de conhecer sua própria história e compartilhá-la com seus pares ouvintes.

Se o objetivo é formar sujeitos letrados, que não apenas saibam ler e escrever, mas cidadãos criticos que articulem seus conhecimentos aos diversos usos sociais, deve-se então contemplar conteúdos que favoreçam sua autonomia, que possibilitem a leitura de forma crítica, que os levem ao exercício de identificar as diferentes intenções comunicativas de cada gênero textual.

Espera-se de um ensino “inclusivo” de Língua Portuguesa que ele seja capaz de orientar os alunos para que façam considerações sobre o que é proposto, conheçam a estrutura sintática da segunda língua de forma usual, praticando a escrita, relacionando as culturas existentes nas duas línguas (a portuguesa e a de sinais), tenham contato, em diversos contextos, com diferentes significados, inclusive com expressões idiomáticas que fazem parte apenas do folclore da língua oral e que não são conhecidas pelos surdos, justamente porque as experiências sociais viabilizadas pela audição não possibilitam que eles compartilhem essas informações.

Considerações finais

A proposta apresentada neste estudo reivindica um olhar diferenciado quanto ao ensino da Língua Portuguesa e suas peculiaridades. A competência comunicativa baseia-se na realidade linguística de seus usuários; por essa razão, o ensino da Língua Portuguesa, segunda língua para os surdos, deve contemplar a diversidade de tipologia textual, além de atividades escritas.

A adaptação dos conteúdos deve ser considerada indispensável para o aluno ter acesso ao conhecimento dessa nova língua; assim, o professor deve ter conhecimento de Libras e não se debruçar no intérprete como se ele fosse suficiente para garantir a acessibilidade e o conhecimento.

O professor deve adequar sua prática de ensino, basear-se nos significados prévios que esse aluno construiu em sua primeira língua, fazendo relações e contrastes com a língua que está adquirindo.

É preciso que o aluno surdo tenha conhecimento da estrutura sintática da segunda língua de forma usual, praticando a escrita, relacionando as culturas existentes nas duas línguas (a portuguesa e a de sinais).

Referências

BRASIL. Decreto nº 5.626/05. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Brasília: MEC, 2005.

GUEDES, Paulo Coimbra. A formação do professor de Português: que língua vamos ensinar? São Paulo: Parábola, 2006.

LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de. A inclusão escolar de alunos surdos: o que dizem alunos, professores e intérpretes sobre essa experiência. Caderno Cedes, Campinas, v. 26, nº 69, p. 163-184, maio/ago. 2006.

______. Intérprete de Libras. Porto Alegre: Mediação, 2009.

______; BERNARDINO, Bruna M. O papel do intérprete de língua de sinais nas etapas iniciais de escolarização. In: LODI, Ana C. B.; LACERDA, Cristina B. F. Uma escola, duas línguas: letramento em língua portuguesa e língua de sinais nas etapas iniciais de escolarização. Porto Alegre: Mediação, 2009. p. 65-80.

MACHADO, Paulo César. A política educacional de integração/inclusão: um olhar do egresso surdo. Florianópolis: Ed. UFSC, 2008.

MASINI, Elcie Aparecida Fortes Salzano. Uma experiência de inclusão: providências, viabilização e resultados. Educar em Revista, Curitiba, nº 23, p. 29-43, 2004.

MENDES, Ana Quelle S.; FIGUEIREDO, Fernanda; RIBEIRO, Antônio C. Inclusão de alunos surdos na escola regular: aspectos linguisticos e pedagógicos. Revista de Iniciação Científica – RIC Cairu, v. 2, n° 2, p. 33-46, jun. 2015.

TURETTA, Beatriz dos R.; GÓES, Maria Cecília R. de. Uma proposta inclusiva bilíngue para as crianças menores. In: LODI, Ana C. B.; LACERDA, Cristina B. F. de. Uma escola, duas línguas: letramento em língua portuguesa e língua de sinais nas etapas iniciais de escolarização. Porto Alegre: Mediação, 2009. p. 81-98.

Publicado em 29 de março de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

FERREIRA, Shirley Alves da Silva; ARAGÃO, Ivan Rêgo. Reflexões acerca da pessoa surda e as dificuldades em reconhecer a estrutura gramatical da língua portuguesa. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 11, 29 de março de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/11/reflexoes-acerca-da-pessoa-surda-e-as-dificuldades-em-reconhecer-a-estrutura-gramatical-da-lingua-portuguesa

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