Autonomia na BNCC: uma análise sob a perspectiva de Paulo Freire

Robson Verissimo Silva

Mestrando em Educação (Universidade Ibirapuera), bacharel e licenciado em Geografia (USP), professor de Geografia no ensino básico, autor e editor de materiais didáticos

A educação progressista defendida por Paulo Freire critica duramente o ensino que prioriza conteúdos e técnicas em detrimento da leitura crítica do mundo. Ao refletir sobre a fome, por exemplo, o educador expõe a preocupação com uma compreensão não dicionarizada do fenômeno: afirma que é necessário buscar aquilo que está além do significado do fenômeno e compreender suas razões de ser (Freire, 2015). É a partir dessa perspectiva que são propostas as reflexões presentes neste artigo: uma análise das noções de autonomiapresentes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que não negligencie suas razões de ser. Dessa forma, convém tecer algumas breves considerações sobre o contexto no qual o documento é concebido.

As transformações políticas, econômicas e culturais impulsionadas sobretudo a partir da década de 1990 trouxeram à tona amplas reflexões sobre o processo de globalização e seus desdobramentos nas mais diversas dimensões do mundo atual. Teóricos de diversas áreas se debruçaram sobre a temática e lançaram, por meio de suas contribuições, perspectivas que variam do pleno otimismo à absoluta demonização do fenômeno. Na educação, não foi diferente.

Apesar da variedade de abordagens, compreende-se aqui globalização como “o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista” (Santos, 2001, p. 23). Dessa forma, não é possível dissociar o atual período de globalização do avanço das transformações no capitalismo que tomaram força no fim do século XX e que avançam a passos largos no século XXI. Um aspecto fundamental desse processo diz respeito ao aumento da influência das organizações internacionais e empresas em detrimento da força dos Estados.

É necessário compreender que, embora o fortalecimento e o avanço dos interesses internacionais sejam uma realidade, não podemos nos deixar seduzir pelo pensamento simplista, reducionista e dicotômico de que o embate de forças entre esses interesses e o Estado levaria à anulação de sua relevância enquanto instituição. Milton Santos, ao discorrer sobre o assunto, chama a atenção para o fato de que a maneira como a inserção do Estado ocorre no mundo globalizado depende do nível de passividade manifestado nas escolhas de seu governo. Dessa forma, sua atuação frente ao jogo de influências internas e externas pode fortalecer ou não um projeto nacional que resista às exigências de forças internacionais (Santos, 2001). Na análise do geógrafo, o Brasil está inserido no segundo cenário.

Em outras palavras, ao incluir, no início do século XXI, a realidade brasileira no grupo de países “à mercê de exigências externas” (Santos, 2001, p. 78), evidencia-se o elevado nível de influência dos interesses internacionais na definição dos rumos do país. É justamente esse o aspecto que desperta preocupação ao analisar as transformações do cenário educacional brasileiro ao longo das últimas décadas: o projeto nacional de educação tem sido pensado para atender às necessidades de sua população ou aos interesses internacionais?

Ensinar e aprender são questões centrais da humanidade, estudadas e debatidas desde a Antiguidade. Milênios após o início dessa discussão, parece seguro afirmar que, ainda nos dias de hoje, essa perspectiva não é diferente: a educação, afinal, ocupa posição de destaque entre políticas públicas em todo o mundo. Não é raro que modelos de reformas e indicadores educacionais internacionais sejam utilizados como justificativa para reformas em âmbito nacional. Embora a educação seja, por essência, o campo da prática e da reflexão dos educadores, a definição dos rumos das políticas educacionais não é, nem de longe, um exercício que lhes cabe exclusivamente.

Nesse sentido, observa-se que o avanço da globalização possibilitou a intensificação da atuação de organismos internacionais em diversas esferas – entre elas, na educação. Importantes transformações na organização dos sistemas produtivos mundiais impactaram diretamente seus rumos. Amplas reformas educacionais tomaram conta das agendas das discussões de políticas públicas em diferentes países, e modelos de mensuração da eficiência da aprendizagem tornaram-se uma realidade em diversos sistemas educacionais.

Observa-se aqui, provavelmente como um dos exemplos mais ilustrativos desse processo, a crescente influência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por meio da institucionalização do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) como modelo de avaliação do desempenho de estudantes, cujos resultados são amplamente utilizados para justificar os rumos do desenvolvimento das políticas públicas nacionais.

A implementação da BNCC, em discussão desde 2015, oficializou amplas possibilidades de mudança no currículo escolar brasileiro. Tais mudanças são observadas tanto no campo de uma reorganização das áreas de conhecimento quanto em suas abordagens teórico-metodológicas. Ao inserir no bojo do documento a aprendizagem com foco no desenvolvimento de competências, efetiva-se o alinhamento com a perspectiva de educação estimulada pela OCDE:

Desde as décadas finais do século XX e ao longo deste início do século XXI, o foco no desenvolvimento de competências tem orientado a maioria dos estados e municípios brasileiros e diferentes países na construção de seus currículos. É esse também o enfoque adotado nas avaliações internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, na sigla em inglês), e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês), que instituiu o Laboratório Latino-Americano de Avaliação da Qualidade da Educação para a América Latina (LLECE, na sigla em espanhol) (Brasil, 2018, p. 13).

Além disso, no documento, a perspectiva do saber fazer em muitos momentos se sobrepõe à do saber. Dessa maneira, assume-se um caminho que pode induzir o desenvolvimento do educando a um conjunto de competências que têm como objetivo principal a seleção e formação de mão de obra (Laval, 2004). No contexto da aprendizagem por competências, movimento de fundamental importância para a consolidação da BNCC, essa perspectiva é constantemente reforçada:

Por meio da indicação clara do que os alunos devem “saber” (considerando a constituição de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores) e, sobretudo, do que devem “saber fazer” (considerando a mobilização desses conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho), a explicitação das competências oferece referências para o fortalecimento de ações que assegurem as aprendizagens essenciais definidas na BNCC (Brasil, 2018, p. 13).

O avanço da Pedagogia das Competências ganhou corpo no fim do século XX com contribuições de obras de pensadores como Perrenoud (1997) e Zabala (1998), em um momento também marcado pelo avanço das políticas neoliberais em curso desde o final da década de 1980. Observa-se que a noção de competência, que avança rapidamente nas ideias pedagógicas no Brasil nesse período, já estava presente na segunda metade do século XX a partir da emersão da teoria construtivista, “na qual as competências vão identificar-se com os próprios esquemas adaptativos construídos pelos sujeitos na interação com o ambiente num processo, segundo Piaget, de equilibração e acomodação” (Saviani, 2019, p. 437). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), sancionada em 1996, já sinalizava, no Art. 9º, o estabelecimento de competências para todos os níveis da Educação Básica como incumbência da União, em colaboração com as demais esferas administrativas (Brasil, 1996).

Em 2016, mais de duas décadas depois, ocorreram inserções dos termos competência e habilidade relacionadas à BNCC, por meio da Medida Provisória nº 746/16, alterada posteriormente pela Lei nº 13.415/17. Observa-se aqui que a perspectiva da Pedagogia das Competências avançou de intenção à prática nesse período. O Plano Nacional de Educação (PNE), por sua vez, apresenta o conceito de habilidade em 2014 em meio às estratégias para elevação das taxas líquidas de matrículas no Ensino Médio. É fundamental notar que essa menção está relacionada à utilização do Enem como instrumento avaliativo vinculado ao acesso ao Ensino Superior:

Universalizar o Exame Nacional do Ensino Médio - Enem, fundamentado em matriz de referência do conteúdo curricular do Ensino Médio e em técnicas estatísticas e psicométricas que permitam comparabilidade de resultados, articulando-o com o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), e promover sua utilização como instrumento de avaliação sistêmica para subsidiar políticas públicas para a Educação Básica, de avaliação certificadora, possibilitando aferição de conhecimentos e habilidades adquiridos dentro e fora da escola, e de avaliação classificatória, como critério de acesso à Educação Superior (Brasil, 2014, p. 3).

Foi em 1998, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que encontramos pela primeira vez uma menção explícita e contextualizada às necessidades do desenvolvimento de competências e habilidades em documento oficial. O alinhamento à Pedagogia das Competências está diretamente relacionado ao novo contexto do mundo globalizado, marcado pelo avanço das políticas neoliberais, nesse momento já consolidado no governo Fernando Henrique Cardoso.

A rapidez com que se dá a produção de conhecimento e a circulação de informações no mundo atual impõe novas demandas para a vida em sociedade. Hoje, mais do que nunca, é necessário que a humanidade aprenda a conviver com a provisoriedade, com as incertezas, com o imprevisto, com a novidade em todos os sentidos. Isso pressupõe o desenvolvimento de competências relacionadas à capacidade de aprendizagem contínua, ou seja, à autonomia na construção e na reconstrução do conhecimento: capacidade de analisar, refletir, tomar consciência do que já se sabe, ter disponibilidade para transformar o seu conhecimento, processando novas informações e produzindo conhecimento novo (Brasil, 1998, p. 139-140).

O atual momento da implementação de políticas educacionais no Brasil remete, portanto, à necessidade de “dotar os indivíduos de comportamentos flexíveis que lhes permitam ajustar-se às condições de uma sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não estão garantidas” (Saviani, 2019, p. 437). Em outras palavras: há necessidade de adequação do sujeito a um novo paradigma produtivo no qual há, além da constante mobilidade nas ocupações profissionais, a naturalização da precarização das relações trabalhistas. Dessa forma, observa-se que as noções de competência que orientam as políticas educacionais nacionais conectam o educando às necessidades produtivas do mundo neoliberal.

A consolidação desse processo ocorre com a BNCC, principal documento orientador da reorganização curricular em curso no Ensino Básico brasileiro. Na BNCC, são oferecidas as bases para a construção de currículos organizados com base em um conjunto de competências e habilidades para cada uma das áreas de conhecimento. A noção de competência é apresentada, portanto, em conformidade com a lógica da Pedagogia das Competências:

Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho (Brasil, 2018, p. 8).

Nesse contexto, observa-se que as noções de autonomia presentes no documento são também parte desse processo, uma vez que o conceito é citado frequente e explicitamente em duas das dez competências gerais, que são referência para as habilidades propostas para cada área do conhecimento. Por outro lado, nas exatas 600 páginas que constituem sua versão mais recente, não há uma única referência nem a Paulo Freire, nem a qualquer outro teórico. Dessa forma, pergunta-se: quais são as noções de autonomia presentes na Base e quais os seus possíveis desdobramentos nos rumos que vêm sendo definidos para a educação brasileira? A presente pesquisa busca, assim, a partir do contexto apresentado, refletir sobre as perspectivas de autonomia na BNCC à luz do pensamento freiriano.

Método

A identificação e categorização das referências ao termo autonomia possibilitaram a obtenção de dados que, nesta pesquisa de caráter qualitativo, foram analisados e confrontados com a perspectiva freiriana. Por perspectiva freiriana entende-se, nesta pesquisa, a síntese das reflexões de Paulo Freire sobre a autonomia ao longo de sua obra, com destaque para sua última publicação, a Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa, de 1996. A autonomia, tema de grande relevância na produção desse autor, está presente no escopo de ideias fundamentais para a prática educativa e para a construção de uma sociedade justa e igualitária. Suas considerações sobre a necessidade de uma educação crítica, capaz de libertar o educando e o educador das imposições do avanço neoliberal em toda a sua malvadeza – uma expressão que, em sua simplicidade diz muito –, fomentam a urgência da necessidade do desenvolvimento da autonomia para perceber e atuar sobre o mundo:

É essa percepção do homem e da mulher como seres “programados, mas para aprender” e, portanto, para ensinar, para conhecer, para intervir, que me faz entender a prática educativa como um exercício constante em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia de educadores e educandos (Freire, 2021, p. 142).

É importante considerar que Freire discorre sobre o papel do desenvolvimento da autonomia para educador e educando ao longo de sua extensa produção acadêmica. Para ele, a autonomia pode ser entendida como uma ideia que deve se fazer sempre presente no ato de educar e aprender. Mais que isso: deve ser incorporada como um princípio.

A partir do levantamento de reflexões de Freire sobre autonomia por meio de pesquisa bibliográfica em sua obra, buscou-se investigar as referências ao tema na BNCC por meio de análise documental. Com base no levantamento dos dados iniciais, todas as menções ao termo autonomia e suas variantes foram identificadas, analisadas e categorizadas de acordo com sua função no documento. Para isso, foram considerados os sentidos da aplicação do termo e buscou-se categorizar as menções entre o grupo 1, constituído por aquelas que fazem referência ao processo de ensino-aprendizagem, e o grupo 2, em que constam as menções sem relação direta com os processos educativos.

O foco da análise da pesquisa recaiu sobre o grupo 1, que foi subcategorizado de acordo com o sentido atribuído, considerando o objetivo de seu uso relacionado ao processo de ensino-aprendizagem.

Procedimentos de coleta e análise de dados

Ao analisar a BNCC, foram encontradas 86 ocorrências do termo autonomia. O número sobe para 142 se considerarmos as variantes autônoma, autônomas, autônomo e autônomos. Embora não integrem diretamente a pesquisa, é interessante destacar que há ainda 55 referências ao termo protagonismo e suas variantes, considerando que assume em muitos momentos uma conotação semelhante à autonomia ou mesmo à noção de independência. Uma vez que não há, no documento, nenhuma menção a um referencial teórico relacionado aos conceitos em questão, para fins de uma delimitação mais precisa optou-se por restringir a análise a autonomia e suas variantes diretas. Tendo isso em mente, os diferentes contextos em que o termo ocorre foram identificados e categorizados conforme o Quadro 1.

Quadro 1: Categorização das ocorrências do termo autonomia na BNCC

Grupo 1

Grupo 2

Mercado de trabalho

Pensamento crítico

Vida em sociedade

Saber fazer

Leitura e produção textual

Sem relação direta com os processos educativos

Páginas: 9, 14, 465, 478.

Páginas: 60, 137, 140, 244, 324, 354 (3), 356, 365 (2), 366 (2), 400 (3), 463, 464, 466, 482, 483, 515 (2), 519, 525, 552, 561, 569.

Páginas: 10, 36, 40, 60, 63, 87, 136, 213 (2), 355, 403 (2), 487, 570, 577, 578 (2), 579.

Páginas: 54, 58, 59, 76, 78, 220, 223, 343, 471, 481, 490, 493 (2), 501 (2), 517, 529, 558.

Páginas: 73, 74, 87, 94 (2), 96 (3), 97, 98 (2), 102 (3), 103 (2), 104, 106, 108 (2), 109, 110 (3), 111, 112 (2), 113, 118, 119 (3), 120 (3), 121 (6), 122, 123 (2), 124 (2), 128 (3), 129 (3), 132 (4), 133 (4), 169, 187, 197, 198, 205, 245, 248, 256, 260.

Páginas: 15, 16, 19, 21, 328.

Total: 4

Total: 28

Total: 18

Total: 18

Total: 69

Total: 5

No grupo 1 encontramos o conjunto de menções diretamente relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem presentes no corpo do texto, nas competências gerais, nas competências de cada componente curricular e na descrição das habilidades. Em um primeiro momento, foram contempladas todas as ocorrências da expressão e de suas variantes diretas na BNCC, incluindo suas repetições em quadros e tabelas que, ao se estenderem por mais de uma página, retomam a descrição de um mesmo campo.

Figura 1: Proporção das ocorrências do termo autonomia na BNCC, considerando o campo Leitura e produção textual

A irregularidade com a qual a situação ocorre, com grande desproporcionalidade entre as áreas do conhecimento, levou à definição de critérios específicos detalhados a seguir. Destaca-se ainda que as referências a cada um dos campos foram analisadas a partir de seu contexto de ocorrência e que sua definição foi elaborada para a organização desta pesquisa. Esses campos, portanto, não se encontram na BNCC. Dessa forma, foram definidos os critérios para a categorização adotada no grupo 1, detalhados a seguir.

As referências do campo Mercado de trabalho relacionam a noção de autonomia à inserção ou capacitação do educando para a atuação no mundo do trabalho. Como exemplo, podemos citar a competência geral 6: “entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade” (Brasil, 2018, p. 9).

As referências do campo Vida em sociedade relacionam a noção de autonomia ao desenvolvimento do indivíduo e de seu papel nas relações sociais. Como exemplo, podemos considerar passagens que incentivam o desenvolvimento de práticas que permitam ao educando “participar com maior autonomia e protagonismo na vida social” (Brasil, 2018, p. 63).

Ao tratar do campo Pensamento crítico, relaciona-se a noção de autonomia à tomada de decisões, leitura e análise crítica da realidade. Como exemplo, podemos citar a competência geral 10: “Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários” (Brasil, 2018, p. 9). Nesse caso, a menção foi categorizada no campo pensamento crítico por relacionar-se à tomada da decisão.

As referências do campo Saber fazer, por sua vez, relacionam a noção de autonomia ao desenvolvimento de uma ação, conhecimento ou técnica de maneira independente dos seus níveis de proficiência, tais como em “Uma vez que muitas habilidades já foram desenvolvidas e um grau de autonomia relativo às práticas de linguagem consideradas já foi alcançado” (Brasil, 2018, p. 501). Essa categoria também abrange referências a habilidades operatórias, de movimentação, de autocuidado e semelhantes, como ocorre em “Apresentar autonomia nas práticas de higiene, alimentação” (Brasil, 2018, p. 54).

Inicialmente, as menções relacionadas ao campo da produção textual estavam divididas entre Pensamento crítico e Saber fazer. Contudo, ao considerar que mais de 50% das menções ao termo autonomia estão concentradas nas habilidades e competências da área de Linguagens, especialmente no componente de Língua Portuguesa, optou-se pela inserção de um novo campo que desse conta da especificidade do desenvolvimento do domínio da escrita e da leitura.

A discrepância no número de ocorrências ocorre principalmente em função das especificidades da construção do texto, no qual o termo é repetido constantemente nas habilidades e nos cabeçalhos de quadros e tabelas. Como exemplo de uma ocorrência que não corresponde a esse contexto, é possível citar a habilidade “Ler e compreender silenciosamente e, em seguida, em voz alta, com autonomia e fluência, textos curtos com nível de textualidade adequado” (Brasil, 2018, p. 113).

Figura 2: Proporção das ocorrências do termo autonomia na BNCC, desconsiderando o campo Leitura e produção textual

No grupo 2, composto apenas pela categoria Sem relação direta com os processos educativos, foram categorizadas as menções que ocorrem em contextos específicos e não se referem diretamente ao desenvolvimento do educando. Em linhas gerais, essas ocorrências estão relacionadas às dimensões administrativas das esferas de poder, políticas públicas, sistemas, redes e instituições de ensino, tais como “No Brasil, um país caracterizado pela autonomia dos entes federados” (Brasil, 2018, p. 15).

Resultados e discussões

Ao observarmos isoladamente algumas passagens da BNCC, temos a impressão de que as menções ao termo autonomia dialogam com a perspectiva freiriana. Podemos tomar como exemplo as competências gerais 6 e 10, que fazem uso da expressão:

6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. [...]

10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários (Brasil, 2018, p. 9-10, grifo nosso).

Nota-se que a construção dos textos introdutórios é bastante sedutora ao apresentar a necessidade de adequação de uma educação para novos tempos que supere o modelo tradicional e conteudista. Para tanto, a BNCC apresenta uma estrutura baseada no desenvolvimento de competências e habilidades para definição de aprendizagens essenciais; uma estrutura que não se baseia em conteúdos mínimos (Brasil, 2018).

Não podemos, porém, considerar o documento isolado do contexto no qual sua construção e implementação ocorreram. O texto de abertura da Base, de autoria do então ministro da Educação Rossieli Soares da Silva, apresenta preocupações com o preparo para o futuro alinhadas às demandas dos estudantes. Convém observar que a definição das demandas dos estudantes deveria levar em consideração, sobretudo, as perspectivas dos próprios educandos. Ao avançar no texto introdutório do documento, percebe-se que há, de fato, menções ao desenvolvimento de um projeto de Educação comprometido com a construção de uma Educação que considera os interesses do educando e os interesses do mundo contemporâneo.

Independentemente da duração da jornada escolar, o conceito de educação integral com o qual a BNCC está comprometida se refere à construção intencional de processos educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea (Brasil, 2018, p. 14).

Ao analisar esse trecho e contextualizá-lo no documento, percebe-se que a sintonia com as individualidades dos educandos está relacionada diretamente ao campo das escolhas metodológicas que, ao considerarem seus interesses, desenvolvem os objetivos de aprendizagem expressos pelas habilidades. A dimensão desafios da sociedade contemporânea, por sua vez, é apresentada dissociada da perspectiva estudantil, como um elemento externo de uma realidade já dada, predeterminada e imutável. Seus interesses devem ser considerados pelo educador para a promoção de estratégias que permitam a adaptação a essa realidade.

Dessa forma, ao apresentar a promoção de aprendizagens sintonizadas aos interesses dos estudantes e às necessidades da sociedade contemporânea, convém questionar se o projeto de Educação no qual a BNCC está inserida considera os estudantes como sujeitos na reciprocidade do processo de ensino-aprendizagem e, portanto, se compromete com o desenvolvimento da capacidade analítica e crítica da realidade ou os submete a uma lógica formativa representativa de interesses do mundo do trabalho neoliberal. Afinal, a autonomiaestá sendo construída a serviço de quem?

Ao analisarmos com cuidado os demais contextos em que ocorre, observamos que o uso do termo autonomia e de suas derivações está inicialmente relacionado à atuação dos entes federados. Ao tratar das questões relacionadas ao processo educativo, observa-se intensa polissemia em seus múltiplos significados ao longo das páginas. A autonomia não é abordada a partir de um referencial teórico explícito no documento, fato que aponta para a falta de uma intencionalidade explícita. É justamente nessa arbitrariedade aparente que são revelados aspectos que permitem compreender algumas das intenções presentes em sua organização.

Ao tratar do perfil geral dos estudantes do Ensino Médio, por exemplo, a BNCC parte do princípio de que esse período é caracterizado por mais autonomia e que, por isso, os jovens podem refletir sobre o mundo com maior profundidade. Dessa forma, podem participar mais efetivamente da vida pública e da produção cultural (Brasil, 2018). Ao considerar que “Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões que vão sendo tomadas” (Freire, 2021, p. 105), percebe-se a adoção de uma dimensão determinista para o conceito, uma vez que a autonomia é percebida como uma propriedade inerente ao período que caracteriza o Ensino Médio. Há, portanto, uma inversão da perspectiva freiriana, que é radicalmente contrária a uma concepção essencialmente pragmática: nesse contexto, evidencia-se que seu desenvolvimento não faz parte dos objetivos da aprendizagem, uma vez que a autonomia é transformada em um recurso para atingi-los.

O diálogo com Milton Santos permite lançar alguma luz sobre as intenções da inversão observada. Ao discorrer sobre a realidade do início do século XXI no contexto da globalização, o geógrafo chama a atenção para o papel de submissão do Estado brasileiro frente à influência internacional, uma das principais expressões da imposição da lógica neoliberal (Santos, 2001). O resultado é a influência desse processo na concepção de políticas públicas em diferentes setores, inclusive na Educação. Freire reforça seu posicionamento sobre a questão ao afirmar que

o discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos, na verdade, por um mundo de gente. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, da medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca (Freire, 2021, p. 124-125).

A análise da categorização das ocorrências do termo autonomia e suas variantes na BNCC reafirma a ausência de unicidade teórica para sua utilização. A subcategorização das menções à autonomia em cinco campos no grupo 1 deixam claras ao menos quatro acepções distintas: aquelas relacionadas ao Mercado de trabalho, com foco principalmente na preparação para as escolhas profissionais do futuro; ao Pensamento crítico por meio do desenvolvimento da leitura de mundo; à Vida em sociedade, que se refere à relação do indivíduo com outras pessoas; e ao Saber fazer, que considera o desenvolvimento de proficiência em técnicas e conhecimentos específicos.

Conforme especificado anteriormente, o campo Leitura e produção textual foi destinado à aplicação da noção de autonomia ao desenvolvimento da leitura e da escrita, uma vez que a especificidade da construção textual da área de Linguagens é responsável por mais da metade das ocorrências. Em função das peculiaridades de sua utilização no texto, as ocorrências desse campo não integram a análise sob a perspectiva freiriana.

Ao perceber homens e mulheres como seres programados para aprender, o ensinar, o conhecer e o intervir associam a noção de autonomia de educadores e educandos a uma educação transformadora (Freire, 2021). Dessa forma, ao fugir de uma concepção simplista desse princípio, podemos assumir que a autonomia não tem sentido quando desenvolvida mecanicamente ou como a simples aquisição de níveis de proficiência técnica.

Como já apresentado, há diferentes acepções encontradas no uso da expressão ao longo de suas 142 ocorrências na BNCC. Dentre elas, 28 foram categorizadas no campo do Pensamento crítico e dialogam em maior ou menor grau com a perspectiva de autonomia de Freire. Exatamente a metade dessas ocorrências estão presentes nas Ciências Humanas, que, em função de seus objetos, apresentam forte diálogo com o pensamento crítico e têm autonomia como categoria de grande relevância.

As 18 ocorrências relacionadas ao campo Vida em sociedade têm relação direta com o desenvolvimento da socialização, da reflexão sobre si e sobre o outro. Embora a autonomia à qual as expressões se referem esteja majoritariamente ligada ao desenvolvimento de relações harmônicas e empáticas, são observados mesmo aqui contextos nos quais sua aplicação está voltada ao aprimoramento técnico individual para a atuação em um contexto mais amplo. Ao tratar da utilização das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) nas escolas, por exemplo, essa necessidade é expressa como “determinante para uma aprendizagem significativa e autônoma pelos estudantes” (Brasil, 2018, p. 487).

No campo Saber fazer, as 18 vezes em que a expressão autonomia é utilizada assumem predominantemente a conotação de aquisição, aprimoramento técnico e de níveis de habilidade em determinado conhecimento ou prática. O caráter utilitarista empregado aqui diverge fundamentalmente do caráter freiriano, uma vez que pragmatiza seu uso a uma situação específica.

Finalmente, o campo Mercado de trabalho é de fundamental relevância para esta análise. Embora apresente um número menor de ocorrências, os contextos de utilização em três passagens revelam importantes concepções de formação na BNCC. Nesse campo, o documento apresenta noções relacionadas ao entendimento do mundo do trabalho para a realização de escolhas “autônomas” (Brasil, 2018, p. 9), à autonomia para a tomada de decisões que permitam aprender a aprender e aplicar conhecimentos para resolver problemas (Brasil, 2018, p. 14) e à integração no mundo do trabalho (Brasil, 2018, p. 478). As três ocorrências integram, respectivamente, uma das dez competências gerais que orientam o documento, a contextualização de Educação Integral e as intenções do trabalho com itinerários formativos.

Ao estimular o desenvolvimento de programas educacionais que permitam ao estudante “adaptar-se às novas condições ocupacionais e às exigências do mundo do trabalho contemporâneo e suas contínuas transformações, em condições de competitividade, produtividade e inovação” (Brasil, 2018, p. 478), torna-se explícito o alinhamento a uma perspectiva neoliberal de educação: uma realidade de estímulo à competitividade e ao individualismo inerente ao modelo que tem determinado as políticas públicas de Educação no país. A relação é especialmente relevante quando consideramos que a proposta de itinerários formativos é um dos pilares para a reestruturação do currículo do Novo Ensino Médio, etapa que finaliza o Ensino Básico e aprofunda as reflexões sobre o mundo do trabalho.

A compreensão do mundo do trabalho, por sua vez, é de grande relevância para a formação do indivíduo e para a construção de uma autonomia legítima. Na perspectiva freiriana, é papel do educador possibilitar uma educação que não reproduza cegamente a ideologia dominante. Ciente dos limites da prática educativa, Freire defende que o educador pode não ser capaz de transformar a realidade do país, mas pode demonstrar as possibilidades de mudança (Freire, 2021). É justamente por isso que não é possível conceber uma compreensão do mundo do trabalho que tenha como foco a capacitação e a adaptação do educando a uma realidade cujas contradições sejam naturalizadas.

Ao sugerir, em um mundo de relações trabalhistas cada vez mais precarizadas, o desenvolvimento de uma autonomia voltada à integração ao mundo do trabalho, é de fundamental importância que educador e educando tenham ciência das condições de inserção que o mundo das práticas profissionais oferece para diferentes realidades socioeconômicas, especialmente aquela da qual o estudante faz parte. A autonomia desenvolvida deve permitir ao indivíduo refletir sobre sua atuação nessa nova lógica e permitir uma formação que desnaturalize as necessidades cada vez mais precarizantes e incertas do mercado de trabalho.

Uma evidência do avanço avassalador da perspectiva neoliberal na educação é a incorporação de expressões eufemizantes como “empreendedorismo para classes menos favorecidas” nos documentos oficiais. O discurso, construído de forma a valorizar a capacidade criativa do indivíduo, acaba por mascarar a formação de sujeitos conformados com a precarização do trabalho por meio da eliminação do vínculo trabalhista formal (e, com ele, do acesso aos direitos do trabalhador). Os efeitos perversos desse processo afetam cada vez mais trabalhadores e cada vez mais jovens que buscam e precisam trabalhar, mas não encontram oportunidades dignas. Acerca do assunto, a BNCC afirma que

há hoje mais espaço para o empreendedorismo individual, em todas as classes sociais, e cresce a importância da educação financeira e da compreensão do sistema monetário contemporâneo nacional e mundial, imprescindíveis para uma inserção crítica e consciente no mundo atual. (Brasil, 2018, p. 568).

O caráter contraditório evidenciado ao confrontarmos algumas passagens e expressões presentes na BNCC com seu contexto de concepção ajuda a compreender que a noção de autonomia predominante no documento revela o alinhamento às necessidades do neoliberalismo e não às do estudante. Afinal de contas, como garantir umainserção crítica e consciente no mundo atual” quando a lógica que impulsiona as reformas educacionais em curso é a mesma que precariza e elimina as possibilidades justas de atuação profissional do jovem em formação? Mais de duas décadas antes da Base, Freire já chamava a atenção para essa contradição ao alertar que

é importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação. Daí a culpa que sentem eles, em determinado momento de suas relações com o seu contexto e com as classes dominantes por se acharem nesta ou naquela situação desvantajosa (Freire, 2021, p. 80).

É de suma importância considerar que, ao adicionarmos ao quadro a reforma do Ensino Médio (ou simplesmente Novo Ensino Médio, como tem sido apresentada), há preocupações que potencializam ainda mais o alerta de Freire. Silva (2020, p. 169) chama a atenção para o fato de que “as duas etapas (formação básica + itinerários formativos) causam preocupação e levam a questionar se o estudante conseguirá, por exemplo, caso mude de ideia, ingressar na universidade sem retornar à Educação Básica e cursar outro itinerário formativo”, e exemplifica o risco de uma formação que, ao reduzir as possibilidades de acesso a diferentes áreas do conhecimento, coloca na figura do estudante adolescente a responsabilidade pela escolha de um percurso que provavelmente definirá os rumos de seu futuro profissional.

Outro aspecto do documento que corrobora essa problemática diz respeito à valorização da perspectiva do empreendedorismo individual para o currículo, na qual assume-se a intenção de uma autonomia estritamente vinculada ao sucesso na conquista monetária. Trata-se de um processo perverso no qual a competitividade e a valorização do individualismo personificam mais uma vez no indivíduo a exclusiva responsabilidade pelo seu fracasso. O educador, ao interiorizar e reproduzir essa perspectiva por meio de sua prática, torna-se um facilitador da naturalização de um projeto de culpabilização do educando. A lógica naturalizadora está a serviço do que Freire caracteriza como “ordem desumanizante”: aquela que leva o indivíduo a atribuir à sua incompetência a razão de ser de sua dor sem considerar o papel do sistema social, econômico e político no qual está inserido (Freire, 2021). Novamente, a autonomia freiriana contradiz radicalmente essa ideia, uma vez que a prática pedagógica que a estimula almeja que o processo de autoculpabilização seja evitado. Ao refletir sobre a prática educativa em uma área miserável, por exemplo, o educador afirma que

só ganha sentido na dimensão humana se, com ela, se realiza uma espécie de psicanálise histórico-político-social de que vá resultando a extrojeção da culpa indevida. A isso corresponde a “expulsão” do opressor de “dentro” do oprimido enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa de ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade (Freire, 2021, p. 81).

Dessa forma, os resultados da análise das ocorrências da expressão autonomia e seus derivados, em conjunto com a análise de seus contextos de ocorrência e de produção da BNCC, revelam que, apesar da polissemia decorrente das perspectivas de diversas áreas de conhecimento, a orientação geral do documento parte de concepções predominantemente utilitaristas, individualistas ou vazias de significado transformador. Ao confrontar as passagens isoladas com uma leitura atenta e contextualizada, percebe-se que é estimulada a formação de um indivíduo flexível para a adequação à lógica neoliberal impulsionada pela globalização. A busca pela formação de indivíduos docilmente submetidos às perversidades das novas condições de um sistema produtivo que, sob a sedutora construção de expressões como “empreendedorismo para todos”, se apropria da noção de autonomia e revela a malvadeza de um sistema produtivo que condiciona e exclui.

Considerações

Ao propor “uma pedagogia fundada na ética, no respeito à dignidade e à própria autonomia do educando” (Freire, 2021, p. 12), o educador trouxe a síntese do trabalho de sua vida. E, de fato, o primeiro contato com as páginas introdutórias da BNCC e com trechos isolados em que o termo autonomia e seus derivados ocorrem traz a impressão de certo nível de diálogo com a perspectiva freiriana.

Após categorizar e analisar as 142 ocorrências do termo autonomia e seus derivados, constatou-se que há distintas concepções ao longo do documento, inclusive na dimensão pedagógica de cada área. A polissemia observada revela que não houve, dentre seus autores, consenso ou intenção de recorrer a um referencial teórico específico. A ausência de unicidade teórica mostrou-se extremamente reveladora, pois a espontaneidade não intencional revelou significados que possibilitaram a identificação de alinhamentos a perspectivas políticas e econômicas implícitas (e, em alguns casos, explícitas) no texto.

Para tanto, as ocorrências foram categorizadas em cinco campos, organizados em dois grupos. Dentre elas, 28 dialogam com o desenvolvimento do pensamento crítico que fundamenta a perspectiva freiriana de autonomia. Por outro lado, 27 relacionam-se sobretudo a contextos sem conexão direta com a aprendizagem; à aquisição ou proficiência em técnicas ou ainda ao mercado de trabalho. As demais ocorrências dizem respeito aos campos Leitura e produção textual e Vida em sociedade. O primeiro, responsável por mais de 50% das ocorrências, apresenta especificidades como a repetição constante do termo em habilidades com o mesmo sentido ou no cabeçalho da grande quantidade de tabelas e quadros. Já o segundo apresenta 18 situações voltadas ao desenvolvimento de habilidades de socialização. Há ainda cinco ocorrências categorizadas no grupo 2 que não possuem relação direta com o processo de ensino-aprendizagem.

É na relação entre as ocorrências do termo autonomia, seu contexto de desenvolvimento no texto e, principalmente, o contexto de elaboração da BNCC que foram evidenciadas importantes discrepâncias entre as perspectivas adotadas e a perspectiva freiriana. Dentre elas, há apenas quatro ocorrências categorizadas como Mercado de trabalho: a menor em todo o documento. O número, embora pequeno, é bastante revelador, já que, diferentemente da perspectiva freiriana de uma autonomia libertadora que fortalece o indivíduo com a capacidade de leitura de mundo necessária para a compreensão e perspectivas de atuação frente aos agentes sociais, políticos e econômicos que influenciam sua realidade, em três das quatro ocorrências é apresentada uma autonomia restrita a decisões que facilitam a adaptabilidade aos desafios do mundo do trabalho. Dessa forma, a BNCC acaba por estimular o conformismo com uma realidade desumanizante.

Sob a égide do pensamento neoliberal e do estímulo à precarização das relações trabalhistas, o desenvolvimento de uma mão de obra flexível para se adaptar às novas demandas coloca o desenvolvimento da autonomia do indivíduoa serviço da manutenção de uma dinâmica perversa, e não da transformação da realidade do indivíduo. Dessa forma, atribui-se exclusivamente ao educando a responsabilidade pelo seu fracasso frente aos desafios do mundo contemporâneo.

O caráter utilitarista da noção de autonomia evidenciado se afasta radicalmente da perspectiva freiriana ao estimular a competitividade e o individualismo. Ao inserir o educando no paradigma das necessidades de adaptação ao novo mundo do trabalho como elemento explicativo e condicionante de sua realidade, as possibilidades de desenvolvimento pleno do exercício crítico da capacidade de aprender se tornam limitadas. Acaba, portanto, por tornar objeto da aprendizagem aquilo que o educador mais criticou em sua obra: uma educação que subdimensiona o trabalho docente e reduz a autonomia do educando ao desenvolvimento de maior adaptabilidade às contradições impostas pela mesma lógica excludente que orienta a produção do documento. Dessa forma, nega-se o desenvolvimento da prática pedagógica verdadeiramente emancipatória e, portanto, de um indivíduo verdadeiramente autônomo.

Referências

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Publicado em 27 de setembro de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

SILVA, Robson Veríssimo. Autonomia na BNCC: uma análise sob a perspectiva de Paulo Freire. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 36, 27 de setembro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/36/autonomia-na-bncc-uma-analise-sob-a-perspectiva-de-paulo-freire

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