O bruxo, a vidente e a cabocla: ecos da clarividência na obra de Machado de Assis
Hugo Carvalho Villa Maior
Professor (IFRN) e doutorando em Estudos da Literatura (UFF)
Machado: da tradição à modernidade
Segundo os compêndios literários, a obra de Machado de Assis pode ser dividida em dois momentos: o primeiro deles relacionado a uma fase mais romântica do escritor; as obras relativas a esse período são: Ressurreição, Iaiá Garcia, Helena e A mão e a luva. As obras relativas à segunda fase do escritor se relacionam ao chamado realismo.
Encabeçando essa lista está Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), tido pela própria crítica literária como romance inaugural do chamado realismo no Brasil. Para Bernardo (2010), a divisão da obra de Machado em duas fases chega a fazer algum sentido se porventura adotarmos um critério de ordem técnica como, por exemplo, os tipos de narrador. Se na primeira fase, mais romântica, temos um narrador onisciente, consciente de todo o enredo, todo forjado, construído em terceira pessoa, já na segunda fase temos um narrador parcial, em primeira pessoa, que vai tomando consciência da história, do enredo praticamente junto com o leitor.
Porém tal critério está fadado ao fracasso, uma vez que, segundo o próprio Bernardo, o narrador em primeira pessoa está muito mais próximo, estruturalmente, do romantismo do que do realismo, enquanto um narrador de terceira pessoa é, estruturalmente, muito mais próximo do realismo do que do romantismo, pensando na própria proposta estética do realismo e do contexto em que, de modo geral, ele estava inserido, pensando no próprio advento da fotografia que surgia, naquele momento, como uma possibilidade de captação do real.
Bernardo (2010) também deixa claro que não defende a inversão dos critérios nem dos narradores. Porém faz questão de salientar que o critério de divisão da obra machadiana em duas fases nunca foi literário e sim cronológico, histórico, tal como tem se constituído o ensino de literatura no Ensino Médio: a partir de uma linha do tempo. E pensar a literatura com base em uma linha do tempo não é necessariamente equivocado. Entretanto, é apenas um dos modos que temos para refletir a respeito dessa produção literária. O fato de a tradição escolar ter por costume refletir a respeito da produção literária a partir de uma linha do tempo não quer dizer que ela seja a única correta.
Logo, são de primordial importância trabalhos que insiram a produção literária de Machado de Assis na esteira propriamente da ficção porque, embora trate de temas sociais em suas obras, inclusive em Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que analisa, sobretudo, as raízes de um país escravocrata como o Brasil, ter um defunto-autor ou um autor defunto como narrador, como preferirem, não é um traço necessariamente realista. Por isso, talvez seja importante um diálogo de Machado com aquilo que é, a princípio, invisível aos olhos: o onírico, a feitiçaria, a cartomancia e o mundo das adivinhações. Porque, ainda que Machado flertasse também com o ceticismo – e ele flerta –, não é à toa que o autor é conhecido também pela alcunha de “Bruxo do Cosme Velho”.
Da Rua da Guarda velha ao Morro do Castelo: uma cidade atravessada
A partir da experiência de Tirésias, que ganhou o dom clarividência de Zeus após ficar cego por conta de um castigo da deusa Hera ao opinar em um conflito entre Hera e o próprio Zeus a respeito de quem teria mais prazer na relação sexual, se o homem ou a mulher, é válido refletir sobre duas personagens machadianas que também se relacionam, de alguma maneira, com a clarividência: a cartomante e a cabocla do castelo. A primeira é personagem título de um conto publicado em 1884 na Gazeta de Notícias; a segunda é personagem da cena que abre o romance Esaú e Jacó, livro publicado em 1904, já nos primeiros anos do século XX.
Vale lembrar que, antes de ficar cego por conta de um castigo de Hera, Tirésias viveu sete anos no corpo de uma mulher após matar uma cobra no monte Citeron, na região ática, e tanto a cartomante quanto a cabocla são personagens em corpos femininos, mulheres importantes na obra machadiana que flertam, de alguma maneira, com o dom e o estigma da clarividência, tal como Tirésias.
Nesse sentido, como aporte teórico para este trabalho, é preciso pensar a questão do riso que, em alguma medida, traz o deboche, traz o escárnio, mas também traz o riso como ironia fina, aguçada, tão peculiar à pena machadiana, ou mesmo refletir a respeito dessa linha tênue dos limites que compõem um e outro, o deboche e a ironia, não necessariamente nessa mesma ordem, uma vez que a própria cabocla, ao falar numa linguagem simbólica, é interpretada de maneira equivocada por suas interlocutoras, e a segunda, a cartomante, se equivoca grosseiramente em suas previsões.
E como o próprio riso, durante muito tempo, ocupou esse lugar do corrosivo, do satírico, esse lugar que pertenceu somente às bruxas, essas mesmas bruxas que foram queimadas nas fogueiras da Idade Média, pensar em bruxarias, adivinhações e clarividências é, de alguma maneira, pensar também na história do riso e no que ele tem de burlesco, no ele tem de grotesco, na medida em que o próprio riso também desloca sentidos, negocia significados, transitando, no limite, entre aquilo que é necessariamente sagrado, como a alegria, por exemplo, e aquilo que é da ordem do profano, como a própria festa de carnaval, que também transita nesses dois universos, segundo Bakhtin. “A cartomante sorriu” e como esse sorriso traz consigo uma confirmação, uma confissão da moça, uma confissão que significava quase um pacto, uma compreensão de toda aquela situação, um riso que tornava a própria cartomante quase cúmplice do adultério, um riso que tornava a própria cartomante cúmplice tanto de Rita quanto de Camilo.
Nesse sentido, também, é necessário trazer para este trabalho, para este diálogo toda uma reflexão sobre esse espaço de enunciação das adivinhações, retomando aí o próprio Bakhtin e o percurso desses discursos adivinhatórios que, precisam estar, em alguma medida, na esteira do simbólico, território em que nos confrontamos, na medida também que nos deparamos com essa linguagem quase labiríntica do próprio texto literário, “a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo”, como diz a cartomante à pequena Rita, numa de suas primeiras consultas.
Ainda para Bakhtin, a linguagem, bem como a própria língua, não é meramente um canal, um instrumento de comunicação; o autor considera toda uma produção que se dá na cultura, no simbólico, uma permanente negociação entre enunciado e enunciação, sobretudo se refletirmos a respeito das especificidades do texto literário. Daí, é preciso retomar o próprio mito de Tirésias, cujo discurso se dá essencialmente no simbólico, um discurso que se constrói entre o feminino e o masculino, entre a cegueira e a vidência, um discurso que já nasce, necessariamente, entre a crença e descrença, num espaço-limite, assim como num tempo-limite, num entre-lugar, num discurso de fronteira, “Tirésias, você que foi os dois, quem goza mais: o homem ou a mulher?”.
E, ao contrário da segurança que nos dão alguns falsos discursos adivinhatórios, o discurso de Tirésias, assim como sua própria figura, nos propõe a dúvida, instaurando inclusive esse sujeito cindido, dividido, que hoje se debruça sobre a Psicanálise, que segue aprendendo a lidar com a própria falta, porque é dessa falta, sobretudo, dessa falta de jeito em lidar, em manejar a própria angústia, que o sujeito vai buscar uma segurança nos chamados discursos adivinhatórios das cartomantes e das caboclas, ainda que sejam falsas cartomantes e falsas caboclas, “como mentiam as cartomantes/como eram falsas as bolas de cristal”, já dizia o poeta. “Esta levantou-se rindo”, e o riso, mais uma vez, segue costurando uma cena, uma situação, o riso como um passaporte necessário para se transitar entre esses dois mundos, entre esses dois universos que é o sagrado e que é o profano necessariamente, o que nos leva a compreender a razão de esse riso estar sempre na boca das caboclas, das cartomantes, das adivinhas, porque elas são como Hermes, o semideus que transita entre dois mundos: além de videntes, são também mensageiras de boas e más notícias. Não é à toa que Hermes, além de mensageiro dos deuses, é também o deus dos viajantes e patrono da Astronomia.
A própria Psicanálise, que, na sua essência, se relaciona com as experiências de Charcot com a hipnose, em certa medida, de uma maneira ou de outra, se relaciona também com esses discursos adivinhatórios; de alguma maneira, também a figura do analista se aproxima do mito de Tirésias. Não é de hoje que a Psicanálise, por exemplo, se serve da literatura para pensar as próprias questões humanas que são compreendidas como universais. É preciso refletir sobre a ambivalência dos personagens machadianos, pensar na dualidade das mocinhas, nas relações estabelecidas entre os personagens e em que medida esses personagens se encaixam na narrativa, em que medida esses mesmos personagens se tornam importantes na própria construção de sentido dessa tessitura, em que medida esses personagens são imprescindíveis, ou não, para a própria construção de sentido desse texto.
Só a partir do momento em que entendemos como se opera essa lógica de personagens humanos tão complexos é que talvez possamos compreender também por que escolher, analisar duas personagens que estão ali no limite entre o humano e o divino, por que pensar duas personagens que transitam entre as questões terrenas e a clarividência. Por que não pensar, por exemplo, em Rita e nessa angústia de se ver apaixonada pelo amigo do marido.
Poderíamos aproximá-la, por exemplo, de Capitu e pensar o que aproxima e o que afasta as duas mocinhas machadianas, o que renderia uma excelente discussão: duas personagens que se constroem na sombra de um adultério. Poderíamos estabelecer, também, um diálogo entre Rita e Marcela, que “amou-me por quinze meses e 11 contos de réis”; poderíamos analisar por que Flora, dividida entre Pedro e Paulo, acaba por sucumbir à morte: prefere a morte a ter que escolher entre os gêmeos. Aliás, nada mais romântico para a tal crítica literária que diz ser esse Machado, sobretudo esse Machado da segunda metade do século XIX, tão realista. E a partir daí poderíamos construir um espectro, um perfil mais aprofundado das mocinhas machadianas; ainda assim, estaríamos no campo do feminino como na ideia inicial.
Mas por que insistir nessa ideia inicial? Por que refletir a respeito de duas personagens como a cabocla do castelo e a cartomante, uma vez que nenhuma delas é, de fato, a protagonista da trama? Na verdade, não é bem assim. Se, por um lado, quem tem o protagonismo de A Cartomante são os três vértices desse triângulo amoroso – Camilo, Rita e Vilela –, por outro lado é a personagem da cartomante que não só dá título ao conto, à narrativa, como também é a própria cartomante que trata de cerzir, costurar toda a trama, assim como as três bruxas em Macbeth, as moiras, as parcas, que, como num passe de mágica, costuram o destino do próprio Macbeth, o futuro rei da Escócia. Logo, é também a própria cabocla do castelo que faz ecoar o canto, o seu pranto, as suas previsões durante todo o texto, ainda que apareça apenas na cena inicial de Esaú e Jacó, “você quer ver como elas vão à cabocla?”, dizia um castelense, como eram conhecidos os moradores do Morro do Castelo àquela altura.
O próprio Machado, no texto Instinto de nacionalidade, diz que pensar as questões nacionais é pensar também, em alguma medida, as próprias questões universais do ser humano. Por isso, talvez, escolher duas bruxas que flertam, em alguma medida, errando ou não, suas previsões, com o dom da clarividência para pensar não só a própria obra do Machado, como também as questões humanas/universais que o texto machadiano traz. A ideia de que o homem pode controlar seu próprio destino, sua moira, descende do próprio desejo do homem de controlar o tempo ou pelo menos enganá-lo, em alguma medida, retroceder ou adiantar o tempo, como se isso fosse possível.
A ideia de controle do tempo nasce desse desejo do ser humano de se manter sempre jovem, nasce desse desejo do ser humano, quase insaciável, pela imortalidade, mas Cronos, de uma maneira ou de outra, é sempre implacável, o que nos remete à própria ideia do eterno retorno de Nietzsche, que por sua vez nos remete a uma ideia de tempo que é cíclica, a ponto de fazer o homem estar de novo às voltas com uma vacina, imerso no debate sobre sua eficácia, mais de cem anos depois. E talvez seja essa a grande pergunta deste texto, deste trabalho, a grande pergunta da obra machadiana: até onde vai esse desejo dos homens de saber o futuro, até onde vai esse desejo dos homens pelo controle do tempo?
É, mais uma vez, o bruxo nos coloca diante de uma questão que, a princípio, não estava ali posta. Mais uma vez o bruxo nos coloca diante de uma questão que, a princípio, não estava ali antes, colocando holofotes, luzes em personagens e cenas que, a princípio, nem são centrais, ainda que muitas vezes sejam esses personagens que costuram todo o sentido deste texto. É o bruxo, mais uma vez, nos convidando, assim como na própria clarividência de certas adivinhas, a enxergar além. É o bruxo mais uma vez nos convidando a ler as entrelinhas deste texto. Convidando-nos a analisar questões que não estavam ali evidenciadas, mas, ao mesmo tempo, sempre estiveram ali.
Nesse sentido, é necessário refletir também sobre as imagens que, de alguma maneira, todas essas questões evocam no texto machadiano. É preciso refletir sobre quais imagens evocam as figuras de uma cartomante e de uma cabocla, personagens que se relacionam com um universo onírico, fantasioso, desconhecido, em um texto publicado no início do século XX, num Rio de Janeiro que se transformava numa Belle Époque parisiense, num momento em que a fotografia e a própria pintura surgiam como uma possibilidade de apreensão do mundo real; que mundo real seria esse? O que se esconde por trás dessa aparente realidade do texto machadiano? O que se esconde por trás desse pretenso realismo? Para Lacan (2015), a dita realidade tem a estrutura (imaginária) da ficção. Para o autor, tudo que nos é permitido abordar de realidade “resta enraizado na fantasia”. Trazendo novamente a questão do tempo, Barthes afirma que o chamado discurso histórico é da ordem do imaginário, atravessado de ponta a ponta por uma estrutura fantasiosa. Nesse sentido, Machado antecipa o que, mais tarde, foi articulado por Barthes e Lacan.
É necessário retomar, então, o capítulo XIV de Esaú e Jacó,em que o patriarca da família Santos, naquela ocasião, já muito impressionado com o discurso da cabocla “coisas futuras”, embora não tenha sucumbido à tentação de visitá-la, por mais que ela fosse grande, em conversa com Aires, o conselheiro, a respeito da rivalidade dos dois irmãos, indaga ao seu interlocutor: “dois espíritos podiam tornar juntos a esse mundo; e se brigassem ao nascer?” (Assis, 2014, p. 81). Assim, este texto vai se construindo, se tecendo, tecendo-se, fazendo referência não só a caboclas e oráculos, mas também a um certo misticismo, referendando uma espiritualidade que talvez não coubesse em um outro texto, em um outro lugar, mas que cai como uma luva no texto machadiano, “antes de nascer, crianças não brigam”, diz alguém, a certa altura, quase que dizendo “espíritos não existem”, “Deus recolhia um ancião quando o diabo chegou ao céu”, escreveu Machado em 1884, em livro publicado pela Editora Garnier.
O conto A igreja do diabo propõe quase um duelo entre Deus e o diabo, que, naquele momento, deseja montar sua própria igreja, com seus próprios ritos, com toda uma liturgia própria. Publicado originalmente no livro Histórias sem data, no mesmo ano da publicação do conto A cartomante na Gazeta de Notícias, o bruxo, mais uma vez flerta com o tema do divino; dialoga, de alguma maneira, com o tema da espiritualidade, antecipando talvez algumas discussões de Esaú e Jacó que caminham nesse sentido: “Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos”, escreve mais uma vez Machado no conto A igreja do diabo, fazendo referência ao célebre personagem da literatura alemã, Fausto, de Goethe (1749-1832), que vende sua alma ao diabo em troca de vantagens terrenas, mas que, em alguma medida, consegue livrar-se do inferno trapaceando a própria figura do capeta.
E me recordo de Bentinho, que se viu, muito cedo, tendo que escolher entre uma espiritualidade e o amor de Capitu, dando a entender a esse leitor que, se Bentinho não tivesse escolhido o caminho do mundano, as coisas pudessem dar mais certo para ele, será? E na leitura, na tessitura desse texto machadiano, somos convidados, assim como Tirésias, a ler além, a ir além-texto, além do texto, esmiuçando as entrelinhas desse texto literário. Escutando as vozes das musas, bem como as vozes desse texto, especificamente, literário, “canta, ó musa, a Ira de Aquiles”, (Homero, 1995, p. 6), assim como esse narrador machadiano “que finge múltiplas vozes” (Souza, 2003, p. 1), um narrador metamorfoseado, transformado em um fingidor, um fingidor como todo poeta, um narrador machadiano que talvez fosse quase um heterônimo pessoano, se este tivesse vivido antes daquele, ainda que Pessoa tenha sido um leitor de Machado “um narrador singularizado como um fingidor” (Souza, 2003, p. 2), um texto que vai ecoando, evocando vários outros textos.
É preciso pensar os caminhos e descaminhos por onde essas duas personagens, a cartomante e a cabocla, talvez três, se pensarmos também na própria figura de Tirésias, entrelaçando essa escrita, escrita essa que também nos paralisa, “nos anula ou nos fantasmagoriza” (Borges, 2001, p. 100), caminhos esses que se encontram, se cruzam, ainda que sejam caminhos difíceis, tortuosos, em que “o íngreme, o desigual mortificam os pés às duas pobres donas” que subiam o Morro do Castelo atrás da tal cabocla que ali vivia, ao passo que Camilo e Rita passavam à porta da cartomante quase como um descuido, quase sem querer, quase como se todos os caminhos os levassem a ela: à adivinha.
“Hamlet observa a Horácio que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa filosofia” porque há mais coisas entre o bardo e o bruxo do que aquilo que podemos imaginar. E o conto de Machado começa exatamente assim: com Camilo zombando Rita por ter ido consultar uma cartomante: “Os homens são assim, não acreditam em nada”, emenda a moça logo em seguida. “Serás rei”, sentencia uma das feiticeiras em Macbeth. Enquanto no texto de Shakespeare temos três feiticeiras, três moiras, três parcas, no texto machadiano temos um bruxo e duas videntes, ou duas videntes e um bruxo, como preferir, o que no total também soma o número três e, assim, seguimos, sem saber, lendo “Hamlet em vulgar”, assim como fazia a pobre Rita na sua explicação a Camilo, porque, assim como em Hamlet, o conto A cartomante segue sendo uma tragédia, uma tragédia anunciada em “cartas compridas e enxovalhadas”, uma tragédia anunciada em um único ato, porque, assim como Ofélia, Rita se afoga em suas questões, no oráculo e em suas previsões, bem como em seu próprio destino; é “a reversa harmonia da tragédia e da comédia, poematizada por William Shakespeare sob a forma do drama e por Machado de Assis sob a forma de romance” (Souza, 2003, p. 2).
E, quando tudo parece ser uma coincidência, é preciso lembrar que, para Borges (2001), não há coincidências nem na Matemática nem na Literatura, uma vez que “O fato de que vários indivíduos que contam a mesma quantidade obtenham resultado igual” é mais uma questão de memória do que de Matemática, disse certa vez, mais ou menos assim, o escritor argentino.
A cabocla tem por nome Bárbara, a moura, a estrangeira, o que nos lembra a própria moira que, por um infeliz acaso, é também aquela que determina o destino, quando ela própria não se revela o próprio destino, tanto dos deuses quanto dos pobres mortais, enquanto da outra se sabe apenas seu ofício, “porque o que não se nomeia não existe” (Lacan, 2015, p. 45) já nos disse outro bruxo certa vez.
Por fim, é preciso refletir a respeito do lugar, do espaço que essas personagens ocupam no universo machadiano, bem como num imaginário, que é social, que é coletivo e, ao mesmo tempo, atemporal. Quais os territórios e as próprias territorialidades que essas personagens ocupam? Por onde circulam, na cidade, esses arquétipos, esses sujeitos da clarividência, cujo estigma é justamente prever o futuro, e, por que não dizer, prever a própria sorte, o próprio destino?
Esse destino, essa moira que, por vezes, pode ser incontrolável, pode fugir a qualquer previsão, uma vez que o destino, até para os gregos, é um oráculo, um deus de vontade própria. Quando Sófocles escreveu Édipo Rei, é uma tentativa de mostrar para a sociedade da época que as vontades dos deuses eram soberanas e, por vezes, se sobrepunham às vontades humanas. A Psicanálise, ao atualizar o texto grego, mostra que o que interessa, na realidade, é uma identificação muito forte dos leitores/espectadores com os dilemas dos personagens das tragédias gregas. Sófocles evidencia, em seu texto, os instintos humanos que foram sufocados, sublimados por conta de toda uma vida em sociedade: o incesto e o parricídio.
Mas, ao se deparar de novo com o texto-peça, o leitor-espectador tem de novo seus desejos movimentados e, de alguma forma, atualizados, ainda que ele mesmo não se dê conta disso. É preciso pensar também nesse texto-peça, nesse leitor-espectador e nas inúmeras materialidades que estão em jogo aí nesse meio do caminho, mas talvez isso seja motivo para uma próxima investigação.
Em A cartomante e em Esaú e Jacó o que de fato interessa não é que tais previsões estejam equivocadas ou mal interpretadas. O objetivo deste trabalho não é pensar por que falhou a previsão da cartomante que Rita e Camilo foram consultar, tampouco compreender por que as irmãs Natividade e Perpétua interpretaram a cabocla do castelo como lhes convinha. Assim como a própria Clarice atualiza a cartomante machadiana, “só acredito em duas cartomantes: a de Machado de Assis e a de Clarice Lispector”, me disse, certa vez, uma professora, “as duas erram solenemente”, emenda logo depois. E qual o limite, a linha divisória entre acertar e errar completamente um destino? Em Clarice, a cartomante já tinha um nome, madama Carlota, “vá embora encontrar o seu maravilhoso destino”, diz a madama à pobre retirante, que, naquele contexto, em alguma medida é ela também Macabéa, uma moura, uma bárbara, uma estrangeira, assim como a cabocla de Machado de Assis, a cabocla do Castelo.
Em Clarice, talvez Madama Carlota seja a própria caricatura da cartomante machadiana. Uma caricatura, não no seu sentido mais grotesco, uma vez que a própria caricatura em si carrega o grotesco em sua estrutura, mas no seu sentido mais positivo, no sentido mais libertador possível, em que o que está em jogo não é da ordem do caricatural, não é uma cópia do real, mas sim o diálogo entre dois ou mais textos; é essa vocação intertextual do texto (literário) propriamente dito.
Quem consulta o oráculo sempre estará sujeito a perder-se nos seus labirintos, nessa esteira do simbólico que é também a própria linguagem humana. É o preço que se paga. O que é preciso refletir, de fato, é sobre os espaços por onde essas personagens, quase arquétipos da clarividência, circulam na cidade e pela cidade; é necessário pensar em quais espaços essas cartomantes, caboclas, adivinhas circulam na ficção e pela ficção, “porque negar, é também afirmar”, disse, a certa altura, o narrador machadiano de A cartomante, porque, como talvez já tenham dito por aqui, ninguém ganha a alcunha de Bruxo do Cosme Velho impunemente – e não acreditar em certas crendices, desautorizá-las, como fazia o moço Camilo, no próprio conto de Machado, não ajuda nada nesse processo.
Se, por um lado, uma mora no próprio espaço da cidade, na Rua da Guarda Velha, atual Avenida 13 de Maio, por outro a outra, a moura, a estrangeira, vive em lugar íngreme, de difícil acesso e longe da corte. Se, por um lado, consultar uma cartomante pode ser até socialmente aceitável, por outro lado há na figura de uma cabocla o estigma das religiões afro-brasileiras.
Se, por um lado, o tarô descende também do povo cigano, tal como Capitu, “cigana oblíqua e dissimulada”, a cabocla vem do povo preto e se configura mesmo em uma entidade das religiões de matriz africana, “mas não há ninguém cuja vida tivesse decorrido no Rio sem uma entrada nas casas sujas onde se enrosca a indolência malandra dos negros e das negras” (João do Rio, 2015, p. 45). A cartomante poderia até ser branca ou mesmo parda. Porém a cabocla jamais seria dessa estirpe. É necessário compreender, ao nos depararmos com o texto machadiano, o lugar que essa sociedade judaico-cristã na qual, de alguma maneira, estamos imersos, coloca as adivinhas e as caboclas, sobretudo.
Pensando que Esaú e Jacó foi um romance publicado no início do século XX, 1904, em plena reforma de Pereira Passos, reforma cujo objetivo era transformar o Rio de Janeiro na Belle Époque brasileira, um período de grande efervescência artístico-cultural na Europa, era vontade do próprio presidente Rodrigues Alves transformar o Rio de Janeiro em um molde da capital francesa, e isso teria um custo: a derrubada dos cortiços, o encarecimento dos aluguéis; viver na cidade passava a não ser mais para todos e todas; “é que os filhos da cidade vão desaparecendo quando ela vai remoçando” (Santiago, 2015, p. 78); “a velha cidade – feia e suja –” vai dando lugar a sítios mais arborizados.
E assim nasciam os primeiros morros, as primeiras comunidades na cidade do Rio de Janeiro, uma vez que a população foi expulsa do asfalto em função das inúmeras desapropriações, da própria reforma urbana e do encarecimento do custo de vida. Foi ali, no Morro do Castelo, onde vivia a cabocla, personagem de Esaú e Jacó, que foi se dando e se consolidando a própria fundação da cidade do Rio de Janeiro. Foi ali, por exemplo, que nasceram os primeiros monumentos da cidade.
Diversas lendas, desde a fundação da cidade, passaram a envolver esse espaço e não foi à toa que o bruxo-escritor escolheu justamente o Morro do Castelo para fazer habitar sua cabocla; uma das histórias que envolviam o lugar – e por que não dizer estórias – era de que um tesouro estaria escondido em seu subterrâneo, mas a verdade é que desde a época da própria fundação da cidade, desde a época de D. João VI, ao que parece, já existia essa vontade de demolir o morro, como conta Motta em seu livro Era uma vez o Morro do Castelo, e assim, nasce essa narrativa, um dos primeiros romances do século XX, entre o fato e o mito. Por isso, não é difícil compreender o que levou à desapropriação desse mesmo espaço na reforma urbanística iniciada por Pereira Passos, que se arrastou pelos primeiros trinta anos do último século (1904-1922), em nome de uma suposta modernidade.
É preciso compreender quais discursos foram aí forjados, engendrados para justificar essa desapropriação. É preciso compreender quais eram as pessoas que ali viviam para também compreender esse processo. Nesse sentido, é preciso pensar quais espaços, bem como quais territórios, essas adivinhas passam a ocupar nesses novos agenciamentos do próprio espaço urbano: “ah, cartomante boa tem que ser longe, tem cartomante boa por aqui não”, me disse, certa vez, uma aluna. Nesse sentido, é preciso compreender quem são os chamados castelenses, moradores do Morro do Castelo. Segundo Paixão (2018), o chamado Morro do Castelo já se constituía em um espaço em disputa cujos atores sociais seriam a polícia e os trabalhadores moradores do local. Em sua maioria, os moradores, lavadeiras, garçons, choferes e mulheres donas de casa que se dedicavam exclusivamente ao lar.
Ao analisar os boletins de ocorrência a respeito da região na época, a maioria denunciava o próprio companheiro de quarto por furto, o que se leva a crer que existia, por ali, ainda, muitas casas compartilhadas, os chamados cortiços. A autora, ao analisar tais documentos, não encontrou registro de nenhuma cartomante, cabocla ou adivinha por ali. Porém o próprio Bruxo do Cosme Velho, em crônica do dia 10 de março de 1895, na revista A semana, escreve: “A autoridade recolheu esta semana à detenção duas feiticeiras e uma cartomante, levando as ferramentas de ambos os ofícios. Achando-se estes incluídos no código como delitos, não fez mais que a sua obrigação, ainda que incompletamente”.
Machado segue então levantando a seguinte questão após dizer que as videntes carregavam consigo uma série de bugigangas, dentre elas, uma perna de ceroulas velhas, além de quatrocentos e treze mil réis respectivamente: “Nestes tempos em que o pão é caro e pequeno, e tudo o mais vai pelo mesmo fio, um ofício que dá quatrocentos e treze mil-réis pode ser considerado delito?”,prossegue o bruxo, flertando, mais uma vez, com o tema. E, assim, essa pergunta ecoa durante todo esse texto, quiçá durante toda a sua produção literária da segunda metade do século XIX, que, para parte da crítica literária, correspondia ao seu quinhão mais realista: até onde vai esse desejo do ser humano de saber o futuro?, até onde vai esse desejo do ser humano de controle do tempo?
E quanto mais o espaço da cidade se modernizava, mais essas personagens ficavam alijadas desse processo de reconstrução da própria cidade ou desse projeto de cidade que não foi pensado para elas, por isso uma “rua desigual e íngreme”, por isso uma rua que “mortificava os pés às pobres donas”, por isso o coche foi deixado numa outra esquina e Perpétua e Natividade subiram a pé o morro, não só por vergonha de consultar uma cabocla, mas pelo fato de o coche não conseguir subir uma rua tão íngreme. É preciso compreender por que é justamente no capítulo 49 de Esaú e Jacó que Custódio fica na dúvida em que nome colocar na tabuleta, “Confeitaria do Império” ou “Confeitaria da República”, “pare na letra d”, o que está em jogo aí, o que está em disputa, nesse momento, é necessariamente também um projeto de cidade, uma cidade que nem no Império e menos ainda na República será pensada, projetada para essas pessoas. Por isso, é necessário também refletir sobre o que está por trás de um projeto de cidade excludente já no século XIX. “Na cidade, eu procuro a ficção” (Faustini, 2009, p. 74), disse, certa vez, um andarilho que cruzava as duas pontas dessa mesma cidade, pouco mais de um século depois.
Conclusão
É preciso lembrar que refletir a respeito da clarividência em Machado de Assis é refletir necessariamente também a respeito desse narrador mundividente (Souza, 2003), desse narrador multifacetado que atravessa a obra machadiana, um narrador multiperspectivado, mais uma vez parafraseando Ronaldes de Melo e Souza, uma vez que qualquer análise da obra machadiana sobre a clarividência que não incluísse as várias formas de ver, de se colocar no lugar do outro, bem como de se transformar, de se metamorfosear nesse outro do narrador machadiano, como um exercício próprio de alteridade, estaria fadada ao fracasso.
Dom Casmurro, narrador do romance homônimo de Machado de Assis, é quem conta a história de Bentinho, filho de d. Glória, que vivia o dilema de cumprir a promessa da mãe ou se casar com a jovem e esperta Capitu. Para contar essa história, foi preciso que houvesse uma distância temporal entre o protagonista e o narrador, entre Bentinho e D. Casmurro respectivamente, o que, de alguma maneira, transforma protagonista e narrador em vozes dissonantes nesse texto, nessa tessitura, nesse tecido que é o próprio texto machadiano.
É como se o velho Casmurro fosse um tio-avô do jovem Bentinho, tamanha é a distância temporal entre um e outro, tamanha é a transformação, a metamorfização que se dá entre um e outro, a ponto de este servir de chacota para aquele, a ponto de já no segundo capítulo do livro, chamado “ Do livro”, o narrador, D. Casmurro, confessar ao leitor que o grande motivo dessa escrita, dessas memórias era seu desejo “de atar as duas pontas da vida”, de juntar as duas casas, “de reproduzir no Engenho Novo a casa que me criei na antiga Rua de Matacavalos” (Assis, 2013, p. 16).
Enquanto para Bachelard (1993) o espaço da casa é, notadamente, o espaço do afeto, o espaço do acolhimento, o espaço do desejo, na narrativa machadiana, para esse narrador mundividente de múltiplas perspectivas, o espaço da casa pode servir também como uma metáfora para o tempo, como uma forma de refletir sobre o passado, intervir no presente e projetar um tempo futuro, como talvez nos diria Said. Nesse sentido, é preciso evocar novamente Cronos, o deus do tempo, porque pensar a respeito desse narrador machadiano multiperspectivado, mundividente é necessariamente pensar sobre o tempo.
É preciso, então, trazer mais uma vez Said quando o autor entende a própria noção de tardio como mais uma forma de sobrevivência, assim como Adorno coloca, impõe, uma noção de tardio que está ali no limite com o trágico, com a tragédia, para além das aparências, o tardio como “uma forma de exílio”, como mais uma forma de se desdobrar no tempo, no espaço e de se relacionar com ele, o tempo, nesse limite, nesse fio da navalha que é, de uma maneira ou de outra, a própria vida, como também esse desejo do ser humano não de controlá-lo, mas de permanecer nele, no tempo, esse desejo quase inadiável do ser humano de saber o futuro talvez resida exatamente aí: no desejo de permanência.
Referências
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À minha vó Maria do Carmo, a primeira bruxa da minha vida.
Publicado em 26 de abril de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
VILLA MAIOR, Hugo Carvalho. O bruxo, a vidente e a cabocla: ecos da clarividência na obra de Machado de Assis. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 15, 26 de abril de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/15/o-bruxo-a-vidente-e-a-cabocla-ecos-da-clarividencia-na-obra-de-machado-de-assis
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