Resenha de um documentário: "Fora de série"

Laís Lemos Silva Novo Pinheiro

Doutoranda em Educação (UERJ/FFP)

O documentário Fora de série, dirigido pelo professor Paulo Carrano, é resultado de uma pesquisa realizada com estudantes do Ensino Médio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) de diferentes escolas públicas do Rio de Janeiro. Lançado em março de 2018, foi produzido pelo grupo de pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro, vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). O objetivo do longa-metragem é demonstrar a importância de escutar o que esses alunos têm a dizer e contribuir para o vislumbre de melhorias do fluxo de escolarização de jovens, em especial das classes populares, e, por conseguinte, melhorias de vida a partir também das aprendizagens oriundas da reflexão de suas histórias, realidades e possibilidades.

Nesse sentido, o documentário se desenrola através das narrativas de basicamente treze jovens inspiradas por meio de entrevistas, análises de imagens fotográficas, filmagens de seus cotidianos, conversas em grupo e dispositivos reflexivos, a fim de revelar trajetórias de escolarização e histórias de vida de alunos da EJA, com destaque para os enfrentamentos e as dificuldades para continuar/retornar aos estudos. As narrativas fazem parte de um contexto não só de dificuldades, mas de superações e conquistas, revelando tanto denúncias ao sistema escolar quanto a realidade das condições de vida desses alunos, que são, em sua maioria, jovens de periferia.

Dentre as principais denúncias relatadas, está a falta de estratégias pedagógicas voltadas para as reais necessidades dos alunos, ainda mais que muitos precisam conciliar trabalho e estudos, além do fato de alguns percorrerem grandes distâncias para chegar à escola sem assistência de transporte escolar adequado. Alguns entrevistados ainda reclamaram da relação com professores desmotivados e cansados por lecionarem o dia inteiro, estando exaustos no turno da noite, e a ausência de atividades como as realizadas durante a gravação do longa-metragem do qual estavam participando, como rodas de conversa e reflexão e conhecimento de suas próprias histórias de vida e dos colegas. Todavia, também emergiram testemunhos de gratidão pela escola/equipe diretiva e pelos professores que deram suporte e condições para que conseguissem resistir e superar os desafios impostos pela retomada da escolarização.

Pode-se dizer que, no primeiro momento do documentário, são apresentadas conversas individuais com alguns alunos que, de posse de objetos, fotos ou recordações, narram suas histórias de abandono e retorno aos estudos, que, apesar de apresentarem motivos e causas diversas, têm em comum o sonho de conclusão dos estudos e de melhoria de vida. Nesse momento, o filme apresenta as principais causas de abandono dos estudos na EJA, como gravidez precoce, racismo, imposição de abandonar os estudos para priorizar o trabalho e ajudar no sustento da família, violência doméstica, uso de drogas, falta de dinheiro para transporte e vergonha por voltar a estudar em idade adulta, dentre outras.

No segundo momento do longa-metragem, o professor e diretor Paulo Carrano explica para um grupo de jovens o que é a pesquisa e os estimula a falar sobre suas vidas e formações. A dinâmica proposta pelos pesquisadores envolvidos era explorar o uso de diversas fotografias que serviriam para estimular a reflexão dos entrevistados ante suas vidas para que realizassem correlações e projeções. Em seguida, os jovens são desafiados a registrar por fotos e/ou vídeos seus próprios cotidianos, exercício este cujo resultado figura como parte final e emocionante do documentário.

Assim sendo, durante as entrevistas em que especificamente três jovens contam suas histórias de vida e superação por intermédio de fotos e vídeos produzidos por eles, despontam, sobretudo, temáticas de conquistas e orgulho, como emprego, filhos, bens materiais, família e a importância dos estudos como pano de fundo e fator primordial da nova etapa de vida dos entrevistados. Em meio a algumas lágrimas e alguns sorrisos, os estudantes da EJA retratam a relevância do sentimento de pertencimento social, de autoestima e de uma escola democrática e preocupada com a realidade dos alunos dessa modalidade de ensino.

Percebe-se, então, que, por entre cenas do dia a dia e envolto pela realidade dos jovens entrevistados, o documentário se desenvolve e apresenta como diferencial a proposta de ouvir a voz desses jovens e revelar suas trajetórias de vida e formação. Um propósito assumido com respeito e competência por parte dos envolvidos no projeto, que promove o protagonismo desses jovens, além de importantes reflexões, como de que não basta a existência de vagas em turmas da EJA de diferentes escolas do Rio de Janeiro: muitos alunos enfrentam lutas pessoais que dificultam o acesso à escolarização.

A escolha dos cenários da vida real e os flashes do cotidiano, somados a uma trilha sonora envolvente, captam a atenção dos telespectadores. Outro ponto a ser enaltecido é o cuidado ao lidar com os depoimentos obtidos pelos entrevistadores e pela equipe do documentário. Embora muitos relatassem histórias difíceis, não se percebeu nenhuma exploração da temática, sentimentalismo ou sensacionalismo.

Ainda que o documentário apresente um grupo específico de jovens selecionados que sabem se expressar bem e que alcançaram o objetivo desejado, não representando, infelizmente, a totalidade da realidade – o que se reconhece ser impossível –, é justificado a partir do objetivo da proposta e a partir do próprio título do longa-metragem, Fora de série, que sugere um duplo sentido, fazendo referência tanto à situação dos alunos com distorção idade-série, realidade da EJA, quanto ao fato de eles serem fora do comum, fora do padrão, não produzidos em série, singulares.

Dessa forma, Fora de série é um documentário de suma importância, que parte da universidade, assumindo o papel de pesquisa e de ampliação de debates junto à sociedade e que trata da relevância da modalidade EJA na transformação da vida de muitos adolescentes, jovens e adultos, mas que ainda carece de ações, iniciativas e avanços.

Referência

FORA de Série. Direção de Paulo Carrano. Rio de Janeiro: Observatório Jovem do Rio de Janeiro/LIDE-UFF, 2018. Documentário (90 min.)

Publicado em 04 de outubro de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

PINHEIRO, Laís Lemos Silva Novo. Resenha de um documentário: "Fora de série". Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 37, 4 de outubro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/37/resenha-de-um-documentario-fora-de-serie

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