Resenha do artigo “Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente”

Ingrid Carla Aldicéia Oliveira do Nascimento

Mestranda em Ensino em Educação Básica (PPGEB/UERJ), especialista em Psicopedagogia (UERJ) e Neurociências Aplicadas (UFRJ), licenciada em Pedagogia (UERJ), professora da rede municipal do Rio de Janeiro

Clayton Tôrres Felizardo

Mestrando em Ensino em Educação Básica (PPGEB/UERJ), pós-graduando em Ensino de Ciências e Biologia (Cespeb/UFRJ), licenciado em Ciências Biológicas (UERJ), tutor presencial de Ciências Biológicas (UERJ/Cederj)

Layla Mariana Sucini Coury

Mestranda em Ensino em Educação Básica (PPGEB/UERJ), especialista em Ensino da Matemática (CP II), licenciada em Pedagogia (UERJ), professora do Colégio Pedro II

O artigo aqui resenhado é de autoria de António Nóvoa, intitulado “Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente”. O autor é notório na área, tendo produzido mais de cem textos, em que discorre, por exemplo, sobre a profissionalização docente. No cenário internacional, vem se destacando como organizador de grandes debates sobre o processo de ensino-aprendizagem. Cursou Ciências da Educação na Universidade de Lisboa, fez mestrado e doutorado sobre o processo de profissionalização docente em Portugal, seu país natal. No ano de 2006, foi eleito reitor da Universidade de Lisboa.

Nóvoa inicia o texto falando sobre parte de sua trajetória e suas reflexões a respeito da formação e da profissão docente. Ao longo do artigo, o autor discorre sobre a necessidade de algumas mudanças nos cursos de licenciatura, como a diminuição da distância entre o que os futuros professores aprendem na academia e os cenários com os quais se deparam nas escolas, além de sinalizar como as universidades lidam com as licenciaturas, entre outros problemas, que colaboram para a “desprofissionalização docente”, trazendo uma crítica muito pontual sobre a diferença no tratamento dos cursos de maior prestígio – usando o de medicina para exemplificar – e os de licenciatura.

O autor convida a uma reflexão, talvez norteadora de todo o trabalho, sobre como elencar o saber produzido nas universidades, estabelecendo uma ponte com os saberes das escolas e como se daria a sua internalização. Para fundamentar sua argumentação, Nóvoa divide o texto em três partes, que se subdividem e permitem uma discussão ampla e objetiva a respeito da formação e da profissão docente. Para isso, na primeira parte, ele situa os leitores quanto ao campo de formação de professores, falando sobre as iniciativas existentes para repensar os cursos de licenciatura e promover mudanças neles. Em seguida, traz o tópico “Entre-partes”, que faz ligação entre a “Primeira parte” do texto e aquela ele chamada “Segunda parte”. Nesse tópico, o autor posiciona o leitor sobre algumas questões históricas que ajudaram a formular o que se entende por identidade dos docentes na atualidade, anunciando a segunda parte do texto com algumas mudanças capazes de promover uma formação profissional docente de qualidade e em consonância com as realidades encontradas no locus escolar.

Hoje, a produção científica sobre o campo educacional é muito grande e bastante variada; ela nos permite analisar o desenvolvimento da profissionalização da docência. Nesse sentido, arriscamos apontar um sentimento de insatisfação por parte desses atores sociais devido às políticas neoliberais que, para atender a uma lógica de mercado, sucateiam a educação, gerando aberturas para a sua possível privatização (Roman, 1999; Maurente, 2019). Essa insatisfação atinge os profissionais que pensam a Educação nas últimas décadas.

Baixos salários, difíceis condições das escolas e a burocratização do trabalho dos professores são apontados por Nóvoa como alguns dos fatores que colaboram para a insatisfação e o processo de “desprofissionalização” docente; apontamentos que nos remetem à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), que versa, dentre as muitas dimensões do fazer pedagógico, sobre a “valorização do profissional da educação escolar”, assegurando ainda que “os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da Educação, assegurando-lhes isso nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público” (Brasil, 1996). Ou seja, desde meados da década de 90, esse princípio já estava atrelado a uma garantia da qualidade do ensino.

Ao falar sobre a crise na educação pública, que se acentua devido aos projetos de privatização com a terceirização de algumas funções não só de caráter pedagógico, mas também como formas de gestão privada, Nóvoa faz refletir sobre a contratação de pessoas que exercem diferentes e importantes funções devido a seu “notório saber”, o que acaba por desprestigiar e esgotar o fazer docente que se dá nas práticas pedagógicas.

Não obstante os percalços supracitados, Nóvoa menciona também projetos que visam o sistema universitário de formação de professores, com propostas que podem vir a prejudicar ainda mais a situação das escolas públicas e dos docentes. Destacamos os ataques sofridos pelas universidades no que concerne à maneira que se dá o processo de formação docente. São diferentes ataques e críticas que vêm acompanhados de soluções metodológicas superficiais que desprezam outras dimensões do cotidiano de formação e atuação, como a social, a cultural e até mesmo a política.

Ainda sobre as privatizações, os discursos se dividem entre os defensores do atual formato dos cursos de licenciatura, os que querem que seja feita uma reforma nos cursos com a mercantilização da educação, e aqueles que acreditam que os cursos de licenciatura precisam, sim, de uma transformação, voltada para a formação dos professores, com direcionamento para a profissionalização e a formação continuada. Ou seja, as discussões acontecem sob diferentes perspectivas direcionadas por grupos apontados pelo autor, como defensores, reformadores e transformadores. Este último grupo parece fazer uma reflexão tanto de dentro da própria instituição quanto de fora dela, reconhecendo a transformação como necessária, desde que aconteça de forma dialógica com os envolvidos, para que não haja perdas na qualidade dessas discussões, prejudicando aqueles que estão no cerne do debate (Roman, 1999).

A transformação apregoada tem de ser feita com reconhecimento de um problema inerente e que a partir dele seja procurada uma solução. Nóvoa sugere que se volte o olhar para os moldes de outros cursos de formação universitária que tenham mais prestígio e se encontre neles uma fonte de inspiração, estimulando os futuros docentes a pensar e agir como professores, imbuídos por responsabilidade e ética profissional. O autor faz refletir sobre o caminho percorrido por um professor, partindo de sua formação inicial, passando por sua atuação em sala de aula, chegando à sua formação continuada, remetendo à “universitarização da formação dos professores”. Ainda atendendo a essa perspectiva, existem outras duas que influem na maneira como o indivíduo atua, se move e pensa em si mesmo como professor: é o olhar para as outras profissões e com isso buscar alguma inspiração.

Diante disso, Nóvoa indica a importância de criar, entre universidades e escolas, uma ligação capaz de articular o trabalho de ambos os espaços, promovendo debates, reflexões e ações em prol das políticas públicas educacionais. O autor lembra ainda a importância da participação das comunidades locais e da sociedade, oportunizando aos futuros docentes conhecer as diversidades culturais com as quais terão que lidar nas escolas.

Dessa maneira, a tradição histórica de pensar a formação de professores a partir dos atributos profissionais preestabelecidos seria modificada levando em consideração que a identidade profissional faz parte de um processo de construção contínuo dentro de um contexto organizacional que visa o desenvolvimento coletivo. O autor propõe então que sejam pensadas as posições que podem ser tomadas pelos professores no processo de construção profissional. No caso, as posições tomadas seriam condizentes com a postura em relação às atitudes profissionais, condição que vai permitir desenvolver um lugar profissional; o estilo que vai mostrar a forma de trabalho de cada profissional; o rearranjo, que permite sempre flexibilidade na atuação dos professores de acordo com a demanda; e a opinião, que possibilita intervenções quando necessárias, bem como afirmar publicamente a profissão.

Esse momento inicial de problematização do autor ainda segue, agora quanto à formação profissional docente, quando somos convidados a discutir a inserção dos novos profissionais nas licenciaturas e como torná-los professores; mais além, analisa-se como ocorre e será realizada essa integração para uma transformação da interseção universidade-escola.

Nóvoa chama a atenção para o que ele considera os dois pilares centrais da escola: conhecimento e mobilidade social. O primeiro, por ser composto por uma lógica pessoal e residir na experiência dos campos profissionais que o produzem e difundem; o segundo, por ser mais abrangente, ultrapassando a dimensão pessoal, alcançando os grupos e comunidades em que cada pessoa está inserida. Assim, destacamos quatro características desse lugar que podemos entender como novo:

  1. Um espaço comum da formação e atuação - esse espaço seria divido pela articulação entre universidade, escola e políticas públicas que delas fazem parte. Nele se daria a coparticipação dos profissionais representantes desses segmentos, num diálogo para a formação inicial e a formação continuada.
  2. Lugar de entrelaçamentos - nesse lugar funcionaria um espaço de fortalecimento teórico e metodológico, mas também da prática que aparece nas ações dos sujeitos pertencentes a ele e demandas que surgem dessa relação teórico-prática para posterior discussão acerca de decisões tomadas. É importante observar o papel da colaboração nessa característica, que desloca uma metodologia verticalizada universidade-escolas para um papel mais de protagonismo conjunto.
  3. Lugar de encontros - aqui seria privilegiada a criação de um novo lugar, a chamada terceira realidade. Um espaço onde se somariam os conhecimentos já adquiridos para serem produzidos novos conhecimentos – e não apenas reformular o que vinha sendo feito. Essa criação seria pautada na valorização dos conhecimentos e experiências advindos deles, no respeito mútuo dos saberes que dali coexistem.
  4. Lugar de ação pública - dentre as outras três características citadas, esta quarta, igualmente importante, faz referência à inserção da sociedade e das comunidades locais de onde as escolas fazem parte. Esse organismo tão complexo e que é constante de disputas políticas não pode e não deve se fechar à realidade na qual está atravessada. Não existe o fazer docente sem a contextualização da realidade do educando, e isso se traduz para o corpo docente, de maneira que todos os envolvidos possam dialogar de forma real sobre como se dão seus anseios.

O autor afirma ainda que, para que seja possível aprender a ser professor, é necessário que os sujeitos desenvolvam uma vida cultural e científica própria, ética profissional e preparação para agir em ambientes de incertezas e situações imprevisíveis.

Quando chegamos ao fim na análise da primeira parte do texto, Nóvoa chama a atenção para as características de um contexto histórico no qual foi sendo elaborado o ideário de “bom professor”. Tendo início no século XIX nas escolas normais, passando pelo século XX, que angariou outras, até chegar ao século XXI. Entretanto, independente do período histórico ao qual façamos referência, até o presente momento é comum que todos tenham um escopo sobre como deveria ser o profissional da educação: um padrão preestabelecido que despreza os contextos e posições marcados pelas formações profissionais desses docentes.

Na segunda parte do artigo, o autor evidencia a importância – e até mesmo a centralidade – que o conhecimento científico (e o cultural) exerce como papel primordial quando estamos falando do processo de ensino. E dá continuidade à sua reflexão baseando-se no conceito de posição. São apresentados então princípios atrelados à “universitarização” da formação profissional docente, compreendidos em cinco entradas relacionadas à posição. São elas: disposição pessoal, interposição profissional, composição pedagógica, recomposição investigativa e exposição pública.

A primeira entrada, chamada disposição pessoal, está relacionada ao que esse futuro professor espera da profissão: dar a ele um conhecimento prévio do que seria o seu ofício na prática e saber se essa é a sua pretensão. A interposição profissional, a segunda entrada, remete ao universo em que o futuro profissional estará inserido. Essa inserção se faz necessária para que esses licenciados comecem a construir sua identidade como futuros docentes e que nesses espaços reconheçam a si mesmos e aos outros professores, produzindo uma troca de saberes importantes. Essa inserção se faz por meio de residências pedagógicas, estágios supervisionados e outras formas de contato dos licenciados com as escolas.

Tão importante quanto esse contato inicial é a formação continuada desse profissional da Educação e a sua permanente atualização, que contribuirão nas novas identidades pedagógicas em formação. A composição pedagógica, tema da terceira entrada, faz referência ao “eu” professor, ao ser único. Esse ser que tem o conhecimento pertinente a sua profissão, mas que precisa se relacionar com as situações do cotidiano da sala de aula, com as relações humanas.

A quarta entrada, a recomposição investigativa, sinaliza para uma renovação do fazer pedagógico, aqui é entendido como a atividade de pesquisa que o docente faz. Essa pesquisa deve estar atrelada à sua profissão, seja no âmbito individual ou coletivo e que isso se constitui em formação continuada desse professor pesquisador. O reconhecimento da prática de pesquisar pelos professores da Educação Básica se torna algo primordial e mesmo inerente ao bom desenvolvimento da sua didática, afirmando-se na sua escrita e, com ela, a socialização desse conhecimento no sentido de compartilhar as experiências. A quinta e última entrada, que Nóvoa chama de exposição pública, remete novamente ao contexto histórico-social da escola desde o século XIX até chegar ao século XXI e suas profundas transformações, destacando-se dentre elas a participação social no contexto escolar, participação que fica a cargo das famílias, associações, movimentos sociais etc. Ou seja, esse cenário aponta para maior discussão e mesmo colaboração e decisão entre os envolvidos que formariam a comunidade escolar.

O texto é complementado com argumentações de grande relevância para o campo docente, sobre como a formação adequada dos profissionais docentes pode colaborar para que eles aprendam a agir, adquirir conhecimentos e intervir como professores. Para agir, é importante que os professores, além de considerar a dicotomia entre o conhecimento das disciplinas e o conhecimento pedagógico, ajam com sensatez e conheçam a essência do ensino, incorporando-o à sua vivência profissional. Sobre o conhecimento necessário, Nóvoa afirma que é necessário estudar e analisar as realidades das escolas e do trabalho docente, para que os profissionais possam se renovar e recompor suas práticas pedagógicas. As intervenções devem ser feitas considerando a escola como espaço democrático, que prepara seus alunos para além dos muros dela própria, estimulando-os a participar das dinâmicas sociais, assim como os próprios professores, que devem também, com seu trabalho, participar da formação de políticas públicas.

Com a obra resenhada aqui, fica explícita a linha que Nóvoa segue ao pensar o processo de formação docente como profissionalização docente universitária, acompanhada de uma posição docente que se assume e de entradas que abarcam esse fazer docente, o qual não deve estar descontextualizado da realidade de onde esse profissional está inserido. Contudo, não deve ser vista como uma receita pronta, de algo inacabado ou até mesmo prescrito, e sim como uma direção para tomada de decisões individuais e coletivas, colaboração e participação do eixo universidade-escolas.

Referências

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, p. 27.833, 23 dez. 1996.

MAURENTE, V. S. Neoliberalismo, ética e produtividade acadêmica: subjetivação e resistência em programas de pós-graduação brasileiros. Interface - Comunicação, Saúde, Educação [online], v. 23, e180734, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/Interface.180734. Acesso em 18 out. 2021.

NÓVOA, A. Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de Pesquisa, v. 47, nº 166, out./dez. 2017.

ROMAN, M. D. Neoliberalismo, política educacional e ideologia: as ilusões da neutralidade da Pedagogia como técnica. Psicologia USP [online], v. 10, nº 2, p. 153-187, 1999. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65641999000200011. Acesso em: 2 out. 2021.

Publicado em 07 de junho de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

NASCIMENTO, Ingrid Carla Aldicéia Oliveira do; FELIZARDO, Clayton Tôrres; COURY, Layla Mariana Sucini. Resenha do artigo “Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente”. Revista Educação Pública, v. 22, nº 21, 7 de junho de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/21/resenha-do-artigo-rfirmar-a-posicao-como-professor-afirmar-a-profissao-docenter

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