Estratégias pedagógicas para a construção da imagem corporal na perspectiva inclusiva e interdisciplinar
Marília Duarte Lopes Talina
Doutora em Ciências (Programa de Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde da Fiocruz), graduada em Pedagogia (UFF), docente do Colégio Pedro II, membro do Núcleo Interdisciplinar de Ciência, Ambiente, Sociedade e Educação
Maria da Conceição Vicente de Almeida
Doutora em Ciências (Programa de Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde da Fiocruz), graduada em Pedagogia (Unipli), e em História (UFF), mestre em História (UFF), docente do Colégio Pedro II, membro do Núcleo de Estudos em Saúde, Educação e Diversidade
Marcelo Diniz Monteiro de Barros
Doutor e pós-doutor em Ciências (Programa de Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde da Fiocruz), graduado em Ciências Biológicas (PUC-Minas), professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde da Fiocruz, da PUC-Minas e da Faculdade de Educação da UEMG
No campo da educação, especialmente nos primeiros anos do Ensino Fundamental, percebe-se a intensificação nas abordagens relacionadas aos estudos acerca do corpo, da convivência social e do respeito às diferenças entre as pessoas. O ambiente escolar, espaço social e cultural rico em diversidade, apresenta-se como um universo que possibilita aos alunos percepções sobre a multiplicidade existente nos campos étnico, cultural, religioso, econômico, social e, ainda, das experiências valiosas na convivência com crianças que apresentam necessidades especiais. Por todo esse contexto, faz-se mister o desenvolvimento de projetos no sentido de acolher, valorizar e respeitar os/as diferentes alunos/as que compõem o corpo discente das instituições escolares (Queiroz, 2015).
Oportunidades diversificadas, somadas a um olhar atento e apoiadas em leis educacionais e em estratégias pedagógicas, vêm-se mostrando facilitadoras da integração de crianças à escola para que se possa pensar e trabalhar de maneira inclusiva.
Este artigo tem como objetivo apresentar e descrever as etapas de um projeto interdisciplinar para a construção da imagem corporal na perspectiva inclusiva, desenvolvido com crianças do 1º ano do Ensino Fundamental (na faixa etária entre 6 e 7 anos), no Colégio Pedro II, campus São Cristóvão I. O projeto busca fomentar nessas crianças o desenvolvimento de um conhecimento sobre seu próprio corpo e, consequentemente, um olhar respeitoso e inclusivo na relação consigo mesmas e com o/a outro/a.
O trabalho consiste na confecção de um/a boneco/a, que passa a conviver com as crianças da turma ao longo do ano letivo e lhes proporciona situações em que se percebem e veem o/a outro/a de forma respeitosa.
As considerações tecidas por professores e estudantes ao longo do desenvolvimento do trabalho têm revelado um resultado muito positivo no que tange à aceitação e à convivência harmoniosa com as diferenças. Meninos e meninas oriundos/as de distintas culturas, etnias e gêneros de diferentes composições familiares, práticas religiosas – ou não pertencentes a religião alguma – entre outras diferenças, estão, cada vez mais presentes no ambiente escolar, graças às políticas públicas e ações sociais de luta pela sua inclusão.
Desenho metodológico
Este artigo é decorrente das observações realizadas em duas pesquisas de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz. Embora com interesses e temas distintos, as duas pesquisas descritivas, de cunho qualitativo, ocorreram no Colégio Pedro II, escola pública federal no Rio de Janeiro. Ambas foram submetidas ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto Oswaldo Cruz (CEP – Fiocruz/IOC), sendo aprovadas e autorizadas, tendo também anuência do Colégio Pedro II. A primeira pesquisa, “A bidocência do ensino de Ciências nos anos iniciais do Ensino Fundamental”, foi aprovada por meio do Parecer nº 3.071.724, de 11 de dezembro de 2018. A segunda pesquisa, intitulada “Ensino de Ciências e Saúde, Prática Curricular e Produção de Livros Infantojuvenis”, foi aprovada pelo Parecer nº 3.152.206, de 29 de dezembro de 2018.
Ao realizarem suas pesquisas de forma independente, as pesquisadoras identificaram que o trabalho desenvolvido nas turmas de 1º ano do Ensino Fundamental visando à construção da imagem corporal na perspectiva inclusiva e interdisciplinar foi ressaltado por alguns professores como sendo uma prática pedagógica muito significativa. Devido à relevância do tema e ao destaque dado pelos docentes ao projeto, surgiu a motivação das pesquisadoras de registrar e socializar tal trabalho em formato de artigo, buscando realizar a interlocução entre a Pós-Graduação e a Educação Básica como segmentos produtores de conhecimento que devem dialogar constantemente por meio do ensino e da pesquisa.
Contextualizando o campo de pesquisa: o Colégio Pedro II (CPII) é uma escola pública federal que, ao longo de sua história secular, tornou-se um colégio modelo por sua excelência de ensino, constituindo-se como rico campo de pesquisas em ensino e educação. Atualmente, conta com quatorze campi,distribuídos pela cidade do Rio de Janeiro e adjacências. Em cinco campi há turmas dos anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano). Tais campi são chamados carinhosamente pela comunidade escolar de “Pedrinhos”; o campus São Cristóvão I, onde as pesquisas foram realizadas é o “Pedrinho” mais antigo e com o maior quantitativo de docentes e discentes.
Ambas as pesquisas eram qualitativas; de acordo com Minayo (2007), a pesquisa qualitativa é aquela cuja subjetividade das falas e ações do sujeito não pode ser traduzida por meio de números, sendo predominantemente descritiva. Os dados coletados nas pesquisas forneceram dados para a construção deste artigo. A observação participante e as entrevistas foram os procedimentos metodológicos utilizados para coletar dados entre os sujeitos que participaram do desenvolvimento do projeto de construção da imagem corporal analisado aqui.
De acordo com Queiroz et al. (2007), a observação participante é uma das técnicas mais utilizadas pelos pesquisadores que adotam a abordagem qualitativa e consiste na inserção do pesquisador no grupo observado, tornando-se parte dele, interagindo por longos períodos com os sujeitos, buscando partilhar o seu cotidiano para sentir o que significa estar naquela situação. A observação participante foi realizada por uma das pesquisadoras, que acompanhou durante um ano letivo completo uma turma de 1º ano do Ensino Fundamental, vivenciando junto a 21 estudantes todo o trabalho de imagem corporal desenvolvido no CPII. Posteriormente, a observação participante foi registrada em relatórios escritos.
Já as entrevistas têm a finalidade de coletar dados relevantes, aprofundando e esclarecendo as questões observadas, possibilitando uma melhor compreensão das opiniões dos entrevistados, segundo Fraser e Gondin (2004). Optou-se pela entrevista semiestruturada porque, apesar de ter um roteiro previamente estabelecido, permite a flexibilidade necessária para que entrevistador e entrevistado sintam-se à vontade para construir um diálogo produtivo e rico em informações e dados para a pesquisa.
Foram realizadas 15 entrevistas com docentes dos anos iniciais do Ensino Fundamental do Colégio Pedro II, todos lotados no campus São Cristóvão I. As entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas. Todos os docentes entrevistados possuíam conhecimento do projeto desenvolvido no campus e pela análise dos relatos dos docentes, foi possível constituir um rico material que forneceu os dados para a construção deste estudo.
Utilizou-se para a análise dos dados a metodologia da tematização (Fontoura, 2011), que categoriza palavras-chave e núcleos temáticos de sentido presentes nos relatos orais e escritos apurados.
Educação Inclusiva
A inclusão é um novo paradigma de ação dentro do espaço escolar. É o esforço de diferentes profissionais, somado aos esforços do restante da comunidade escolar, no sentido de incluir todos os sujeitos nas escolas, uma vez que a diversidade está sendo ampliada por meio de leis e ações coletivas para que as escolas e comunidades possam se tornar tão boas “quanto decidirmos torná-las” (Stainback; Stainback, 2006, p. 31).
Nos dias de hoje, a escola repensa seu papel como ambiente de inclusão fazendo o movimento de trazer para seu interior o maior número possível de crianças, especiais ou não, na intenção de agregar e incluir todos, procurando romper a barreira da não aceitação e promovendo a socialização, o respeito às diferenças e o entendimento sobre essas diferenças.
É sabido que, no passado, muitas famílias buscavam não expor suas crianças, procurando preservar do preconceito, da ignorância alheia e da exclusão aquelas que apresentavam necessidades especiais. Hoje existem leis que garantem o acesso, a permanência e a terminalidade dessas crianças na rede regular de ensino. Além da Constituição Federal (Brasil, 1988) e da Política Nacional de Educação Especial – PNEE (Brasil, 1994), a Lei nº 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) destina um capítulo inteiro para tratar da Educação Especial (Capítulo V). Além das leis, há um crescente movimento de luta pela inclusão social. Hoje, uma escola é considerada inclusiva quando desenvolve um trabalho que envolve a todos, sem compartimentalizações. A escola inclusiva é aquela pensada para todos os estudantes, e não somente para alguns. “Ela precisa enfrentar as diferenças com práticas propositivas em prol de toda a coletividade” (Queiroz, 2018, p. 16). O projeto de desenvolvimento da imagem corporal na perspectiva inclusiva e interdisciplinar analisado neste estudo visa, entre outros objetivos, desenvolver o respeito às diferenças, a aceitação e o acolhimento ao outro, com todas as suas particularidades.
A imagem corporal e a escola
A imagem que as crianças constroem do próprio corpo inicialmente ocorre no plano físico: o tamanho, o peso, a cor, a forma do corpo. A seguir, a construção envolve sentimentos, reflexões, desejos e pensamentos, entre outros aspectos. De acordo com Schilder (1994), a imagem corporal pode ser entendida como a figuração do corpo em nossa mente. Olhar-se no espelho, medir a altura, subir numa balança, desenhar o contorno do corpo no papel ou no chão são atividades que permitem que a criança configure mais facilmente a imagem externa do corpo.
Sabe-se que a criança constrói a imagem corporal desde a mais tenra idade. Segundo Schilder (1994), nessa fase de vida, a imagem corporal estrutura-se por meio dos órgãos sensoriais, pelos movimentos e pela percepção da mente. Até chegar ao 1º ano do Ensino Fundamental, por volta dos seis anos de idade, a criança já acumulou diferentes maneiras de conceber a imagem corporal de si e de outro. A percepção sobre a própria imagem corporal é construída pela criança de maneira gradual, mediante suas observações, sensações, suas experiências e o uso que faz do próprio corpo.
Os estudos realizados por Henry Wallon (1974 apud Galvão, 2000) apontam para questões valiosas acerca da consciência do corpo da criança como meio de comunicação entre ela e o ambiente. A formação da personalidade da criança, segundo Wallon, ultrapassa as categorias mentais, envolvendo também as emoções e o corpo. O pesquisador constatou que a comunicação entre o afeto, o movimento, a inteligência e a formação do eu como pessoa é fundamental na construção da imagem corporal.
A despeito das influências que as crianças sofrem com o padrão físico que lhes é imposto pela sociedade ocidental do século XXI, por meio das mídias, meios de comunicação e redes sociais,o trabalho realizado no CPII vem propiciando a construção de uma imagem corporal que trata como relevante o todo de cada criança, não apenas em seu aspecto físico, mas considerando também o aspecto afetivo e o social e tornando atitudes de respeito às diferenças norteadoras da convivência no coletivo, como descrito por Talina e Almeida (2018).
O embasamento pedagógico para que a consciência corporal seja desenvolvida nos anos iniciais do Ensino Fundamental numa perspectiva inclusiva, favorecendo o respeito às diferenças, a aceitação do próprio corpo e o dos colegas, com todas as suas particularidades, encontra-se tanto nos antigos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (Brasil, 1997) quanto na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017). Os PCN, por exemplo, previam que
o conhecimento sobre o corpo humano para o aluno deve estar associado a um melhor conhecimento do seu próprio corpo, por ser seu e por ser único e com o qual ele tem uma intimidade e uma percepção subjetiva que ninguém mais pode ter. Essa visão favorece o desenvolvimento de atividades de respeito e de apreço pelo corpo e pelas diferenças individuais (Brasil, 1997).
E, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular, são competências específicas de Ciências da Natureza para o Ensino Fundamental:
conhecer, apreciar e cuidar de si, do seu corpo e bem-estar, compreendendo-se na diversidade humana, fazendo-se respeitar e respeitando o outro, recorrendo aos conhecimentos das Ciências da Natureza e às suas tecnologias [...]. Nos anos iniciais, pretende-se que, em continuidade às abordagens da Educação Infantil, as crianças ampliem os seus conhecimentos e apreço pelo seu corpo, identifiquem os cuidados necessários para a manutenção da saúde e integridade do organismo e desenvolvam atitudes de respeito e acolhimento pelas diferenças individuais, tanto no que diz respeito à diversidade étnico-cultural quanto em relação à inclusão de alunos da Educação Especial (Brasil, 2017).
O conhecimento do próprio corpo, dentro das coletividades que são a sala de aula e a escola, permite um trabalho de socialização, de inclusão e de respeito às diferenças. Na escola, a criança estabelece vínculos com colegas, professores e demais pessoas que compõem o universo escolar. É nesse espaço que a convivência e a interação tornar-se-ão mais intensas e em acordo com as regras estabelecidas pelo ambiente estruturado.
A proposta de trabalho
O CPII trabalha a consciência corporal das crianças desde o seu ingresso na escola, no 1º ano do Ensino Fundamental. O trabalho consiste na reflexão sobre nossas semelhanças e diferenças, observando as características que nos tornam iguais em alguns aspectos, porém diferentes em outros, evidenciando a necessidade de aceitação e respeito às diferenças, sejam elas de ordem física, de gênero, étnico-raciais, culturais, linguísticas ou quaisquer outras, valorizando as relações que se estabelecem no ambiente escolar numa perspectiva histórico-social inclusiva.
A fim de desenvolver as competências relacionadas à construção da imagem corporal, algumas estratégias pedagógicas são utilizadas: observação do corpo no espelho, coleta de informações sobre o corpo humano por meio de textos, imagens, músicas, vídeos, desenvolvimento de jogos corporais e representação do corpo por meio de desenhos e outros modelos corporais.
O trabalho de desenvolvimento da imagem corporal tem início em rodas de conversa mediadas pelos professores das turmas, que trabalham em parceria com os professores do Laboratório de Ciências, em regime de bidocência. As aulas são ministradas pelos professores do Laboratório de Ciências em parceria com os professores regentes de cada turma. Durante as aulas que ocorrem semanalmente no laboratório, alunos e professores sentam-se em roda e conversam a respeito das partes do corpo de que as crianças já possuem conhecimento. Ao longo dessas conversas, discute-se sobre as funções de cada parte do corpo, suas características, seus movimentos, seus nomes e “apelidos”, semelhanças e diferenças. Além das rodas de conversa, sempre há uma atividade lúdica apropriada para a faixa etária. São brinquedos cantados e jogos corporais que utilizam músicas e vídeos que abordam as questões referentes à imagem corporal, tais como as trazidas nas Figuras 1, 2 e 3.
Figura 1: Castelo Rá Tim Bum - Ratinho tomando banho
Figura 2: As partes do corpo
Figura 3: Desengonçada - Bia Bedran
As atividades realizadas com base nas músicas e nos vídeos propiciam a expressão corporal utilizando como referência as imagens dos vídeos, os movimentos dos colegas e professores, o próprio movimento da criança diante do espelho, sempre de forma lúdica e divertida.
A partir daí, inicia-se a fase da representação corporal. As primeiras representações costumam ser bidimensionais, por meio de figuras, desenhos, quebra-cabeças, recorte e colagem; depois passam à representação de modelos corporais tridimensionais, pela confecção de bonecos. Os professores propõem a confecção coletiva de um boneco ou de uma boneca, a partir de escolhas coletivas. Várias discussões acontecem na sala de aula a fim de que as crianças cheguem a um acordo sobre as características do/a boneco/a da turma: tipo de cabelo, cor da pele, cor dos olhos, seu gênero e seu nome. As discussões envolvem questões acerca de diferenças étnicas, culturais e sociais, entre outras, com a mediação dos professores; por vezes há necessidade de votação para que as escolhas sejam democráticas, prevalecendo o respeito à decisão da maioria após as reflexões e defesas de argumentos. Todo esse processo de discussões e escolhas coletivas funciona como um ensaio ao exercício da cidadania e leva os professores a pensar possibilidades para uma educação mais inclusiva, enfatizando com seus alunos a necessidade do respeito a si mesmo e ao outro, bem como a convivência harmoniosa com as diferenças e semelhanças uns dos outros.
Após negociar, definir consensos ou escolher por meio de votação as características do/a novo/a integrante da turma, tem início a coleta de materiais para a confecção do/a boneco/a. Estimula-se a utilização de materiais reaproveitados das casas das crianças: meias, linhas, fitas, lãs, botões, sapatinhos e roupas de bebê, enchimento do corpo, pedaços de tecidos e feltro, entre outros.
Ao longo das aulas, as crianças confeccionam cada parte do corpo isoladamente, e a costura unindo as partes é feita pelo/a professor/a. Durante esse processo ocorre ainda uma etapa muito significativa, que é a inclusão de sentimentos no “coração” do/a boneco/a. Nesse momento, as crianças opinam e registram em pedaços de papel o que elas acham importante e “recheiam” o/a boneco/a com os sentimentos escolhidos: amor, alegria, bondade, respeito e outros. A turma também opina sobre talentos, aptidões e habilidades para o/a novo/a colega, percebendo que o corpo físico também é dotado de sentimentos, emoções e intelecto.
Figura 4: Bonecos confeccionados coletivamente por turmas do 1º ano do Colégio Pedro II, ainda sem rosto
Fonte: Foto do acervo pessoal da Professora Marília Lopes Duarte Talina.
A última etapa é dar um rosto ao/à boneco/a, colocando olhos, nariz, boca, bochechas, sobrancelhas, ganhando assim identidade facial própria. Assim que o/a boneco/a fica pronto/a, ele/a nasce para a turma. É o momento em que se desenvolve a ideia de identidade pessoal e pertencimento social. Depois de pesar, medir, vestir e dar nome ao novo membro da turma, ocorre o seu registro numa “certidão de nascimento”. Em geral, as crianças escolhem os professores e funcionários por quem têm aproximação afetiva para serem “os pais” e padrinhos do/a boneco/a, e algumas turmas realizam uma cerimônia, como um batizado, resgatando ritos sociais e culturais que envolvem os nascimentos. Algumas turmas organizam uma festa, convidam professores, funcionários e até os bonecos das outras turmas. Nessa etapa, discutem-se as relações sociais na família e na escola.
A partir daí, cada uma das crianças passa a levar, diariamente, o/a boneco/a para sua casa. Um diário também é providenciado para registrar as visitas às casas e as experiências vivenciadas por cada aluno/a com o/a novo/a companheiro/a. Os registros no diário podem ser realizados por meio de desenhos, fotografias e pequenos textos, contribuindo assim para o desenvolvimento da escrita, uma vez que as crianças estão em pleno processo de alfabetização. Além disso, são valorizados também os registros orais que desenvolvem não apenas a expressão oral, mas também a habilidade de escutar o outro com atenção e respeito. Os relatos, tanto os orais quanto os registros realizados no diário, propiciam também a discussão sobre os diferentes formatos de famílias e residências que o/a boneco/a visita, diferenças sociais, regionais, religiosas e de gênero que surgem das visitas às famílias, possibilitando mais uma vez a discussão de respeito às diferenças.
Há que se assinalar que ocorre por parte de alguns responsáveis certo estranhamento diante da ideia de o filho menino levar um/a boneco/a para casa, embora, na primeira reunião de responsáveis do ano letivo, eles são informados das etapas do projeto sobre imagem corporal e seus objetivos. Uma rica oportunidade surge a partir desse estranhamento. É o momento em que responsáveis, professores e demais setores da escola podem discutir questões como preconceitos, estereótipos de gênero, intolerância, convivência respeitosa entre meninos e meninas e desconstrução do machismo, entre outras questões. Em geral, essa conversa tem um desdobramento positivo e esclarecedor, contribuindo para a manutenção e o aperfeiçoamento do projeto a cada ano.
Um projeto interdisciplinar: os desdobramentos nas diferentes áreas do conhecimento e na esfera familiar
Por meio da observação participante e das entrevistas realizadas com os docentes foi possível constatar que o projeto de construção da imagem corporal desenvolvido no CPII possibilita a integração e o diálogo entre os diferentes componentes curriculares, permitindo a articulação entre Ciências, Estudos Sociais, Língua Portuguesa e Matemática, além de desdobramentos nas aulas de Educação Física, Artes, Música e Literatura. Diferentes áreas do conhecimento podem ser alcançadas por este projeto. As competências previstas para o 1º ano do ensino fundamental são desenvolvidas quando cada criança, dentro de suas possibilidades, consegue, por exemplo:
- Em Ciências: demonstrar conhecimento do próprio corpo e consciência corporal, à medida que desenha o corpo e reconhece as partes que o compõem.
- Em Matemática: realizar cálculos mentais e comparar grandezas e medidas, verificando o peso e altura do/a boneco/a, comparando-os com as suas medidas, comparando idades, operando com o número de alunos da turma que votam neste ou aquele aspecto do/a boneco/a, realizando a contagem de quantos dias faltam para levar o/a boneco/a para casa e outros cálculos mentais.
- Em Língua Portuguesa: desenvolver a oralidade e a escrita, produzindo pequenos textos, registrando no diário os acontecimentos durante a visita do/a boneco/a à sua casa, preenchendo atividades sobre a sua própria certidão de nascimento, sobre sua casa ou sua família, comparando com a do novo integrante da turma, participando da produção de textos coletivos como o convite do batizado, da festa de aniversário, lista de convidados e outros.
- Em Estudos Sociais: construir o domínio operatório do tempo, de ordem, de sucessão, confeccionando a linha do tempo do/a boneco/a e a sua própria linha, valorizando a memória das experiências individuais e coletivas. Comparar os espaços e localidades visitados pelo/a boneco/a, observando e descrevendo os diferentes lugares visitados, relacionando-os ao espaço e à localização da escola.
Por meio da vivência do projeto e dos relatos dos docentes, foi possível observar, entre outras coisas, que o projeto de construção da imagem corporal desenvolvido no CPII favorece a interdisciplinaridade, possibilita a integração entre as diferentes áreas do conhecimento e a integração escola/família. O projeto não se restringe à escola nem à área de Ciências. É um projeto interdisciplinar que foi crescendo e se ampliando com o passar dos anos; atualmente conta com a participação de toda a equipe docente que trabalha com o 1º ano e conta também com a participação das famílias. O Laboratório de Ciências dá o pontapé inicial, trazendo as propostas de atividades e desenvolvendo a parte mais prática de confecção de um modelo corporal (um/a boneco/a), enquanto os demais professores ajudam na dinamização desse trabalho na sala de aula, integrando esse trabalho com as outras áreas; as famílias “abraçam” a ideia, acompanhando todo o projeto e participando ativamente dele.
As pesquisas constataram que este projeto interdisciplinar demanda planejamento coletivo das atividades, etapa por etapa, exigindo um trabalho colaborativo que envolve os estudantes, os docentes e as famílias, que precisam ser preparadas previamente a fim de compreender o objetivo do trabalho e se engajar no projeto, conforme o relato de uma das professoras entrevistadas:
Nem sempre os pais compreendiam o objetivo desse boneco. Já tivemos pais que não gostaram de ver o filho brincando com um/a boneco/a, então, passamos a explicar o projeto na reunião de responsáveis, esclarecendo os objetivos, inclusive desmistificando algumas questões de gênero associadas a este trabalho. Afinal, menino pode ou não pode brincar de boneca? Passamos a nos antecipar aos problemas quando passamos a discutir com os responsáveis os tabus envolvidos nessa situação e hoje em dia temos menos resistência familiar [...]. O retorno que recebemos das crianças e das famílias é quase sempre positivo porque o projeto estimula a ludicidade, a socialização e envolve as famílias. Elas fotografam a visita e registram no diário do boneco a rotina, os hábitos, as dificuldades familiares, o tipo de família, o tipo de habitação, o tipo de refeição, o tipo de transporte usado, a distância da escola para casa, os hábitos religiosos da família e o cotidiano de cada casa. No dia seguinte, os estudantes relatam a visita na roda de conversa e esses registros orais, escritos e de fotografias dão margem a muitas discussões na sala de aula, integrando as várias áreas do conhecimento (Entrevistada P15).
Concluímos, portanto, que o projeto de construção da imagem corporal, além de ter um viés inclusivo e interdisciplinar, possibilita o desenvolvimento de aspectos afetivos, cognitivos e sociais entre os estudantes, aproximando alunos/as, professores e famílias.
Considerações finais
A partir da observação participante e dos registros orais colhidos entre os docentes, foi possível ter uma dimensão da importância que o projeto de construção da imagem corporal na perspectiva inclusiva e interdisciplinar desenvolvido no CPII tem na comunidade escolar. De acordo com os relatos dos docentes envolvidos, os resultados deste projeto têm sido bastante positivos. Ele vem contribuindo para que os alunos desenvolvam habilidades e competências, tendo a afetividade papel fundamental no processo de aprendizagem, influenciando profundamente o crescimento cognitivo. O projeto desenvolve nos alunos o exercício da observação, do reconhecimento do próprio corpo e do corpo do outro, o que pressupõe respeito à diversidade e uma educação mais inclusiva. Quando a criança compara o próprio corpo ao corpo dos colegas, ela vivencia a aceitação de si e do outro e, assim, se reconhece nele (Lévinas, 2005).
Por ter caráter interdisciplinar, o projeto aqui descrito proporciona várias intervenções, encaminhamentos e inferências junto aos estudantes, estabelecendo uma prática dialógica como base na ação pedagógica. Proporciona também a interação social e oportunidades para o/a professor/a trabalhar questões comportamentais, relacionais e afetivas, tanto individuais quanto coletivas. O projeto propicia também o exercício da boa convivência e da cidadania, da aceitação às diferentes opiniões e um breve contato com a experiência democrática, uma vez que fica a cargo das crianças as escolhas, sempre acatando o que a maioria da turma decidiu. Constitui-se também como oportunidade para discutir as diferenças culturais na criação de meninos e de meninas, refletindo sobre preconceitos e estereótipos de gênero e a forma como a sociedade contribui direta e/ou indiretamente para que tais comportamentos sejam transmitidos de geração a geração.
O aspecto lúdico deste projeto também é fundamental e exerce influência no crescimento cognitivo. A utilização de brinquedos e brincadeiras no meio pedagógico é imprescindível. Quando as crianças brincam com o/a boneco/a, elas criam situações imaginárias, produzem diálogos, movimentos, imaginam e inventam histórias e brincadeiras. O brincar proporciona situações imaginárias em que ocorre o desenvolvimento cognitivo e facilita também a interação com outras pessoas, as quais contribuirão para um acréscimo de conhecimento (Vygotsky, 1998).
A construção de um modelo corporal (boneco/a) é apenas uma das estratégias pedagógicas possíveis para desenvolver a imagem corporal. O uso de músicas, vídeos, jogos corporais, brincadeiras e a construção de outros modelos corporais como desenhos, fantoches e outras estratégias pedagógicas aqui descritas podem contribuir para um ensino mais significativo e para uma educação mais inclusiva, desenvolvendo nas crianças o respeito a si mesmo e aos outros, na busca de uma sociedade em que as pessoas possam conviver com semelhanças e diferenças, sem desenvolver quaisquer formas de preconceito e segregação.
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Publicado em 27 de setembro de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
TALINA, Marília Duarte Lopes; ALMEIDA, Maria da Conceição Vicente de; BARROS, Marcelo Diniz Monteiro de. Estratégias pedagógicas para a construção da imagem corporal na perspectiva inclusiva e interdisciplinar. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 36, 27 de setembro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/36/estrategias-pedagogicas-para-a-construcao-da-imagem-corporal-na-perspectiva-inclusiva-e-interdisciplinar
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