"Dr. Fantástico" e a Guerra Fria

Marcelo Goulart de Oliveira dos Santos

Licenciado em Historia (UNIRIO), pós-graduando em História e Cultura Afro-Brasileira (UCAM)

A partir do fim do século XX, o cinema passou a exercer maior influência no trabalho historiográfico brasileiro como fonte de estudos acadêmicos. As transformações na maneira como se produz e se entende a memória levou a várias teorias sobre o significado da contemporaneidade para o homem. Pela primeira vez, o ser humano pode a partir da arte cinematográfica perpetuar momentos históricos em cores, luzes, formas e ações. Por isso, Marc Ferro encara o cinema como uma testemunha singular da História, livre de qualquer submissão já que pode revelar por meio da imagem significados que ficariam ocultos ou passíveis de manipulação se não fossem descortinados pelas lentes da câmera (Ferro, 1992).

Primeiramente, entendemos a Guerra Fria e as suas singularidades como fatos que não ameaçavam, de forma grave, uma possível Guerra Mundial. Contextualmente, os EUA mantinham o monopólio das armas nucleares e ampliaram declarações de anticomunismo agressivas e militantes. Quando a URSS conseguiu construir armas nucleares, as duas superpotências largaram a guerra como forma de ferramenta política.

Sendo assim, a Guerra Fria foi usada, pelos países supracitados, como experiência a fim de corresponder à luta pela superioridade sob as bases de um serviço secreto ainda pouco reconhecido. A Guerra Fria criou, então, os grandes órgãos de espionagem que trabalhavam pelo mundo, a saber, a CIA (Central Intelligence Agency) e a KGB, sigla em russo para Comitê de Segurança do Estado. Baseada na crença ocidental de que o futuro do Capitalismo mundial e da sociedade liberal assegurariam o futuro, a Guerra Fria subjugava os países beligerantes, menos os EUA, tornando-os um campo de ruínas, que ao mesmo tempo punham-nos dispostos a ouvir o apelo da revolução social.

Portanto, essa Guerra Fria desenvolveu-se “através de ações governamentais pelos líderes de cada bloco, cada um interessado em expor a hegemonia do sistema que representava. Desse modo, filmes, cartazes, textos e outras manifestações foram vistos como um modo de propagandear a visão de mundo de cada um dos blocos. Apesar de significativas, tais manifestações culturais não encerraram a questão do desenvolvimento da Guerra Fria” (Silva, s.d.). Como Bezerra (2019) afirma:

A Guerra Fria foi uma luta ideológica entre o comunismo versus capitalismo. A fim de disputar a liderança mundial, ela foi representada pela União Soviética e os Estados Unidos. Esta conflagração teve início após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e ficou assim conhecida porque ambos os países nunca se enfrentaram diretamente num conflito em seus territórios. Ao fim das negociações entre os vencedores da Segunda Guerra Mundial, a Europa ficou dividida em duas partes. Estas correspondiam ao limite do avanço de tropas soviéticas e americanas durante a guerra. Em 1947, com o objetivo de combater o comunismo e a influência soviética, o presidente americano Harry Truman proferiu um discurso no Congresso. No mesmo ano, o secretário de Estado americano, George Marshall, lançou o Plano Marshall, que propunha a ajuda econômica aos países da Europa Ocidental. E outra parte, a crise dos mísseis teve origem na pretensão soviética de instalar bases e lançamento de mísseis em Cuba. Isto seria uma ameaça constante para os Estados Unidos. A reação americana se fez imediata, através de um bloqueio naval sobre Cuba, o único país da América que havia adotado o regime socialista. O mundo conteve a respiração, pois nesse momento, as chances de uma terceira guerra mundial eram reais.

O fim da Guerra Fria tirou os esteios que sustentavam a estrutura internacional dos sistemas políticos internos mundiais. Sendo assim, restou, em parte, apenas um mundo em desordem e colapso. No ano de 1947, os EUA reconheceram a necessidade de um imediato projeto para restaurar as economias europeias ocidentais. Houve consequências econômicas e políticas e o considerado “Terceiro Mundo”, por combater o racismo, o subdesenvolvimento e desejar o apoio internacional, não quis participar da Guerra Fria.

No seu discurso, Nasser nacionaliza o Canal de Suez e exalta a vitória, no momento em que se comemora, também, cinco anos de revolução e de luta contra o passado. Nasser percebe que a guerra, política e econômica, ainda não havia chegado ao fim. Em sua manifestação, relata que o imperialismo tentou arruinar o nacionalismo e que foi por isso que se criou o Estado de Israel.

Caso paremos para pensar a respeito do discurso de Nasser, este tem total relação com a Guerra Fria, pois mesmo que não houvesse mortes, como as ocorridas na 2ª Guerra Mundial, houve crises e conflitos que até hoje podem ser sentidos como reflexos dessa Guerra. À guisa de exemplo, temos a crise do Canal de Suez, iniciada em 1956, quando Nasser resolveu nacionalizar o Canal, como dito acima. O Canal possuía petróleo e ligava o Mar Vermelho ao Mediterrâneo. Capitais francesas e britânicas controlavam o processo, mas por causa do nacionalismo de Nasser, a Grã Bretanha e a França, unidas à Israel, resolveram formar uma intervenção militar. Com isso, o Canal foi tomado pelo poderio militar de franceses e britânicos. Como afirma Antonio Gasparetto Junior:

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, pairava no mundo a Guerra Fria, que rivalizava os países do bloco capitalista e os países do bloco comunista. O apoio dado pelos soviéticos ao Egito e seu projeto de reformas incomodou a França, a Inglaterra e Israel, países do bloco capitalista com interesses diretos na região. Para ampliar a tensão, os egípcios determinaram o fechamento do porto de Eliat e a nacionalização do Canal de Suez. A situação preocupou os países capitalistas, os quais ficaram receosos de que os soviéticos estivessem conquistando um importante aliado no Oriente Médio (s.d.).

Há diversos filmes que retratam o tema da Guerra Fria – como a película Dr. Fantástico, do ano de 1964. O filme narra os três principais acontecimentos ao longo do período da guerra: o levantamento do Muro de Berlim, feito pelos soviéticos, a crise dos mísseis, que aterrorizou o globo com a possibilidade de gerar uma guerra nuclear e o homicídio do presidente dos EUA, John Kennedy. Tais eventos fizeram com que o mundo se visse predestinado ao fim e que somente a URSS e os EUA poderiam tomar decisões a este respeito. Pode-se observar, no filme, o repúdio à guerra e aos comandantes aptos a produzirem, por meio das armas nucleares, a destruição total em prol dos seus próprios interesses.

O filme Dr. Fantástico surge exatamente no período quando o Ocidente está sofrendo com o impacto dos episódios da Guerra Fria. Sua primeira exibição deu-se como um teste, no dia do assassinato de John Kennedy, inspirado na obra literária Alerta Vermelho, de Peter George. Nesse livro, o autor relata os desastres da política, enquanto na obra cinematográfica o diretor, Stanley Kubrick, a partir de um olhar diferenciado, traz a comédia para tratar dos desastres que a humanidade produz. O personagem Dr. Fantástico, cujo ator é Peter Sellers, é um deficiente físico em cadeira de rodas acometido por uma doença incomum. No filme, o protagonista comunica-se por uma pronúncia alemã e com saudações nazistas. Dr. Fantástico foi inspirado em quatro cientistas reais e importantes, que atuavam em projetos militares nos EUA: Herman Kahn, Edward Teller, Wernher e John Von Neumann.  

Em 1964, a Guerra Fria polarizava o mundo, cada vez mais. De um lado, os norte-americanos, do outro, os russos. No meio de tudo, os espiões comunistas e ianques, além da paranoia e do medo de uma guerra nuclear. O mais absurdo aconteceu dois anos antes, quando os Estados Unidos descobriram e revelaram ao mundo as bases dos mísseis em Cuba, justamente a ilha que passava por uma revolução socialista. O filme de Stanley Kubrick ousou transformar o assunto em uma grande piada de humor negro, nos cinemas (Bonez, 2017).

Ao pesquisarmos sobre Dr. Fantástico, percebemos algumas características importantes que devem ser mencionados como, por exemplo, no início do filme a cena com a frase em cartaz, ao fundo, “A paz é nossa profissão”. Frase irônica, repetida durante toda a cena e que intitula uma base militar.

Em certo momento do filme, fala-se sobre a disputa dos serviços secretos, mostrando que o general americano, Jack Ripper, de humor bem alterado, determina um ataque nuclear aos comunistas soviéticos por haver uma suspeita de envenenamento na água do muro. O filme deixa uma percepção de que a guerra é um jogo, pois não se sabe quem a comanda. O capitão Lionel Mandrake não está convicto do conluio soviético em relação à água, então Jack Ripper autoriza o ataque nuclear à URSS, mesmo não tendo a autorização para o ataque.

Mostra-nos, assim, que houve muitas ameaças e provocações, deixando evidente a Guerra Fria como um confronto militar cada vez mais explosivo, ou seja, mais armamentista para o Ocidente, com graves consequências políticas. Dr. Fantástico é especialista em armas nucleares, alemão, nazista e tornou-se o pilar do presidente dos EUA. No decorrer do filme, percebemos que o autor ironiza aquele período de tensão instaurado, fazendo duras e irônicas críticas às duas potências que tinham a capacidade de provocar um desastre mundial, mudando os caminhos da humanidade.

Por meio do humor, o filme, então, relata o que poderia ter acontecido se tivesse ocorrido uma guerra nuclear no mundo. Após a Segunda Guerra, a humanidade encontra uma paz aparente e um globo dividido em dois polos políticos: os EUA capitalista e a URSS socialista. O filme mostra que ambos os lados se colocam em posições de superioridade, pois há uma clara disputa de uma nação contra a outra, além de muitos investimentos em tecnologias bélicas de ambas as partes. Portanto, o filme Dr. Fantástico é sobre a Guerra Fria. Nele, inclusive, temos a apresentação da chamada Sala de Guerra, onde há uma grande mesa redonda sobre a qual o presidente, os generais e o embaixador soviético decidem os rumos da humanidade.

No filme Dr. Fantástico, a Guerra Fria é traduzida como uma “Guerra de desiguais”, sem contar que, com o seu fim, os pilares que sustentavam a estrutura internacional dos sistemas políticos revelam ainda um mundo bagunçado. Então, os EUA percebem que precisam recuperar a economia europeia ocidental por ocasião dos impactos políticos e econômicos. A partir da crise na URSS e na Europa Ocidental, o filme mostra as incoerências e as contradições da Guerra Fria, pois ambas as potências se abastecem de armamentos para conservar a paz. Trata-se de um filme que se utiliza da ironia para realizar uma crítica importante em relação à Guerra Fria. Um bom filme em que o Dr. Fantástico torna-se material complementar de suma importância, pois o filme trata ainda das relações internacionais, como o conflito entre os dois blocos conflitantes, capitalista e socialista. A Guerra Fria é usada, portanto, como pano de fundo do filme para elucidar esse período da História, trazendo a queda do socialismo, ocorrida em 1991, como característica da divisão geopolítica do mundo.    

Referências

BEZERRA, Juliana. Guerra Fria. Toda Matéria. Disponível em:  https://www.todamateria.com.br/guerra-fria/

BONEZ, Matheus. Dr. Fantástico. Papo de Cinema. Disponível em: https://www.papodecinema.com.br/filmes/dr-fantastico/

FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

GASPARETTO JUNIOR, Antonio. Guerra de Suez. Infoescola, navegando e aprendendo. Disponível em: https://www.infoescola.com/historia/guerra-de-suez/

ORIENTE MÉDIO – da Guerra de Independência à crise do canal de Suez. História em gotas. YouTube,04 fev., 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kIOXah923M0

SILVA, Daniel Neves. Guerra Fria. Mundo Educação. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/historiageral/guerra-fria.htm

Publicado em 19 de abril de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

SANTOS, Marcelo Goulart de Oliveira dos. "Dr. Fantástico" e a Guerra Fria. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 14, 19 de abril de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/14/dr-fantastico-e-a-guerra-fria

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