Escola e afetos: o “esperançar” como ação pedagógica em uma favela do Rio de Janeiro

Diogo Silva do Nascimento

Pós-doutor e doutor em Estudos do Lazer (UFMG), mestre em Educação (UERJ) e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais da Maré (NEPS/Ceasm)

Aline Pereira Botelho dos Santos

Mestra em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (UFRRJ), especialista em Alfabetização e Letramento (Instituto Signorelli), graduada em Pedagogia (UFRRJ)

Mayara Barbosa Santos da Silva

Especialista em Educação de Jovens e Adultos (IFRJ), graduada em Pedagogia (UERJ/FEBF)

Ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, refazendo e retocando o sonho pelo qual se pôs a caminhar.
Paulo Freire (1992, p. 155)

A epígrafe de Paulo Freire traz reflexões importantes sobre a consciência e a relevância da caminhada tecida entre professor e estudante no processo educacional. Assim, para nós que estamos no cotidiano da Educação Básica, a reflexão aponta a importância do caminhar como processo de construção, principalmente nos contextos periféricos.

Na medida em que tomamos consciência desse processo de construção, enxergamos o lugar do outro, um território múltiplo e tensionado historicamente pelas ausências de políticas públicas que fomentam a invisibilidade e os estereótipos. Desse modo, pensando em visibilizar esse lugar do outro, lugar esse que compreende o papel do estudante enquanto sujeito social emancipado, iniciamos a construção de uma quebra de paradigma com o intuito de visibilizar outras narrativas e lugares de resistência. Histórias e estórias que circundam os territórios periféricos e ativa, diante do ser educador, a urgência de uma transformação do entendimento do estudante como sujeito para além da “formatação” dos muros escolares. 

Existem rosas pretas?

O início do projeto ocorreu pelo ingresso, em 2016, de novos professores no quadro de funcionários da Rede Municipal do Rio de Janeiro no Bairro da Maré. A chegada à Maré foi marcada pelos diversos estigmas sociais que tomavam conta dos telejornais. Afinal, estávamos falando de uma das favelas mais violentas do Brasil, segundo todo o aparato midiático. Até então, nosso contato com a Maré era sempre de passagem, quando circulávamos por alguma via expressa do Rio (Linha Vermelha, Linha Amarela e Avenida Brasil). Como diz Marc Augé (1992), a Maré até aquele momento era “um não lugar” que exalava a violência como meio e fim de sua história.

Em diversas situações ocorridas na Unidade, muitas delas que atravessavam os dias deixando um inquietante sentimento relacionado a algumas práticas pedagógicas exercidas na instituição, foi possível observar que alguns docentes da escola reproduziam currículo e práticas homogêneas que visavam o ranqueamento de alunos e prêmios por bom mocismo para aqueles poucos que se destacavam. Percebemos, assim, que a mercantilização, o conservadorismo, o não pertencimento, o currículo homogêneo e a “educação bancária” estavam fazendo parte daquele cotidiano por meio das práticas de alguns professores. Paulo Freire nos coloca a pensar sobre “o professor autoritário, que se recusa a escutar os alunos, se fecha a essa aventura criadora” (Freire, 2019, p. 122).

Por causa de diversas inquietações que estavam atravessando o nosso cotidiano, idealizamos um Projeto com a turma 1203, Conhecendo Nossas Raízes e Descobrindo Nossas Identidades.

O projeto teve como fio condutor o pertencimento territorial, pois entender o que é o bairro Maré para além do aparato midiático é tecer uma reflexão importante sobre a definição do território favelado. Souza e Silva e Barbosa (2009) iniciam sua argumentação sobre a definição da favela relatando que, historicamente, o eixo paradigmático de sua representação é focado na ausência. Nesse sentido, esses autores apontam que existe uma representação usual a partir da definição negativa do termo, tendo em vista que é baseada no que falta/faltaria e não no que possui. Nesse contexto, as favelas seriam consideradas espaços “destituídos” de infraestrutura urbana (água, luz, esgoto, coleta de lixo), sem arruamento, globalmente miserável, sem ordem e sem moral” (p. 16).

Na visão de Paulo Freire, correlacionar os múltiplos saberes àqueles que são os saberes escolásticos é o início para uma construção de conhecimentos que deem significados aos sujeitos envolvidos no processo. Para que isso aconteça, segundo Freire, é preciso que se tenha “educadores e educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes” (Freire, 2019, p. 28).

Os educadores são sujeitos do processo dessa contínua aprendizagem e, deste modo, o projeto apresenta a necessidade de criar, pesquisar e buscar o que o bairro Maré traz através de tantas gerações, memórias e vivências, apropriando-se de tudo que o compõe enquanto território.

É importante ressaltar que os estudantes não se identificavam como maraeenses. Assim, uma das primeiras atividades foi construir o mapa da sua localidade. Criado coletivamente, com a indicação de onde cada discente mora, partindo do ponto de referência da escola, diferentes mapas foram criados.

Uma prática emancipatória: (trans)formações e identidades

É nesse sentido que o projeto foi ganhando forma e ampliou-se numa construção coletiva. Nessas trocas, idas e vindas, múltiplas vivências, foram sendo tecidas construções de saberes “outros”, saberes esses muitas vezes menosprezados e invisibilizados, mas que carregavam uma dimensão significativa para os alunos, para suas histórias, para os sujeitos mareenses.

Entendendo que as memórias não são apenas algo que está no passado, mas também acontecimentos carregados de simbolismo e marcas, Paulo Freire aponta: carregamos “conosco a memória de muitas tramas, o corpo molhado de nossa história, de nossa cultura; a memória, às vezes difusa, às vezes nítida, clara, de ruas da infância, da adolescência; a lembrança de algo distante que, de repente, se destaca límpido diante de nós” (Freire, 1992, p. 45).

Dentro dessa perspectiva, de adotar esses espaços como meios para um início de diálogo, foram surgindo nas falas dos(as) alunos(as) lugares como o Piscinão de Ramos, a Roquete, Nova Holanda, dentre outros sub-bairros do bairro Maré. Cada aluno citou pontos positivos e negativos do seu lugar, trouxe fotos e objetos que possuem valores afetivos com o território deles e depois construímos coletivamente um texto cujo título escolhido por votação foi “O mundo da Maré”.

Figura 1: Votação dos títulos para produção textual coletiva/indícios apontados pelos estudantes

Fonte: Arquivo do projeto.

Na primeira foto foram escritos os possíveis títulos citados pelos estudantes: “O bairro Maré”, “As famílias que residem na Maré”, “O meu amor pela Maré”, “A família chamada Maré”, “A Maré tem que viver” e a eleita, “O mundo da Maré”, com doze votos. A partir da escolha do título, partimos para a identificação de pontos positivos e negativos que o bairro possui segundo os olhares deles.

Como dito anteriormente, o bairro Maré é composto por sub-bairros; dessa forma, os estudantes elencaram alguns indícios importantes. Trouxeram a Escola de Samba Boca do Siri; o Beco do Siri como melhor beco por ter forró aos finais de semana, entretanto quando chove alaga tudo, entrando muita água dentro das casas; o Parque União é um lugar aonde a maioria gosta de ir, pois tem muitos brinquedos. Também há várias narrativas sobre a Rua Ouricuri, a maior rua da Maré.

“Eu sou feliz, eu me amo assim” – somos múltiplos

Para trabalhar o respeito à diversidade existente no espaço escolar, construímos um mural com fotos de todos os estudantes. Após a confecção, utilizamos o recurso pedagógico do espelho para enfatizar a importância da identidade de cada um e a diferença existente. A atividade consistia em estimular o estudante a se olhar no espelho e se descrever. Ao final da autodescrição, a aluna Ana Clara falou: “Eu sou feliz, eu me amo assim” e todos os outros seguintes repetiram a frase ao final de suas falas.

Algumas narrativas trouxeram reflexões sobre diferentes estigmas que são criados por apelidos. O estudante Guilherme, ao se olhar no espelho, falou sobre o apelido “Bracinho”. Ele contou para a turma que sua deficiência no braço vem desde seu nascimento. Na mesma hora, alguns alunos destacaram que nunca tinham percebido tal diferença! Um dado importante que se destaca na fala de Guilherme, menino preto/favelado, é a violência obstétrica que acomete tantas mulheres pretas periféricas.

Outra estudante ao se olhar no espelho chorou muito; em sua fala, Júlia trouxe a questão de ser “magra” e como isso a incomodava. Relatou em meio às lágrimas que seu irmão e seus colegas a achavam fraca por ela ser “magrinha”, e isso a entristecia. Oposta à Júlia, a estudante Mariana disse que se achava feia, pois era “gorda, muito pesada”. Disse ainda que os amigos não a escolhiam para brincar e que sua mãe só falava para ela parar de comer.

Larissa falou a respeito do seu cabelo, de que todos riam porque era crespo e curto e a chamavam de João por seu cabelo ser assim. O reconhecimento dos diversos recortes dentro da ampla temática da diversidade cultural (negros, indígenas, mulheres, deficientes, homossexuais, entre outros) coloca-nos frente a frente com a luta desses e de outros grupos em prol do respeito à diferença.

Diversas narrativas surgiram e enriqueceram a atividade proposta. Tamanhos, formas, tipos de cabelos, cor dos olhos e principalmente o tom da pele de cada um. E assim, com esse indício, procuramos ilustrar de forma mais simples, para facilitar a percepção para os discentes, uma fila com diferentes tons de pele, e eles pontuaram as possíveis diferenças entre si. 

Figura 2: Autodescrição

Fonte: Arquivo do projeto.

Após a atividade de reconhecimento do corpo físico, incentivamos o cultivar de sentimentos de carinho, aceitação e afeto por seu nome próprio; uma pesquisa realizada com seus entes sobre a escolha do nome e uma exposição oral para os colegas aconteceram em um círculo de conversa que tínhamos uma vez por semana em nossa turma. 

Dessa roda de afetos semanais nasceu a proposta, com os estudantes, de confeccionar pessoas de diferentes formas com recorte e colagem. O trabalho foi enriquecedor, com a participação de todos, inclusive nosso amigo portador de necessidades especiais Bryan, que nos agraciou com sua imagem feita a partir de um corpo feminino com uma bola de futebol ao lado.

Remontando a história dos seus nomes, iniciamos um trabalho com a família; como de costume, fizemos uma votação de como trabalharíamos esse tema. Várias sugestões surgiram, e a eleita foi a construção da Árvore da Vida. 

Nossa árvore seria composta da seguinte forma: a raiz seria o local onde eles moram, o tronco representaria a escola, as folhas seriam os parentes mais próximos que convivem com eles, as flores os brinquedos e os frutos as comidas de que eles gostam. E assim fizemos, construímos nossa árvore com a ajuda dos responsáveis.  

Nessa confecção e apresentação, novamente várias narrativas interessantes surgiram; Daiana compartilhou com a turma que sua avó era indígena. Para aproveitar as narrativas que surgem e enriquecem nossas aulas, começamos a trabalhar o possível “descobrimento” do Brasil mediante uma pesquisa com cartazes feitos em casa sobre “ocupação indevida das terras dos povos originários”. 

No dia seguinte, convidamos a professora da escola Mayara Barbosa, que viveu um período da sua infância até a adolescência no Estado do Amazonas, em uma aldeia indígena. Ela dividiu com a turma um pouco dos seus afetos, reflexões e pertences que trouxe de recordação do seu lugar de memória, enfatizando que os indígenas não são aqueles que vivem no passado.

Com essa experiência, a professora Mayara mostrou aos alunos como era o dia a dia na cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. A cultura indígena ganhou significado nos olhares atentos e curiosos dos alunos, que prontamente começaram a questionar várias falas, de situações que para eles se apresentavam como novas, mas que já fazem parte da cultura desses povos há muitos anos.

A curiosidade foi guiando todo o diálogo que se construiu com a professora, uma vez que, para eles, o olhar de alguém que identificava com simplicidade uma cultura tão rica e presente na construção das histórias de nossos antepassados despertava a elaboração de saberes que, antes dessa conversa, prendiam-se ao universo das histórias contadas nos livros didáticos, de povos indígenas da época colonial. Chimamanda Adichie descreve muito bem o perigo que carrega uma única versão dos fatos ao relatar que: 

Como eu só tinha lido livros nos quais os personagens eram estrangeiros, tinha ficado convencida de que os livros, por sua própria natureza, precisavam ter estrangeiros e ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar (Adichie, 2019, p. 13).

Diante desse relato, entendemos a importância de trazer para a sala de aula a multiplicidade de culturas que, por inúmeras vezes, encontram-se engessadas em livros didáticos. Proporcionar esse contato com o diferente, propor uma reflexão crítica, interagir sobre as outras culturas que compõem a sociedade como um todo faz parte de uma educação emancipadora, que dialoga com a ruptura de paradigmas e supera visões únicas e ingênuas sobre saberes não mencionados nesses materiais que não contemplam tais temáticas.

Nesse mesmo caminho, a partir da vivência de uma educadora com raízes indígenas, os alunos puderam contar com saberes próprios dos indígenas, como eram produzidas suas comidas, de que forma consumiam, como era sua relação com a natureza, enfim, fatores que compõem a cultura desses povos e que fazem parte da sabedoria de seus sujeitos. Essa compreensão causou estranhamento nos alunos; no entanto, esse desconhecido viabilizou um novo conhecimento que despertou a investigação de outras identidades.

Figura 3: Exposição das memórias indígenas

Fonte: Arquivo do projeto

Para enriquecer esse momento de contato com uma nova cultura, a professora realizou a exposição de objetos indígenas, fotos trazidas do Amazonas com recordações de momentos de convívio com os indígenas. A partir daí, surgiu a ideia de fazer uma atividade na qual cada discente traria um pertence a que ele tivesse algum afeto, essa era a ideia inicial. Mas como todo planejamento é flexível e móvel, houve grande alteração na ideia inicial. Sentados em círculo e dando continuidade ao nosso projeto, foi colocado no chão da sala um lençol, os objetos trazidos por eles e outros que recolhemos na escola para que algum aluno que houvesse esquecido pudesse participar da atividade. Começamos relembrando todo o processo do projeto até o dia da atividade; cabe destacar que até o momento a atividade não tinha nome específico.

A professora da turma iniciou a dinâmica, escolhendo um carrinho e dando o porquê da opção: “quando era criança tinha um sonho de dirigir carros”. Logo em seguida foi o estagiário Eduardo que escolheu o globo terrestre e contou que seu sonho era viajar o mundo inteiro e mostrou os países que já tivera o prazer de conhecer.

Os alunos iniciaram de forma espontânea, um por vez, e várias narrativas novamente produziram um efeito maravilhoso em todos ali naquele espaço. Os nomes utilizados durante todo o decorrer do texto são fictícios. O aluno Guilherme iniciou e logo com um “soco no estômago”: escolheu um homem de ferro, um super-herói vermelho. A professora perguntou o motivo de ele ter escolhido tal peça e ele respondeu que “gostaria de ser um super-herói para não sentir dor”; a docente continuou: que tipo de dor? E ele respondeu: as dores do coração, porque tem muito tempo que não vejo meu pai porque minha mãe não deixa, e isso dói. 

A estudante Nathalia escolheu uma foto de bebê, pois ela disse sentir muita falta do carinho e da proteção de seus pais, que não estão aqui (ambos estão na Paraíba e ela vive com uma tia). A discente Gysllaine escolheu o caxixi e pontuou que deseja viajar o mundo e conhecer diferentes culturas. A aluna Thiphany escolheu o globo terrestre e disse que gostaria de passear pelo mundo à procura de seu pai: “quero viajar o mundo igual ao Tio Eduardo, mas para achar o meu pai!”.

Eram várias falas emocionantes, e todas levaram para os seus sonhos e desejos: uma de ser pilota de avião, outra de ser jogadora de futebol, outra escolheu um livro e disse que quer ser professora de História, outro falou que quer ser bombeiro, garçom, pescador, entre outros.

Em relação a narrativas emocionantes, sonhos e desejos de sujeitos pertencentes a territórios estigmatizados, a autora Conceição Evaristo diz: “Tenho dito e gosto de afirmar que a minha história é uma história perigosa, como é a história de quem sai das classes populares, de uma subalternidade, e consegue galgar outros espaços!”. Dialogando com as palavras de Evaristo e na tentativa de possibilitar os estudantes a galgar outros espaços e conhecimentos, foi realizado em comemoração ao Dia da Consciência e Resistência Negra uma feira literária com apresentação de autoras negras; a partir da apresentação e da leitura de alguns trechos dos livros, os estudantes inspirados e seduzidos pelas histórias produziram poemas como culminância da atividade.

Entretanto, a Semana da Consciência e Resistência Negra foi comemorada em nossa turma no mês de maio, pois, baseado em uma indagação de um aluno, se desenvolveu a ideia de comemorar e apresentar figuras representativas negras do Brasil e do mundo. Embasando-se na Pedagogia da Pergunta de Freire, trouxemos para o debate a questão étnico-racial. O estudante Kawã fez a seguinte indagação: “Existem rosas pretas?”, pois a professora regente havia acabado de receber uma flor rosa da cor rosa de presente de Dia das Mães. 

Assim, aconteceu nossa primeira feira literária, intitulada Existem Rosas Pretas!, com a exposição de livros de autores negros e de cartazes feitos pelos alunos do 6º ano de escolaridade, das turmas 1601 e 1602, que fizeram para enfeitar nossa sala no dia da exposição com pessoas negras.

Para traçar o encerramento do ano letivo, que foi um processo de grande troca e aprendizado para todos os envolvidos no processo educacional, a turma foi convidada a participar de uma reportagem no jornal que circula no bairro Maré. Assim, o jornal Maré de Notícias foi até a escola para saber mais sobre o projeto desenvolvido pelos alunos. O entusiasmo dos estudantes para contar as experiências do projeto foi tão grande que a equipe do jornal usou uma foto de uma aluna para ilustrar a capa da edição do jornal.

Figura 4: Reportagem

Fonte: Arquivo do projeto.

Evidenciamos ao longo das atividades que o trabalho com a Educação libertadora, mediante atividades inovadoras, pode ser uma poderosa prática para desenvolver habilidades de comunicação e interação entre os alunos, desenvolver a valorização da cultura deles e de uma aprendizagem significativa para todos envolvidos no processo.

As experiências tecidas no projeto foram narradas durante todo o ano pelos alunos. Essas memórias carregam uma afetividade do conhecer a vida, as comidas experimentadas, as roupas usadas, línguas faladas, os lugares percorridos, as brincadeiras e histórias contadas pelos povos indígenas, pelos moradores mareenses e por eles próprios. Esse contato instigou aquilo que nos move ao aprender, que é a curiosidade. Freire destaca que 

a curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos (Freire, 2019, p. 33).

Ao respeitar a leitura de mundo dos alunos, se abriram novos caminhos para prosseguir com a aprendizagem deles. Como docentes, ter um olhar humano que exalta narrativas outras sobre os espaços periféricos é uma postura de resistência. Diante disso, Freire aponta que,

no fundo, o educador que respeita a leitura de mundo do educando reconhece a historicidade do saber, o caráter histórico da curiosidade; por isso mesmo, recusando a arrogância cientificista, assume a humildade crítica, própria, da posição verdadeiramente científica (Freire, 2019, p. 120).

Nesse sentido, esse ser educador que diz Freire acaba por se tornar um ser transformador dos seus meios. Segundo Gadotti (1992, p. 21), “a escola que se insere nessa perspectiva procura abrir os horizontes de seus alunos para a compreensão de outras culturas, de outras linguagens e modos de pensar, num mundo cada vez mais próximo, procurando construir uma sociedade pluralista”.

Assim, atividades que despertaram a curiosidade e o entusiasmo dos discentes são atividades que dialogam sobre a vida cotidiana deles. Assim, o foco no fortalecimento da autoestima dos educandos baseado em debate e esses moldes de atividades auxilia em uma construção de sujeitos que não destacam diferentes marcas e traumas tão presentes nos ambientes escolares.

Segundo Celso Antunes (2001), “traumas que as pessoas carregam por toda a vida foram adquiridos nos bancos escolares”. Então trabalhar a importância de temáticas para contribuir gradativamente para a elevação da estima desses sujeitos se faz necessário.

Corroborando essa ideia, Paula Dely diz que a autoestima “é um elemento que se desenvolve na infância e depende de como e do quanto fomos valorizados pelas pessoas que amamos. Conhecer nosso valor depende de que alguém o aponte e nos estimule”.

Paulo Freire (2019) expressa que a escola deve ser um lugar de trabalho, de ensino, de aprendizagem. Um lugar em que a convivência permita estar continuamente se superando, porque a escola é o espaço privilegiado para pensar. Dessa forma, para o autor é necessário valorizar a experiência dos educandos, aquilo que trazem consigo, estimulando e destacando o quanto são importantes e chaves principais para todo o ano escolar.

Conclusões possíveis

Assim, ao final do projeto e do ano foi possível evidenciar que os alunos haviam construído novas reflexões sobre diferentes temas, demonstrando o conhecimento de si e do outro. O respeito às diferenças trabalhadas no projeto transformou-se em elevada autoestima dos alunos. Além disso, o espelho, que se apresentou como algo rico do projeto, se tornou uma importante ferramenta educacional.

Dessa forma, seguimos acreditando no poder de nossas histórias, de como podemos nos empoderar de tantas vivências para narrar novos caminhos. Seguimos na ideia de que, enquanto seres inacabados, vamos construindo coletivamente a esperança de alcançar sonhos por vezes considerados utópicos, mas não para nós que esperançamos na luta, na busca e no aprender. 

As experiências (Larrosa, 2001) compartilhadas aqui são memórias de uma construção partilhada com as crianças que transbordaram as nossas salas, nossos meios e a própria escola. Uma formação continuada por meio dessas trocas afetuosas e repletas de práticas emancipatórias de (trans)formações e identidades.

Por fim, fomos atravessados durante todo o ano letivo por uma outra Maré, vista e retratada pelos protagonistas do processo educacional. Uma região rica em sua diversidade, relações étnico-raciais, territorialidades, lazeres, memórias e pertencimentos. Trazer a valorização das suas culturas nos diálogos do universo infantil nos faz perceber que práticas como essa se fazem urgentes na sociedade contemporânea desde os primeiros anos. É preciso, nesse sentido, construir um aprender visibilizante, memorial e emancipador, pois, como diz a professora Helena Araújo, “sem horizonte utópico é impossível caminhar”.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 2007.

ANTUNES, Celso. Professores e professoras: reflexões sobre a aula e práticas pedagógicas diversas. Petrópolis: Vozes, 2007.

______. Autoestima: Óbvio Demais, Óbvio Demais II e Óbvio III. Portal Aprende Brasil – articulistas, 2001.

DELY, Paula. Autoestima: uma tarefa para os pais e educadores. Disponível em: http://wwweducacionalnet2.cdn.educacional.com.br/falecom/nutricionista_imprimir.asp?codtexto=534. Acesso em: 20 abr. 2022.

DIAS, R. O trabalho com projetos. 5ª ed. Goiânia: Alternativa, 2004.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. São Paulo: Pallas, 2017.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.

______. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz & Terra, 1992.

______. Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

______. Educação “bancária” e educação libertadora. Introdução à psicologia escolar, v. 3, p. 61-78, 1997.

GADOTTI, Moacir. Diversidade cultural e educação para todos. 1992.

KRAMER, Sonia; LEITE, Maria Isabel. Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas: Papirus, 2015.

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

OLIVEIRA, Marilu Palma de; DOS SANTOS, Silvio Carlos; FREITAS, Soraia Napoleão. (Trans)formação docente:entrecruzando competências e saberes no fazer pedagógico. Revista Brasileira de Educação e Cultura, nº 5, p. 45-67, 2012.

SÁ, Teresa. Lugares e não lugares em Marc Augé. Tempo Social, v. 26, nº 2, p. 209-229, 2014.

Publicado em 17 de maio de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

NASCIMENTO, Diogo Silva do; SANTOS, Aline Pereira Botelho dos; SILVA, Mayara Barbosa Santos da. Escola e afetos: o “esperançar” como ação pedagógica em uma favela do Rio de Janeiro. Revista Educação Pública, v. 22, nº 18, 17 de maio de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/18/escola-e-afetos-o-resperancarr-como-acao-pedagogica-em-uma-favela-do-rio-de-janeiro

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