Práticas sociais de leitura em ambiente familiar: tempos digitais

Daniel Cardoso Alves

Doutorando em Educação (FaE/UFMG)

Beatriz do Nascimento

Licenciada em Pedagogia (FaE/UEMG)

Cláudia Valéria Stancioli

Licenciada em Pedagogia (FaE/UEMG)

Eliana Eduardo Gomes da Silva

Licenciada em Pedagogia (FaE/UEMG)

Maria Clara Fernandes Andrade

Licenciada em Pedagogia (FaE/UEMG)

Este artigo é fruto de pesquisa realizada em contexto de pandemia sanitária mundial, cujas medidas de prevenção e combate constituem-se de distanciamento e isolamento social, quarentena, uso de máscaras de proteção e intensificação dos hábitos de higiene, como o uso do álcool em gel e lavagem constante das mãos com água e sabão.

Esse contexto pandêmico tem causado impactos econômicos, políticos e sociais poucas vezes vistos na história da humanidade, dada a imposição de medidas que contrapõem à lógica local de vida consolidada. Como forma de permitir essa conexão social, as tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) têm ocupado posição de destaque nessa segunda década do século XXI. No campo da Educação, milhares de crianças em idade escolar foram obrigadas a estudar de modo diferente: o virtual.

Diante desse contexto, o objetivo geral do trabalho foi revelar como se davam as práticas de leituras de crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental nos seus núcleos familiares, sobretudo em relação ao uso das TDIC. Os objetivos específicos, por sua vez, são: apresentar os conceitos fundamentais que envolvem as práticas de leitura; investigar os eventos de leitura nos espaços familiares; conversar com famílias e crianças em idade escolar sobre os seus modos e hábitos de leitura.

Com base nesses objetivos, as perguntas que permearam o estudo foram: as TDIC estão afetando a aprendizagem no que tange ao processo de alfabetização e letramento de crianças em idade escolar e, sobretudo, em sua capacidade linguística? Como as famílias estão observando os impactos dessa forma contemporânea de leitura? Afinal, há o risco de desaparecimento da criança leitora tradicional, aquela que lê livros físicos? Pode-se afirmar que é prejudicial o uso das TDIC nas práticas de leitura entre crianças em idade escolar?

A escolha da temática aqui apresentada justifica-se principalmente no fato de que as novas gerações estão cada vez mais conectadas aos aparelhos tecnológicos digitais. Investigar como as crianças estão lidando com as TDIC e como alinham o uso delas à leitura digital e analógica desponta como de suma importância frente a uma sociedade em constante mutação, profundamente imbricada com a tecnologia digital.

Os campos das Ciências Médicas e da Educação já apontam que o uso excessivo das TDIC vem causando problemas. Segundo Spritzer (2016, p. 10),

os dependentes de qualquer idade usam a rede como uma ferramenta social e de comunicação, pois têm uma experiência maior de prazer e de satisfação quando estão conectados (experiência virtual) do que quando não conectados. Tais pacientes não mais se alimentam regularmente, perdem o ciclo do sono, não saem mais de casa, têm prejuízo no trabalho e nas relações pessoais, se relacionam somente com conhecidos do mundo virtual etc. Dessa maneira, não seria de se estranhar que essas pessoas cheguem a ficar conectadas por mais de 12 horas por dia e atinjam, com relativa frequência, 35 horas ininterruptas de conexão.

Conforme Spritzer (2016), o uso das tecnologias digitais pode ser gerador de ansiedade nas crianças quando ficam distantes dos artefatos e das interações tecnológicas. As crianças do mundo digital deixam de dormir para estar conectadas, trocam refeições pela interação virtual, sofrem de insônia por ficarem no mundo virtual durante várias horas consecutivas e acabam tornando-se insociáveis por manterem-se em conversas virtuais em momentos que poderiam estar em diálogo no mundo real, entre outros impactos. Por outro lado, há evidências, no campo dos estudos da linguagem, de que as tecnologias digitais podem potencializar o processo de ensino e de aprendizagem diante da multimodalidade inerente ao ambiente digital.

Diante dessas premissas iniciais, realizou-se um estado do conhecimento no dia 18 de setembro de 2020 na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD) do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). Esse estado do conhecimento constituiu-se de um levantamento bibliográfico a partir de cinco palavras-chave que se associavam à temática em investigação: “prática”, “leitura”, “digital” e “família”. A partir da delimitação de objeto, objetivo, sujeitos, locus e da perspectiva teórico-metodológica, extraíram-se as seguintes apreensões das seis pesquisas que dialogavam diretamente com a temática do estudo:

  • Lopes (2006) investigou os mediadores de leitura no âmbito familiar em que se encontram crianças do Ensino Fundamental da 1ª à 4ª série. Ambas as pesquisas foram mantidas por abranger o tema leitura no núcleo familiar.
  • Em Silva (2007), o enfoque foi investigar as práticas sociais de leitura utilizadas por alunos do Ensino Fundamental no ambiente doméstico e sua interação com o espaço escolar.
  • Platzer (2009) despertou interesse pelo fato de o objetivo proposto ser a investigação das práticas de leitura em diferentes espaços sociais e, mais precisamente, como ocorre o envolvimento de crianças (escolarizadas) com a leitura em seu cotidiano, porém não é abordada a questão das práticas de leituras digitais.
  • A pesquisa de Gallo (2011) contemplou a alfabetização nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
  • Cassoni (2013) realizou um levantamento sistemático sobre o que tem sido publicado e pode orientar pesquisadores, profissionais e pais sobre estilos e práticas integrativas de literatura.
  • Por fim, a pesquisa de Souza (2015) buscou investigar se as crianças que ingressam no primeiro ano do Ensino Fundamental com práticas mais sistemáticas de leitura literária no ambiente familiar conseguem ter mais habilidade de leitura na escola.

Esse estado do conhecimento constituiu-se como a primeira etapa da metodologia adotada no estudo e exposta na seção seguinte, denominada “Os caminhos da investigação”.

Apropriando-se das contribuições de estudos anteriores, especialmente os seis selecionados, bem como com a perspectiva de preencher possíveis lacunas identificadas nesses estudos e adensar a discussão no campo, o estudo monográfico apresentou os conceitos fundantes para a temática: linguagem, letramentos, multiletramentos e multimodalidade, alfabetização, práticas e eventos de leitura e leitor; realizou uma análise minuciosa da Lei nº 9.394/96, que dispõe sobre as diretrizes e bases da educação nacional (LDBEN), do Decreto nº 13.005/14, que se refere ao Plano Nacional de Educação (PNE), do Decreto nº 9.765, que trata da Política Nacional de Alfabetização (PNA), da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e dos programas de governo subsequentes a essas leis, como o “Conta pra mim” e o “Tempo de aprender”, que, em tese, abrangeriam as práticas sociais de leitura entre crianças em ambiente familiar.

Considerando o recorte necessário para a apresentação deste artigo, os resultados da análise documental serão abordados em uma publicação posterior.

A pesquisa de campo, identificada no artigo como “O que dizem os sujeitos sobre ler em ambiente familiar em tempos digitais?”, constituiu-se de entrevistas com as famílias participantes da investigação, cujos discursos apreendidos foram analisados à luz de teóricos como Bourdieu (2012), que possibilitou reflexões acerca dos processos de desigualdades e exclusões sociais presentes na sociedade. Para aprofundar na questão da cultura digital, buscou-se dialogar com Chartier (1998), que discorre sobre as diferentes tecnologias ao longo da história no campo da cultura escrita; Coscarelli e Ribeiro (2014; 2016), que apresentam a problemática da alfabetização e do letramento digital; Vieira (2021), que aborda as práticas de leitura por meio da literatura digital de acordo com as condições socioeconômicas dos sujeitos; Freire (1989) e Soares (2002; 2020), defensores de que, para se alfabetizar, é preciso levar em consideração as condições socioculturais e socioeconômicas, assim como aspectos psicológicos e cognitivos que participam na constituição de sujeitos com pertencimento histórico e cultural.

O artigo encerra-se com as considerações finais, em que se compreende, de forma ampla, que ainda é necessário fazer do livro um instrumento de experiência individual em conexão com o mundo, pelo que demanda uma apropriação que seja capaz de contribuir para a constituição de sujeitos mais sensíveis, autônomos e críticos e, de forma específica, que prevaleceu entre os sujeitos entrevistados híbridas práticas de leitura, isto é, tanto por meio de artefatos tecnológicos quanto por meio de artefatos tradicionais, não digitais.

Os caminhos da investigação

Com a hipótese de que as TDIC têm afetado as práticas de leitura e escrita das crianças no contexto familiar, haja vista um uso sem finalidade formativa, levantaram-se as seguintes questões: será que a formação dos novos leitores está se perdendo na contemporaneidade? Não haverá mais leitores de livros físicos?

A formulação dessa hipótese inspirou-se em Burke (1984), segundo o qual “o livro já não exerce o poder de que dispôs antigamente, já não é o mestre de nossos raciocínios e sentimentos em face dos novos meios de informação e comunicação, de que doravante dispomos" (Burke, 1984, p. 185). No entanto, em outra obra, Burke (2002, p. 179) rememora que

a comercialização do conhecimento já era visível na época de Gutenberg, como testemunham os volantes comerciais que anunciavam libri venales (livros à venda). Todavia, a comercialização deu um grande passo para a frente no século XVIII, participando do surgimento da “sociedade de consumo” na Inglaterra, na França, na Alemanha e em outros países por volta de 1750. Todas essas soluções de problemas criaram outros problemas e provocaram grandes mudanças nos estilos de leitura, escrita e organização de informações.

Mas, para o autor, “os textos, de agora em diante, estariam fadados a uma existência eletrônica: compostos no computador ou numerados, transmitidos por procedimentos teleinformáticos, eles alcançam um leitor que os apreende num monitor” (Burke, 1984, p. 185).

É fato que o artefato livro sofreu na era tecnológica, o que afetou os modos e usos das práticas de leitura, inclusive demandando ressignificações conceituais dos processos de alfabetização e letramento. Todavia, também é fato que as novas gerações já nasceram em uma era tecnológica, cuja necessidade de ler subsiste independentemente das vestimentas culturais que os artefatos tomam ao longo do tempo.

A difusão acelerada e a explosão de informações acabam por adensar realidades em um cenário construído sob a égide das ferramentas tecnológicas, que passam a ser amplamente usadas como mediadoras no processo de conhecimento, porém,

mesmo com as mudanças de materialidade, entre o manuscrito, o impresso e o digital, algumas referências continuam iguais: a paginação, o índice, o recorte do texto, bem como o texto continua a surgir diante de seus olhos. Os leitores jovens utilizam essas categorias para realizar e relacionar suas práticas de leitura literária digital e de leitura em outros suportes (Chartier,1998, p. 88).

Esse pensamento que se alinha com o de Ribeiro (2016), para quem é preciso “compreender os movimentos da leitura e da escrita com tecnologias, assim como práticas de ensino que empregasse sites, ambientes virtuais de aprendizagem, blogs e, mais atualmente, redes sociais ou mesmo aplicativos como o WhatsApp” (Ribeiro, 2016, p. 95).

Outra posição nessa mesma direção de pensamento é a defendida por Vieira (2021), que entende que o uso das novas tecnologias se faz presente em todos os espaços, escolares e não escolares. Para tanto, explica: “o acesso às tecnologias digitais e à internet cria mais uma possibilidade de leitura. Assim, mesmo com menos condições socioeconômicas, os brasileiros têm conseguido ampliar as práticas de leitura” (Vieira, 2021, p. 565).

A partir dos objetivos propostos, da hipótese levantada, dos questionamentos resultantes dela e dos mencionados pressupostos teóricos, delineou-se o desenvolvimento de uma pesquisa de cunho qualitativo, com base no que preconizam Bogdan e Biklen (1994) para estudos ancorados e tal tipo de abordagem.

Após o estado do conhecimento com vistas a situar a temática no campo da produção científica, selecionaram-se os teóricos que se constituíram como fundantes para a pesquisa, notadamente aqueles vinculados aos estudos da alfabetização e do letramento na contemporaneidade, sem, contudo, desconsiderar as contribuições basilares dos clássicos da área. Esse primeiro procedimento denominou-se pesquisa bibliográfica.

Sequencialmente procedeu-se à análise documental, em que foi possível a busca, em sites oficiais, leis, decretos e projetos, das prescrições normativas sobre práticas sociais de leitura em ambientes afora o escolar, buscando associar ao contexto familiar de discentes de Pedagogia da FaE/UEMG, modalidade EaD, acadêmicos que, em tese, fazem uso em seu cotidiano de plataformas virtuais, disponibilizadas pela universidade, a exemplo do Moodle e do Teams, estudantes que se dispuseram a participar da pesquisa.

Como terceiro procedimento, realizou-se a pesquisa de campo, que se referiu a uma investigação “utilizada com o objetivo de conseguir informações e/ou conhecimentos acerca de um problema, para o qual se procura uma resposta, ou de uma hipótese que se queira comprovar ou, ainda, descobrir novos fenômenos ou as relações entre eles” (Lakatos; Marconi, 2003, p. 185).

Para a consecução desse procedimento, no dia 5 de novembro de 2020 enviou-se e-mail à coordenação de curso de Pedagogia EaD da FaE/UEMG na intenção de obter os contatos dos respectivos discentes que seriam selecionados para a pesquisa. Após o retorno da coordenação, verificou-se que o número de matriculados totalizava 472 discentes.

No dia 30 de novembro de 2020 foi enviado um e-mail-convite para os discentes e obteve-se um retorno mínimo de cinco concordâncias. Diante desse ínfimo retorno, no dia 19 de janeiro de 2021 reencaminhou-se o convite, corrigindo alguns caracteres inconsistentes que poderiam ter afetado um resultado maior de retorno.

Após o envio desse segundo e-mail-convite, foi obtido um resultado maior de respostas dos discentes dispostos a participar da pesquisa. Com essa estratégia, dos 472 discentes, 404 não responderam ao e-mail, 52 retornaram com endereço eletrônico não encontrado e dezesseis discentes se disponibilizaram a participar da pesquisa.

Diante do retorno positivo, no dia 23 de janeiro de 2021 enviou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para os dezesseis voluntários, estabelecendo um prazo de entrega do documento de no máximo cinco dias.

Dos voluntários, somente seis devolveram o TCLE assinado. Diante desse resultado e considerando a quantidade de discentes aptos para a pesquisa, solicitou-se, por e-mail, o envio de contato telefônico para prosseguir para a estratégia de entrevistas individuais. Após o retorno dos participantes, iniciaram-se as ligações propondo diálogos pelo aplicativo WhatsApp para o agendamento das entrevistas, as quais, segundo Gil (2008), “são muito utilizadas em estudos exploratórios, com o propósito de proporcionar melhor compreensão do problema, gerar hipóteses e fornecer elementos para a construção de instrumentos de coleta de dados” (Gil, 2008, p. 114).

O autor define a entrevista como uma “técnica em que o investigador se apresenta frente ao investigado e lhe formula perguntas, com o objetivo de obtenção dos dados que interessam à investigação''. A entrevista é, portanto, uma forma de interação social (Gil, 2008, p. 110).

Ressalta-se que, devido à pandemia causada pela covid-19, as aulas nas instituições de ensino básico passaram a ser ministradas de forma remota. Em consequência disso, essas instituições tiveram que reprogramar seus calendários escolares. Nas instituições de ensino superior (IES) não foi diferente, a exemplo da FaE/UEMG, locus deste estudo, que foi obrigada a seguir esse formato, alterando com isso seu calendário acadêmico.

Diante dessa realidade atípica, optou-se, então, por entrevistas individuais; devido ao quantitativo de participantes, optou-se por agendar as entrevistas por meio das plataformas digitais Google Meet, Skype e Zoom, de acordo a que cada voluntário tinha disponível em seus aparelhos. Outro instrumento adotado foi o questionário fechado, aplicado via WhatsApp e exclusivamente com os sujeitos adultos da pesquisa.

Preservando a identidade dos participantes, como orienta Gil (2008), cada entrevista teve “caráter estritamente confidencial e as informações prestadas permanecerão no anonimato” (Gil, 2008, p. 116). Para isso, os participantes serão aqui representados com a letra C de entrevistado infantil, associada ao número (1 a 6) de acordo com a posição ocupada durante as entrevistas; e a letra M para a participante mãe da criança entrevistada, P para pai seguida da sigla referente à criança respectiva.

Todos os dados produzidos foram analisados à luz dos teóricos em que o estudo se ancora, constituindo-se, assim, em uma análise do discurso situado no campo dos estudos da educação e da linguagem.

O que dizem os sujeitos sobre ler em ambiente familiar em tempos digitais?

Antes de adentrar a análise das respostas obtidas durante as entrevistas, é importante observar que, no primeiro contato, por meio de ligação telefônica para agendar as entrevistas, M1 informou que não possuía o aplicativo WhatsApp e que utiliza somente e-mail e a plataforma Moodle para o curso EaD utilizado pela faculdade. Esse fato inviabilizou a entrevista com ela, pois era necessária a gravação para a posterior transcrição fidedigna dos discursos. No segundo contato, já pelo WhatsApp e com M2, ocorreu situação semelhante à de M1, pois a M2, apesar de ter o aplicativo WhatsApp, não obtinha acesso às plataformas virtuais. Ela informou que também só possuía acessos ao Moodle e e-mail. Diante disso, não foi possível prosseguir para a etapa de entrevista com M2 pelo WhatsApp, pois o aplicativo não disponibiliza a gravação por quantidade de tempo maior.

A pesquisa empírica em si constituiu-se da aplicação de uma entrevista semiestruturada com oito perguntas na expectativa de obter informações sobre o uso das TDIC nas práticas sociais de leitura no ambiente familiar dos dois acadêmicos que efetivamente participaram do estudo, a saber: P3 e M6.

A entrevista foi elaborada para ser aplicada com as mães das crianças participantes, por se constituir, conforme Gil (2008), “a técnica de investigação composta por um conjunto de questões que são submetidas a pessoas com o propósito de obter informações sobre conhecimentos, crenças, sentimentos, valores, interesses, expectativas, aspirações, temores, comportamento presente ou passado etc.” (Gil, 2008, p. 121).

A opção pelo tipo de entrevista semiestruturada realizada com C3 e C6 baseia-se na seguinte explicação de Gil (2008, 111):

a entrevista é seguramente a mais flexível de todas as técnicas de coleta de dados de que dispõem as Ciências Sociais. Daí porque podem ser definidos diferentes tipos de entrevista, em função de seu nível de estruturação. As entrevistas mais estruturadas são aquelas que predeterminam em maior grau as respostas a serem obtidas, ao passo que as menos estruturadas são desenvolvidas de forma mais espontânea, sem que estejam sujeitas a um modelo preestabelecido de interrogação.

A etapa de entrevistas teve início no dia 2 de fevereiro de 2021, data sugerida pelas próprias participantes. Foram feitas duas entrevistas nesse dia, com M4 e M5, em horários diferentes.

Durante a realização da entrevista, descobriu-se que elas não possuíam em seus núcleos familiares crianças em idade escolar, fato que inviabilizou a utilização de suas falas, pois não se encaixam no objetivo deste estudo, que consiste em compreender como se dão as práticas de leitura de crianças em seus ambientes familiares.

Diante desse novo imprevisto, entrou-se em contato com as duas últimas participantes para saber se elas tinham convívio com crianças em seu ambiente familiar. Obteve-se um retorno positivo e, no dia 8 de fevereiro de 2021, realizou-se as entrevistas com P3 e M6.

Fez-se uma breve entrevista com os filhos das entrevistadas, após o consentimento formal delas, o que foi de extrema relevância para a pesquisa, que, em meio ao contexto de aulas remotas devido à situação pandêmica da covid-19, a educação vem sendo ministrada de forma online com aulas assíncronas e síncronas. Dessa maneira, boa parte das crianças que obtêm os livros disponibilizados pelas bibliotecas escolares está sem acesso aos livros didáticos físicos. Quando possível, muitas acessam as aulas remotas por meio dos aparelhos tecnológicos dos pais para receber atividades que são feitas no caderno.

Uma das crianças participantes da entrevista, do núcleo familiar de M3, composto por um casal com a filha de nove anos de idade, se encontrava em um processo avançado de alfabetização escolarizada. Durante a entrevista, ela afirmou ter grande apreço pela leitura, ter acesso a livros didáticos físicos e gostar de livros de literatura em formato digital por aplicativo.

A outra criança, do núcleo familiar de M6, composto por um adulto e a criança de sete anos de idade, encontrava-se em fase de alfabetização inicial, e, como preconiza a BNCC, “nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental a ação pedagógica deve ter como foco a alfabetização” (Brasil, 2018), o que a enquadra nas orientações normativas do documento.

Às crianças dos núcleos familiares de P3 e M6 encaminhamos 5 perguntas, que também se encaixavam nas oito direcionadas aos pais; perguntas como: Vocês leem? Quando leem? Como leem? O que gostam de ler? Para que leem?

Em relação ao hábito de leitura, C6, hoje com sete anos, disse que não lia ainda devido à pandemia no ano de 2020, quando ingressou no primeiro ano do Ensino Fundamental; sendo assim, ela está sem ir à escola; C3 afirmou em alto e bom som que lia muito. Para Coscarelli (2016, p. 68), a “leitura é um conceito amplamente estudado”, ou seja, um conceito complexo por envolver não somente o desenvolvimento cognitivo, mas também os aspectos sociais nos quais a criança está inserida. Assim,

a leitura normalmente acontece em uma situação comunicativa. Por isso não podemos desconsiderar o contexto social no qual a leitura acontece, assim como também não podemos deixar de considerar a identidade, a história e as experiências do leitor. Esses aspectos são essenciais para a leitura porque direcionaram o processo de construção de significados, que é, sobretudo um processo inferencial (Coscarelli, 2016, p. 68).

Ao analisar as respostas de ambas as crianças, buscou-se fazer reflexões sobre o contexto atual vivenciado por elas, diante da pandemia que impossibilitou as interações sociais nos espaços escolares. Nesse sentido, não podem ser desconsiderados fatores socioeconômicos, psicológicos e culturais que impactam no processo de alfabetização e letramento por elas vivenciado em um momento claudicante, visto que se trata de dois fenômenos indissociáveis que Soares (2020) denomina pela expressão “alfaletrar” por entender que

alfabetização e letramento são processos cognitivos e linguísticos distintos; portanto, a aprendizagem de um e de outro são de natureza essencialmente diferente; entretanto, as ciências em que se baseiam esses processos e a pedagogia por elas sugeridas evidenciam que são processos simultâneos interdependentes. A alfabetização – aquisição da tecnologia da escrita – não precede nem é pré-requisito para o letramento; ao contrário, a criança aprende a ler e a escrever envolvendo-se em atividades de letramento e de leitura e produção de textos reais de práticas sociais de leitura e de escrita (Soares, 2020, p. 27).

Quando se perguntou quando elas liam, C6 ratificou que ainda não sabia ler; C3 prontamente disse que lia sempre que tinha vontade. Essas respostas remetem à importância que o tempo da leitura tem para a vida, pois “a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente” (Freire, 1989, p. 13).

Além disso, o fato de C6 não saber ler não significa que ela não consiga ler o mundo para além de um grafocentrismo. A leitura não se resume à palavra; prova disso são as inúmeras formas de letramento existentes: letramento visual, letramento digital, letramento cartográfico e letramento matemático, entre tantos outros.

Perguntou-se a elas de que forma buscavam a leitura de livros, ou seja, como elas liam. Em relação a esse terceiro questionamento, C6, que ao longo da entrevista dizia não saber ler, respondeu prontamente que utilizava o tablet para assistir a vídeos e ao celular da mãe para fazer as atividades escolares que são enviadas por meio do grupo de WhatsApp da instituição escolar na qual se encontrava matriculada, o que reforça a ideia de ser ela uma criança letrada, porém, na faceta do letramento digital, pois como explicam Ribeiro e Coscarelli (2014):

ser letrado digital implica saber se comunicar em diferentes situações, com propósitos variados nesses ambientes, para fins pessoais ou profissionais. Uma situação seria a troca eletrônica de mensagens, via e-mail, SMS, WhatsApp. A busca de informações na internet também implica saber encontrar textos e compreendê-los, o que pressupõe selecionar as informações pertinentes e avaliar sua credibilidade (Ribeiro; Coscarelli, 2014, s/p).

C3, que está cursando o 3º ano do Ensino Fundamental, respondeu que lê dos dois jeitos, tanto por meio dos livros físicos quanto nos artefatos digitais que estão disponibilizados na plataforma digital de sua escola. Ela afirmou, também, ter e-books e um aplicativo de livros infantis. Algo que destacou foi o fato de que, para dar veracidade ao seu discurso, enquanto seguia a entrevista ela se levantou dizendo que iria buscar um livro físico que gostava muito e que estava lendo naquele momento. Ao retornar, ela apresentou dois livros: O abecedário e Marcelo, marmelo martelo e outras histórias e enfatizou: “é estes aqui!”.

Nesse sentido, num mundo cada vez mais híbrido, a tecnologia pode instigar o gosto pela leitura, dadas as possibilidades interativas que ela gera com o leitor; o ambiente digital é essencialmente multimodal, pelo que o contexto tecnológico que se vive constitui-se como

um momento privilegiado para, na ocasião mesma em que essas novas práticas de leitura e de escrita estão sendo introduzidas, captar o estado ou condição que estão instituindo: um momento privilegiado para identificar se as práticas de leitura e de escrita digitais, o letramento na cibercultura, conduzem a um estado ou condição diferente daquele a que conduzem as práticas de leitura e de escrita quirógrafas e tipográficas, o letramento na cultura do papel (Soares, 2002, p. 4).

Entre os teóricos que pesquisam as práticas de leitura e escrita ao longo dos tempos, desponta Chartier (1998), historiador francês que, com um olhar futurista para o seu tempo, explanou sobre suas inquietudes quanto ao novo formato de leitura e às mudanças ocorridas na sua época.

De fato, as mudanças ocorridas ao longo da história do livro de papel em sua forma física e digital trazem reflexões sobre como de tempos em tempos as formas de prática de leitura se adaptam de acordo com o movimento que a sociedade vive em cada época. Uma sociedade em constante transformação na busca incansável pelo conhecimento.

Como penúltimo questionamento, perguntou-se às duas crianças: o que vocês gostam de ler? C6 respondeu que tinha muita vontade de aprender a ler, uma vez que, como já mencionado, ela ainda não sabia; C3 disse que gosta de ler todos os tipos de histórias.

Como último questionamento, perguntou-se às duas crianças: para que vocês leem? C6 respondeu que tinha muita vontade de aprender a ler para entender o que aquele monte de palavrinhas fala. C3 disse que é para saber mais.

Ressalta-se que as perguntas sofreram uma pequena adaptação no ato da entrevista, a fim de que ficassem numa linguagem coloquial para as crianças. Essa adaptação é facilitada pela estratégia de entrevista que,

se comparada com o questionário, que é outra técnica de largo emprego nas ciências sociais (e será explicado no próximo capítulo), apresenta outras vantagens: a) não exige que a pessoa entrevistada saiba ler e escrever; b) possibilita a obtenção de maior número de respostas, posto que é mais fácil deixar de responder a um questionário do que negar-se a ser entrevistado; c) oferece flexibilidade muito maior, posto que o entrevistador pode esclarecer o significado das perguntas e adaptar-se mais facilmente às pessoas e às circunstâncias em que se desenvolve a entrevista; d) possibilita captar a expressão corporal do entrevistado, bem como a tonalidade de voz e ênfase nas respostas (Gil, 2008, p. 129).

Com o encerramento das entrevistas, adotou-se o segundo instrumento de pesquisa, o questionário, que foi enviado aos pais das crianças pelo WhatsApp, com a intencionalidade de alinhar com as respostas das crianças entrevistadas. O questionário enviado foi composto de oito perguntas, dentre elas, cinco que foram as mesmas feitas para as crianças, como forma de comparação de resposta entre os pais das crianças; foram elas: Vocês leem? Quando leem? Como leem? O que gostam de ler? Para que leem? A priori o foco aos pais será nas mesmas perguntas feitas às crianças, de modo a comparar o hábito de leitura no ambiente familiar. Simbolizaram-se o pai e mãe das crianças com código (M= mãe) (P= pai) seguido do algarismo que indicou a ordem de aplicabilidade do questionário, o qual está relacionado com a ordem das crianças entrevistadas.

Perguntou-se, primeiramente, a PC3 e MC6 sobre o hábito e a regularidade da leitura. Como respostas, MC6 declarou que tinha o hábito de leitura, o qual foi intensificado durante o período de pandemia; PC3 também respondeu que lia e que mantinha esse hábito há alguns anos.

Sobre a forma como liam, MC6 informou que lia livros físicos e digitais, mas atualmente utiliza mais o meio digital, tanto pela facilidade do momento vivenciado pela covid-19, quanto pelo custo; PC3 declarou que não tinha preferência quanto ao formato. Tem o hábito de comprar tanto livros físicos como e-books, também afirma gostar de ler notícias de jornais e artigos acadêmicos em formato eletrônico.

Percebe-se que os pais das crianças entrevistadas praticam leituras, não somente por serem acadêmicos em formação, mas também pelo prazer de ler. Ambos manifestaram o gosto por leitura, tanto no formato físico quanto no digital. Percebe-se uma valorização aos livros digitais devido ao custo-benefício em relação ao livro impresso, mas também um lugar demarcado pelo livro físico, marca de um hibridismo predominante nos hábitos de leitura, fato que ocorre em função da

mudança referente à experiência sensorial, na qual o leitor não toca o objeto lido, folheando as páginas com a mão, sentindo o cheiro e visualizando o suporte por completo, mas necessita ligar o dispositivo digital e, com um toque na tela, passa as páginas do texto, não permitindo visualizar toda a dimensão da obra, o que demanda novos gestos e comportamentos do leitor (Vieira, 2021, p. 541).

As práticas de leituras vivenciadas na atualidade decorrem das mudanças estruturais e dos movimentos ocorridos pelas demandas advindas de ações humanas na busca por uma sociedade virtual, cujas

interações tornam-se fluidas, o espaço também deixa de ter fronteiras físicas, passando à categoria geográfica de rede; as distâncias são, ainda que tecnologicamente, encurtadas, pelo que ninguém escapa dos novos padrões que se traduzem na cibercultura de uma “sociedade em rede” alterada por um “meio técnico-científico-informacional” e imersa numa “modernidade líquida” (Alves, 2020, p. 78).

Sobre qual tipo de material eles liam, MC6 disse que gostava de ler reportagens de jornais, revistas, livros, textos acadêmicos relativos às disciplinas ministradas pela faculdade; PC3 afirmou que, como lazer, gostava de livros de ficção, biografias, textos históricos, documentários, crônicas, jornais, revistas de automóveis, de curiosidades; porém, quando estava no período letivo da faculdade, dedicava-se às leituras de artigos acadêmicos.

Quando perguntado aos pais sobre a forma que leem com e/ou para os seus filhos, se digital ou por livros físicos, MC6 declarou que de ambas as formas, mas que atualmente utiliza mais o meio digital, tanto pela facilidade quanto pelo custo; PC3 disse não ter preferência quanto ao formato, que faz compras de livros físicos e e-books, que as leituras de notícias e jornais se dão no formato eletrônico e dos artigos acadêmicos são em pdf baixados ou diretamente nos sites; quanto à leitura de livros, elas são realizadas nos formatos físico e eletrônico.

Acerca das finalidades de leitura, MC6 respondeu que lê para ter informação, diversão e cultura; PC3 afirmou ler para aprender, se informar, divertir e para buscar nas leituras uma forma de viver e conviver com os diversos assuntos da vida; ler para estar o mais contextualizado possível com o cotidiano do mundo, conhecendo também o passado.

Sobre a questão envolvendo a leitura para suas filhas e/ou o incentivo nelas, MC6 explicitou que sempre que possível lê para sua filha, visando tentar criar o hábito; PC3 declarou que possuía o hábito desde que sua filha era bebezinha, criando uma rotina até a atualidade nos momentos que antecedem o ato de dormir. Essa rotina consiste em a própria filha ler antes de dormir histórias de algum livro, HQ, poemas, fábulas ou ela mesma lê para a filha e em alguns momentos conta histórias, "causos de família".

Vive-se na atualidade em mundo cada vez mais tecnológico, em que as crianças das últimas décadas já nasceram com os aparatos tecnológicos na palma da mão, ressalvadas as gigantescas exclusões de um país desigual como o Brasil. Soares (2002) ensina “que estamos vivendo, hoje, a introdução, na sociedade, de novas e incipientes modalidades de práticas sociais de leitura e de escrita, propiciadas pelas recentes tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede (a web), a internet” (SOARES, 2002, p. 4).

Quando indagados sobre de que forma suas filhas leem ou se leem para elas e como elas acessam os livros, se no formato físico ou digital, MC6 disse que a filha (C6) lê em ambos; PC3 afirmou que sua filha (C3) acessa nos dois formatos e que, ao dormir, geralmente faz o uso do formato físico e durante o dia em plataforma de estudo digital da escola, com acesso a diversos e-books para sua faixa etária, além de trazer toda semana livros físicos da biblioteca, quando ela está em regime de aula presencial.

Como penúltima pergunta, questionou-se se ambos consideram o uso das tecnologias digitais favoráveis para a aprendizagem das crianças. MC6 respondeu ser uma ótima ferramenta de auxílio, que tem muitos jogos legais, muitos vídeos e aplicativos educacionais; PC3 também considerou muito importante a inserção das crianças no mundo digital, pois elas estarão cercadas por essas tecnologias durante toda a vida. Para PC3, as TDIC abrem muitas possibilidades para aprimorar e incentivar os estudos, porém ele alerta sobre o uso de maneira correta e com limitação de tempo adequada. Segundo esse pai, o ensino das crianças pode render bem mais e ser muito mais divertido com as tecnologias.

Da análise desse conjunto de respostas, remete-se ao pensamento de Bourdieu (2012) vinculado à ideia do capital cultural. Para o autor,

o nível de instrução dos membros da família restrita ou extensa ou ainda a residência são apenas indicadores que permitem situar o nível cultural de cada família, sem nada informar sobre o conteúdo da herança que as famílias mais cultas transmitem aos seus filhos nem sobre as vias de transmissão (Bourdieu, 2012, p. 44).

A última pergunta versou sobre a opinião de MC6 e PC3 quanto ao processo de alfabetização de modo virtual, isto é, se eles consideram que têm contribuído positiva ou negativamente na capacidade de leitura e escrita das crianças.

Para MC6, contribui principalmente no período pandêmico pelo qual a humanidade passa. Sem essa ajuda virtual, acredita MC6, seria mais difícil do que já está sendo, pois sua filha deveria ter sido alfabetizada no ano de 2020, mas não foi possível. Por isso, se não houvesse os exercícios no modo virtual, ela teria aprendido menos, ou seja, as aulas de forma remota foram de muita ajuda.

PC3, por outro lado, disse que, do mesmo modo que as aulas ocorreram de forma remota em 2020, tudo indica que vai ser assim no ano letivo de 2021, que o processo de alfabetização está sendo feito exclusivamente de forma virtual, pelo que acredita que isso atrapalhe o pleno desenvolvimento das crianças. Para ele, as tecnologias digitais são ferramentas importantíssimas na educação; entretanto, seu uso exclusivo por crianças na fase de alfabetização pode não render como o esperado. Além disso, PC3 acredita que o contato social em sala de aula com outras crianças e com o professor ainda seja muito significativo para o pleno desenvolvimento das crianças.

Considerações finais

À luz dos dados e das informações produzidas conversando com as pessoas (pais e filhos), como preconiza Street (2012) quando se trata de investigar as práticas e os usos sociais da leitura e da escrita, foi possível concluir que as duas famílias investigadas possuíam condição econômica que não as prejudicou quanto ao acesso tecnológico e ao uso da internet.

O aspecto econômico está imbricado com a educação, cujos acessos aos artefatos educacionais, sobretudo num processo de educação digital, são negados a crianças em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Não por mero casuísmo que Bourdieu (2012) denunciava: “as crianças oriundas do meio mais favorecido não devem ao seu meio somente os hábitos e treinamentos diretamente utilizáveis nas tarefas escolares e nas vantagens mais importantes, não é aquela que retiram da ajuda direta que seus pais lhe possam dar” (Bourdieu, 2012, p. 45).

Esclarece-se por fim que as discussões apresentadas são situadas em contextos específicos de sujeitos que possuem o acesso à internet e aos artefatos tecnológicos com relativo poder econômico, tanto que as crianças são estudantes da rede particular de ensino. Caso o público que se voluntariou a participar da pesquisa tivesse outro perfil socioeconômico, muito provavelmente as discussões poderiam ser outras, bem como os resultados dos estudos poderiam ser diferentes.

Portanto, as práticas sociais de leitura e escrita nos ambientes familiares investigados apresentam-se metamorfoseadas, com a presença de suportes analógicos e digitais, pelo que não se pode dizer que os artefatos digitais e as formas de interação humana, nos mais variados contextos, substituíram os analógicos.

Qualquer crença que defenda o fim dos hábitos de leitura e escrita anteriores e pós mundo digital se perde na defesa superficial da supremacia da técnica em relação ao criador humano, desconsiderando que a necessidade de ler e escrever é inerente à natureza humana, pois ela é cultural e, como cultural, assumirá diversas vestimentas ao longo do tempo. Hoje é digital, mas tem continuidade do físico; amanhã poderá ser uma outra vestimenta, mas manterá continuidades do digital, do impresso e do manuscrito. E essa ideia de continuidade é materializada nas práticas sociais de leitura e escrita, as quais, como formas de expressão do humano, são sempre híbridas, visto que, como ensinava Kress (2003), não há forma de comunicação monomodal, ela é sempre multimodal.

Da conversa com os sujeitos da pesquisa, mediante as entrevistas realizadas, na perspectiva de continuidade investigativa das práticas de leitura e escrita em ambiente familiar, outras questões são suscitadas: será que o acesso aos aparelhos digitais e à internet é isonômico em contextos socioeconômicos diferentes? Será que estudantes das escolas públicas que não possuem uma situação econômica favorável têm a facilidade de acesso ao mundo digital, como o observado nas famílias investigadas por este estudo? Será que há nas residências uma internet de qualidade em que os pais não têm que se preocupar com o uso dos dados móveis de suas operadoras telefônicas? Será que crianças em outros contextos familiares têm acesso, em casa, a dispositivos e ao incentivo de leitura e escrita, se seus pais sequer sabem ler?

Portanto, conclui-se este estudo como novos questionamentos, o que comprova que a sua abordagem não se encerra aqui.

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Publicado em 26 de abril de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

ALVES, Daniel Cardoso; NASCIMENTO, Beatriz do; STANCIOLI, Cláudia Valéria; SILVA, Eliana Eduardo Gomes da; ANDRADE, Maria Clara Fernandes. Práticas sociais de leitura em ambiente familiar: tempos digitais. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 15, 26 de abril de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/15/praticas-sociais-de-leitura-em-ambiente-familiar-tempos-digitais

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