Cultura livre e ensino de línguas

Tiago Mendes de Oliveira

Doutorando em Estudos de Linguagens (PosLing/Cefet-MG)

Ana Paula Coelho Barbosa

Mestranda em Estudos de Linguagens (PosLing/Cefet-MG)

Gabriela Santos Teixeira

Mestranda em Estudos de Linguagens (PosLing/Cefet-MG)

A realidade tecnológica imposta pelo contexto socioeconômico vivido nas últimas décadas traz, concomitantemente, o controle dos recursos informáticos de grandes corporações internacionais e a possibilidade de usá-los de forma livre, criando, circulando e recriando objetos culturais e pedagógicos. Nesse norte, há estudos sobre o uso da cultura livre para fomentar a aprendizagem em sala de aula desenvolvidos e publicados no século XXI, procurando responder a essas demandas. A resenha que se segue pretende analisar um trabalho que debate, de forma teórica e prática, tal possibilidade.

A tese de doutorado de Rômulo Francisco de Souza, Implicações do uso de material didático virtual livre em contexto formal de ensino-aprendizagem de italiano como LE/L2: a perspectiva dos problemas de ensino, trata do uso de materiais didáticos livres no ensino de língua estrangeira, fazendo relação com a perspectiva pós-método e com a cultura livre. O trabalho foi defendido no Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) em 2014, publicado como livro em 2016, pela mesma instituição.

O texto tem como público professores/as e pesquisadores/as que produzem materiais didáticos, com uma perspectiva embasada na teoria de Kumaravadivelu (professor emérito da San José State University, California, nascido na Índia e radicado nos Estados Unidos), com uso de linguagem simples, permitindo que o leitor realize uma leitura fluida, mesmo quem não está habituado à leitura acadêmica. Assim, o trabalho investiga como materiais didáticos virtuais livres podem colaborar para o ensino de língua estrangeira, especificamente o italiano.

Rômulo Francisco de Souza é mestre em Linguística pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Letras pela Universidade de São Paulo e residente pós-doutoral no Centro de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet/MG). Sua pesquisa versa sobre pedagogia pós-método para o ensino de língua estrangeira (italiano) e design de materiais didáticos virtuais livres.

Nos capítulos 1 e 3, Souza discute os conceitos de cultura e software livre e justifica sua escolha com o uso dos termos “material didático virtual livre”. A cultura livre baseia-se na ideia de trabalhos em que o autor renuncia a seus direitos autorais, permitindo a sua livre edição. Não quer dizer que o material perca a sua autoria, entretanto ela não é mais controlada por grandes corporações que limitam sua utilização e a adaptação das obras (assim como softwares proprietários). O software livre (ou open source) é um recurso criado a partir de um código-fonte de linguagem aberta, que se opõe à ideia de software proprietário, em que qualquer desenvolvedor com conhecimento daquela linguagem pode fazer melhorias e lançar novas versões do programa original. Seu uso, cópia, modificação e redistribuição são permitidos. Rômulo Souza destaca ainda as opções de licenças: as proprietárias (copyright) e as de uso flexível (Creative Commons), nas quais a pessoa que cria a obra define em que circunstância poderá ser utilizada. Assim, Souza (2016, p. 39-40) conclui que:

Material didático virtual livre deverá ser o produto de um processo de produção livre; ou seja, processo em que os autores tiveram a liberdade de consumir outros produtos culturais, sem a necessidade de permissão de grupos ou corporações que figurem como detentores desses produtos. Seguindo o mesmo raciocínio, esse material, como um bem cultural, deverá, ele próprio, figurar como livre, contribuindo, assim, com a circulação livre da cultura. Em outras palavras, trata-se de um tipo de material didático que, em essência, beneficia-se da cultura livre [...], ao mesmo tempo que a promove – sendo, naturalmente, suscetível à ação da inteligência coletiva.

No primeiro capítulo, o autor também apresenta a diferença entre material didático virtual livre, material didático virtual livre com algumas restrições e material didático fechado. A principal diferença entre eles está na liberdade de uso, cópia, modificação e distribuição. Para ser considerado recurso livre, o material ou software em questão deve compreender todos os aspectos citados anteriormente ou se caracterizará como material didático virtual livre com algumas restrições.

No capítulo 2, o autor relaciona os materiais didáticos livres à Pedagogia pós-método, levantando a hipótese de que os materiais livres propiciam os três aspectos principais da pedagogia pós-método – particularidade, praticidade e possibilidade. Nesse capítulo, o autor também realiza uma comparação entre a Educação na Sociedade Industrial e a Educação na Sociedade da Informação, destacando que os métodos de ensino estão mais associados ao primeiro tipo e que a Pedagogia pós-método se associa ao último. Na defesa do pós-método, ele lista diversas desvantagens dos métodos e, por serem anacrônicos à nossa atual sociedade, Souza (2016, p. 45) aponta que:

a noção de materiais didáticos de natureza virtual livre pressupõe, respectivamente, em sua essência, tal qual a pedagogia pós-método: a sensibilidade ao contexto de utilização; o empoderamento do professor; e o incentivo a questionamentos de status quo e à transformação social, sobretudo no que se refere aos aprendizes. Consideramos, enfim, que levantar esse debate significa, também, ampliar a oportunidade de melhor compreender as características dos materiais didáticos de natureza virtual livre.

É interessante o paralelo que o autor traça, nesse capítulo, entre materiais livres e a Pedagogia pós-método (Kumaravadivelu, 2001), pois deixa clara a importância do recurso didático livre como promotor da autonomia e do empoderamento do professor. Os três princípios da Pedagogia pós-método são:

  • a particularidade (leva em conta o contexto dos alunos);
  • a praticidade (o professor deve conciliar prática e teorização na sua atividade diária); e
  • a possibilidade (o aluno deve ter consciência de sua identidade e seu papel transformador na sociedade).

O autor apresenta a necessidade de investir nos recursos educacionais livres para que estes possam atender aos novos padrões de uma sociedade que saiu da era industrial para entrar na era da informação, que se caracteriza por uma educação com função transformadora, comunicativa, dialógica, multicultural e que incorpora as tecnologias digitais aos seus processos de aprendizagem.

De acordo com Souza, os métodos são rígidos, assim como o são os materiais didáticos fechados. Por outro lado, os materiais didáticos virtuais livres permitem que o professor adeque o material aos diferentes contextos que circundam uma sala de aula e às diferentes necessidades individuais de cada aluno, além de estarem abertos à modificação e ao compartilhamento, possibilitando uma melhora constante dos recursos didáticos através de uma cultura colaborativa entre os professores.

Nesse capítulo, Souza apresenta ainda a concepção sobre tais recursos educacionais. Segundo o autor, material didático virtual livre é aquele produzido com liberdade para consumir outros produtos culturais, sem a necessidade de autorização prévia e, igualmente, disponibilizado para que seja utilizado e customizado. Portanto, esses recursos trazem demandas específicas chamadas, no trabalho, de problemas de aprendizagem. O conceito fundamenta-se nas ideias de software livre, produtos culturais livres e cultura livre, também definidos no capítulo.

Os capítulos seguintes, sobre os quais a resenha proposta não se deterá, apresentam os resultados da pesquisa realizada por Rômulo Souza. No capítulo 4, ele apresenta alguns modelos teóricos que adotou no trabalho, focados de forma geral, no entendimento de contextos instrucionais e no suporte ao planejamento e operacionalização de cursos. O capítulo 5 detalha a metodologia adotada na pesquisa, sendo uma análise qualitativa e interpretativa, a partir de dados gerados em sala de aula presencial de italiano, como língua estrangeira, e em curso de formação de professores/as.

No capítulo 6, por sua vez, é realizada a apresentação do perfil das/os informantes que participaram do estudo, bem como a forma de levantamento realizado, a saber, questionários, observação e análises documentais. No capítulo 7, o autor apresenta os resultados da pesquisa de campo, especialmente as dificuldades encontradas pelas/os educadoras/es para o uso de recursos livres, tais como as dificuldades de edição dos insumos digitais e a adaptação destes recursos à sala de aula. No final do trabalho, há ainda dois itens que permitem o aprofundamento do estudo: as considerações finais e as referências citadas.

O livro de Souza contribui para quem procura aprender os conceitos de cultura livre e da Pedagogia pós-método, pois o autor consegue, de maneira didática e agradável, trazer uma ótima introdução ao assunto, estabelecendo diálogos entre os dois temas. Embora deixe claro que o contexto analisado é o de ensino-aprendizagem de italiano como segunda língua, os princípios apontados em relação ao uso de métodos (ou à ausência deles) e de recursos livres adequam-se perfeitamente ao contexto de quaisquer outras disciplinas.

O trabalho traz discussões interessantes à Educação no geral, não somente linguística, mas também para outras áreas, tais como, para o Direito, a Computação e a Produção Cultural. Recursos livres podem colaborar para a aprendizagem de uma parcela muito maior da população do que aqueles recursos sob licenças tradicionais, haja vista a facilidade de acesso e a possibilidade de customização dos recursos às necessidades de cada turma ou estudante.

Todavia, a tese não discute uma questão muito importante: a qualidade dos materiais derivados. Em tempos de campanhas de desinformação, notícias falsas e de algoritmos que manipulam o acesso à informação (com consequências, inclusive, nas eleições e na saúde pública), a curadoria das informações torna-se uma questão premente e, mesmo, vital. É necessário, portanto, pensar em meios de avaliação e curadoria que permitam o desenvolvimento de recursos adequados e com qualidade para fomentar o ensino-aprendizagem.

Referências

KUMARAVADIVELU, B. Toward a Postmethod Pedagogy. Tesol Quarterly, v. 35, n° 4, p. 537-560, Winter 2001. Disponível em: http://www.bkumaravadivelu.com/articles%20in%20pdfs/2001%20Kumaravadivelu%20Postmethod%20Pedagogy.pdf. Acesso em: 03 set. 2021.

SOUZA, Rômulo Francisco de. Implicações do uso de material didático virtual livre em contexto formal de ensino-aprendizagem de italiano como LE/L2: a perspectiva dos problemas de ensino. São Paulo: FFLCH/USP, 2016. (Produção Acadêmica Premiada). Disponível em: https://spap.fflch.usp.br/sites/spap.fflch.usp.br/files/Pós_Rômulo%20Franscisco%20de%20Souza.pdf. Acesso em: 03 set. 2021.

Publicado em 10 de maio de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

OLIVEIRA, Tiago Mendes de; BARBOSA, Ana Paula Coelho; TEIXEIRA, Gabriela Santos. Cultura livre e ensino de línguas. Revista Educação Pública, v. 22, nº 17, 10 de maio de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/17/cultura-livre-e-ensino-de-linguas

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