Uma análise sobre o percurso no estágio curricular do curso de Pedagogia

Eduardo Soares da Costa

Graduado em Pedagogia (Iserj/Faetec)

Marcos Vinicius Reis Fernandes

Mestre em Educação (FFP/UERJ), especialista em EJA (IFRJ) e em Ciências Sociais (Colégio Pedro II), graduado em Pedagogia (Iserj/Faetec)

Este artigo busca refletir sobre a formação de professores a partir de inquietações suscitadas pelos autores, ante as experiências vivenciadas por eles quando da sua formação na licenciatura em Pedagogia. O estudo parte da premissa de que a dialética entre teoria e prática – através de experiências diversas em estágios curriculares no chão da escola e junto aos debates teórico-reflexivos realizados nas disciplinas universitárias – contribuem para a formação do professor, uma vez que o leva a problematizar a sua prática. Do mesmo modo, os autores acreditam que o exercício de escrita, de sistematização da experiência que resultou neste texto, isto é, a escrita coletiva contribui para a formação, pois resulta em um exercício de conhecer a experiência do outro e de colocá-la em diálogo, resultando na partilha de saberes.

Pensando nisso, os espaços transitados (as aulas, o estágio, a prática de ensino) passam a ser considerados campos de aprendizado e enriquecimento das concepções de mundo que, dentro da trajetória acadêmica do curso, são repletas de significados, os quais são fundamentais para o desenvolvimento dos professores em formação. Essa compreensão encontra sentido na formulação de Paulo Freire, em que ele afirma que “ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, sem aprender a refazer, a retocar o sonho por causa do qual a gente se pôs a caminhar” (Freire, 1996, p. 79).

Por meio da práxis reflexiva procurou-se investigar a formação do professor como agente reprodutor das expectativas das classes dominantes, tal como do mercado capitalista hegemônico. Partindo desse pressuposto, objetiva-se, por meio deste estudo, problematizar o esquema de subordinação e reprodução da cultura e da ideologia vigentes, impostas na educação desde o processo formativo inicial do professor, esquema que resulta em situações de violência no contexto das escolas e que interfere diretamente na elaboração do currículo, daí o currículo ser compreendido como campo de disputas.

Nesse sentido, a discussão travada ao longo do texto confronta a realidade com a qual o professor se depara no cotidiano da escola. Afinal, que prática pedagógica empregar? Qual estratégia adotar, frente às situações de violência? Como desenvolver práticas inovadoras diante de um currículo enrijecido, fechado, verticalizado? Essas são questões que parecem necessárias, ante o conflito entre os interesses estruturantes do Estado capitalista, que busca dispor de grande representação na instituição escolar, e a diversidade do público que atende em sala de aula, em que parte considerável é fruto da desigualdade social estrutural; esse conflito acaba sendo traduzido na elaboração das políticas educacionais e, por sua vez, no currículo.

Para nortear este texto, tomamos como aporte teórico-metodológico pressupostos da pesquisa bibliográfica e documental. Desse modo, valemo-nos dos estudos de Bourdieu e Passeron (1982) ao tratar da “violência simbólica”, que é categoria central deste estudo, e de Silva (1999) para discutir a questão do currículo, além de autores que fazem a crítica a uma educação bancária e reprodutora do sistema hegemônico vigente, opressora e que dissemina os seus valores via currículo. Este estudo foi dividido em três seções, acrescidas destas notas introdutórias e das considerações: na primeira seção, discute-se o hábitus e o campo da escola; na segunda, a escola promotora da violência e, na última, os novos desafios do currículo.

O habitus e o campo da escola

A violência, que não tem forma concreta, é levada para escola no bojo de uma formação profissional acrítica e acaba sendo introjetada e legitimada pelo senso comum, reforçando o status quo. Ela pode ser evidenciada na prática dos profissionais da Educação à medida que segue uma condição excludente e não democrática, a partir de um currículo escolar que invisibiliza os sujeitos no seu processo de aquisição cognitiva e de construção da identidade, durante todo o percurso da Educação Básica. Atentando para isso, procuramos discutir essa questão à luz dos conceitos de habitus e campo elaborados por Bourdieu e Passeron, assim como por seus colaboradores.

Para esses autores, campo é o espaço em que se dão as relações entre os sujeitos de diversos grupos e estruturas sociais, em que se busca a melhor acomodação social em que os atores procuram se estabelecer. Para os grupos dominantes, isso significa sobrepor-se e perpetuar-se segundo seus interesses e as posições ocupadas por eles dentro das estruturas sociais. Nesse sentido, a escola, como campo, passa a serrepresentada pelo saber institucionalizado, ou seja, por quem detém o pretenso conjunto do conhecimento historicamente acumulado e, consequentemente, é responsável por compartilhá-lo de acordo com compreensão do público que atende. Assim, no chão da escola se estabelecem relações e conflitos que o tornam um campo de forças divergentes ou coniventes entre si.

Ressalte-se que os diferentes grupos que formam a comunidade escolar (ora convergindo, ora divergindo), em função desse ambiente de conflitos e disputas, tendem muitas vezes a não seguir as diretrizes da escola. Assim, responsabilidades que seriam imputadas pelo Estado a serviço da comunidade escolar acabam não a atendendo, posto que estão a serviço do sistema vigente. Contudo, ao se colocar a serviço do sistema, a função do professor acaba sendo afetada, visto que atravessa as práticas docentes, sobretudo em função do currículo e dos materiais didáticos produzidos a partir dele.

Diante disso, os profissionais da Educação, cuja formação é, em geral, distante do cotidiano escolar, passa a ser comprometida pela estrutura verticalizada, impositiva, que resulta em obediência consensual, por meio da qual sua função na escola é muito mais voltada para manutenção do status quo do que para uma educação humanizada, comprometida com a formação crítica dos sujeitos. Por outro lado, para as famílias da classe trabalhadora a escola funciona como um lugar para garantir a pretensa promessa de inserção no mundo do trabalho. Reforçando esta crença, várias mensagens são veiculadas nos canais de comunicação, o que nos leva a reiterar a influência mercadológica no campo da educação, com ênfase na formação de mão de obra, um discurso que é voltado exclusivamente para estudantes das classes populares.

A educação, nesse contexto, significa o domínio funcional da leitura e da escrita por parte dos estudantes, além do domínio de conhecimentos elementares para prosseguimento da vida cotidiana, muitas vezes fundamentados na promessa de inserção no mercado de trabalho. Sendo assim, o diferencial de cada grupo seria o que cada um traria em suas respectivas bagagens culturais.

Desse modo, a escola como habitus, de acordo com Bourdieu e Passeron, ao negar essa bagagem, o capital cultural do aluno, e inculcar-lhe outra percepção, aproximaria sua prática a uma violência simbólica, uma vez que está se propondo a formar um pensamento socialmente arbitrado, sobretudo para o coletivo despossuído. Destaque-se que esse movimento – ou melhor, tais práticas – resulta de uma maneira vertical e descendente de organização da escola, na qual o estudante recebe da escola uma visão de mundo preestabelecida, dada, e não construída coletivamente.

Partindo dessa premissa, é importante frisar que no modelo de educação vigente a escola atende às diretrizes do Estado e, em função disso, muitas vezes sequer participa dos processos decisórios, da elaboração das políticas, ou seja, já recebe tudo pronto e formatado. Mas será que o formato atende às peculiaridades daquela escola, daqueles estudantes e professores, daquela comunidade? Com isso, surge uma outra questão: a educação está a serviço de quem? Numa breve análise, é possível inferir que ela está muito mais a serviço dos desejos do mercado e das classes dominantes, no sentido de imprimir nos sujeitos envolvidos uma ideia de preparação para o mercado de trabalho, do que nos anseios de humanização, autonomia e participação coletiva voltados para as classes populares.

Tal dinâmica encontra-se permeada pelos símbolos culturais com os quais os sujeitos se relacionam, resultando em um processo que pressupõe a interiorização de paradigmas exteriores e a posterior exteriorização dos mesmos conceitos sem que os reprodutores se apropriem efetivamente do que está reproduzindo. Para Bourdieu e Passeron, a ideia de habitus relaciona-se às ações estruturantes, explícitas e implícitas nas relações sociais, conforme a intencionalidade dos atores dentro do campo. Ela funciona como um esquema gerador de estratégias segundo o capital social dos sujeitos.

Assim sendo, a capacidade de cada sujeito constituir e praticar suas representações está diretamente ligada ao capital cultural acumulado, isto é, seu saber contextual, como suas percepções sobre o trabalho, seu potencial relacionado aos meios de produção; a sociedade, sua habilidade de relações na malha social; o simbólico, seu referencial de valor moral e da ética; o cultural, sua formação institucional, sua herança por transmissão oral e suas interações com os bens e espaços culturais, dentre outros fatores. Nas lacunas e desníveis dessa percepção, a violência simbólica se faz se viva à medida que reproduz valores e crenças que levam estudantes das classes populares a uma condição de assujeitamento, de sentir-se incapaz, resultando em processos de subalternização e, por conseguinte, de manutenção das desigualdades sociais.

Contudo, sabemos que a educação não se constitui de determinismos. Ela é processual e não está dada, daí ser considerada como um campo de contradição e disputa de afirmação social e de saberes. Logo, o projeto pedagógico é reflexo da política pública educacional de uma nação; por esse motivo, reflete o modelo de sociedade e de Estado idealizado pelo grupo dirigente.

Diante disso, torna-se necessária a reorganização da escola, o que implica movimento de resistência no cerne da educação, tendo como foco o processo de ensino-aprendizagem no chão da escola, de modo que ele possa envolver questões do cotidiano dos estudantes.

Face a esses desafios, cabe ressaltar o papel das faculdades de Educação no processo de formação de professores, não se restringindo apenas a uma formação que se volte ao conhecimento técnico, mas que também possibilite aos futuros professores a reflexão e a desnaturalização das diferentes realidades sociais existentes em seus estados e municípios, bem como do currículo implementado por cada rede de ensino, desde o âmbito federal até o municipal, pois, como disse Paulo Freire, não basta saber que “Eva viu a uva”, mas “compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho” (Freire, 2006, p. 56). Assim, entender o contexto social dos professores em formação, trazer suas experiências para a sala de aula, levá-los a explorar e conhecer a realidade dos seus municípios pode contribuir para o desenvolvimento de uma outra concepção de educação, pensada e construída com os professores.

A escola como promotora da violência

Bourdieu, em conjunto com Passeron (1982), define a violência simbólica como a ação de grupos dominantes na imposição de seus parâmetros culturais às classes dominadas. Ou seja, ela diz respeito ao uso de todo e qualquer instrumento estruturante e estruturado para disseminar a cultura da legitimação, da sobreposição dos interesses das classes dominantes às camadas sociais despossuídas e sem representatividade social significativa. Assim, a violência se dá não apenas onde o poder econômico é a referência, mas em todos os grupos, meios e práticas sociais. Esses autores conferem à escola a expertise da reprodução de supremacia cultural e ideológica por meio do currículo. Para eles, o currículo

produz o desconhecimento das limitações implicadas nesse sistema, de sorte que a eficácia da programação ética e lógica por ele produzida se encontra redobrada pelo desconhecimento das limitações inerentes a essa programação. A ação pedagógica tende a produzir o reconhecimento da legitimidade da cultura dominante, tende a lhes impor do mesmo modo, pela inculcação ou exclusão, o reconhecimento da ilegitimidade de seu arbitrário cultural (Bourdieu; Passeron, 1982, p. 52-53).

Para exemplificar a ação verticalizada do Estado mediante uma política que ignora as especificidades das instituições escolares, observa-se a aplicação de instrumentos de avaliação em larga escala, a citar, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) para os estudantes matriculados no 5º e no 9º anos do Ensino Fundamental, e a Provinha Brasil, aplicada às crianças do 2º ano dessa etapa da Educação Básica. São, portanto, avaliações anacrônicas e desconectadas da realidade das escolas e do seu entorno, desconsiderando a prática docente, a vida dos alunos e os currículos locais praticados.

Diante disso, o conceito de qualidade estipulado por pretensas políticas públicas educacionais – que consideram especificamente o desempenho dos alunos em exames padronizados – colabora para potencializar a violência simbólica. Tais exames monitoram, induzem e impõem mudanças na prática docente para atingir metas específicas, em que a aquisição e a construção de conhecimento significativo são relegadas, aproximando as práticas educacionais da escola aos processos das linhas de produção fabris, subvertendo a aquisição das habilidades e competências em prol de uma eficiência funcional.

A escola, como instituição de suporte para o desenvolvimento e desempenho das funções que constituirão o sujeito durante seu processo de escolarização, tem importância fundamental na transformação social. Entretanto, esse processo, sobretudo na escola pública, acontece em um contexto sociocultural complexo, um microcosmo comportado entre os muros da escola, para onde os diversos sujeitos constituintes trazem consigo uma gama de práticas culturais e vivências sociais que podem resultar em novas conexões afetivas e/ou gerar conflito, em que é mais fácil de identificá-lo e buscar alternativas para resolvê-lo na sua manifestação explícita.

Contudo, as práticas da violência simbólica podem ser imperceptíveis, aproximando esse tipo de agressão à violência institucional e à violência estrutural. Entende-se que esses tipos de violência representam igualmente uma tentativa de anulação da identidade daquele que a sofre, prejudicando as inter-relações sociais harmônicas produtivas e o princípio da equidade. Romper com essas práticas suscita uma gestão democrática e participativa baseada na dialogicidade, ainda que se tenham interesses divergentes; tanto a prática da fala quanto a da escuta careceriam de igual incentivo.

O exercício da prática dialógica, para além do entendimento e fortalecimento das relações sociais dentro do jogo democrático, apresenta-se também como ação fundante do reconhecimento das identidades dos sujeitos da ação. E, enquanto ação, compreende-se que o diálogo multidimensional, atento às peculiaridades e possibilidades das linguagens, contribui para o entendimento entre as partes, ou seja, para estreitar a relação educador-educandos. Assim, por meio do diálogo e do exercício de problematizar, de confrontar ideias, o processo de ensino-aprendizagem é enriquecido pelos saberes dos estudantes que, por sua vez, enriquecem o currículo escolar, mantendo-o vivo, acessível e longe de possíveis características puramente obrigatórias e técnicas, como um mero documento formal da escola a ser seguido pelos professores.

Para Silva (1999, p. 150), “currículo é lugar, espaço, território, relação de poder. É trajetória, viagem, percurso. É autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja a identidade. É texto, discurso, documento. É documento de identidade”. Partindo dessa premissa, o currículo é compreendido como construção identitária e dos sentidos, bem como o domínio sobre as subjetivações, produto do diálogo reflexivo com o outro, fundamental movimento envolvendo a intertextualidade entre interlocutores, mediadores, tema, meio, contexto e linguagem.

Sendo assim, é função da escola promover o discurso rizomático para que todos os seus atores possam ocupar espaços de fala e escuta. Portanto, cabe a ela, em seu projeto político-pedagógico (PPP) e nas práticas desenvolvidas pelos professores, estimular a criação de tais espaços, constituídos por experiências expressas de forma discursiva. Sobre o discurso, afirma-se que

é como o “cenário” de certo acontecimento. A compreensão viva do sentido global da palavra deve reproduzir esse acontecimento que é a relação recíproca dos locutores, ela deve “encená-la”, se pode dizer; aquele que decifra o sentido assume o papel de ouvinte e, para sustentá-lo, deve igualmente compreender a posição dos outros participantes (Bakhtin, 1926, p. 199 apud Pires, 2002, p. 6).

Ao incorporar essa práxis em que todos os agentes tenham protagonismo no engajamento curricular, acredita-se que a escola seria mais eficaz na prevenção de casos, de todo e qualquer tipo, de violência, pois, uma vez que a escola garante a participação global, ela coopera para igual comprometimento às regras e medidas que favoreçam as relações sociais, a democracia e o pluralismo entre os atores da escola. Sendo assim, o modelo de escola e de educação que aqui defendemos é o modelo em que todos possam participar, experimentar os papéis que ocupam no ambiente mediante a intersubjetividade e a ação recíproca entre os participantes e seus contextos diversos.

Destarte, entendendo que o ser humano é constituído por meio da troca, algo que é inerente ao processo de comunicação, destaca-se que o livre exercício da fala é condicionante para apreensões e ressignificações. Ao negar essa possibilidade, a prática de violência simbólica na escola, sobretudo na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental – que são um momento de encontro e início de construção da identidade dos sujeitos –, se dá a partir da docilização dos corpos, do silenciamento, o que revela as muitas faces da escola, que resultam, por vezes, em exclusão, em “humilhação social”, por não considerar ou desconhecer a situação social do estudante. Nesse sentido, a escola acaba sendo conivente por não buscar conhecer, refletir e impedir espaços de sujeição e opressão. Como observamos em Gonçalves Filho:

A humilhação social conhece, em seu mecanismo, determinações econômicas e inconscientes. Deveremos propô-la como uma modalidade de angústia disparada pelo enigma da desigualdade de classes. Como tal, trata-se de um fenômeno ao mesmo tempo psicológico e político. O humilhado atravessa uma situação de impedimento para sua humanidade, uma situação reconhecível nele mesmo – em seu corpo e gestos, em sua imaginação e em sua voz – e também reconhecível em seu mundo – em seu trabalho e em seu bairro (1998, p. 15).

A forma como determinados atos violentos são vistos pela escola e pela sociedade, apenas tratando perpetradores e vítimas deles, não contempla a sua realidade concreta, uma vez que outros sujeitos estariam direta ou indiretamente tão envolvidos quanto os que respondem à questão, ou seja, ao ato de violência. A violência se dá em determinado contexto e em determinado espaço, o que implica dizer que há fatores que contribuem para que ela venha a acontecer. Por isso, as possíveis testemunhas dos acontecimentos – por receio, insegurança, desconhecimento ou falta da percepção do fato ou por não saber como agir em alguns casos – preferem a omissão diante de atos de violência. Assim, uma vez que presenciaram o ato, são de extrema importância na compreensão do contexto em que ele se deu. Contudo, há que considerar as percepções e subjetividades deles e as relações de poder, entre outros fatores.

Partimos dessa discussão mais ampla sobre o tema para destacar que o olhar dos estudantes em relação à escola – que, muitas vezes, é vista como lugar de impedimento coercitivo e não como um espaço de diálogo – pode contribuir para que eles adotem comportamentos violentos. Grosso modo, vale lembrar que a primeira ação de ruptura pode ser notada nas primeiras semanas de aula, quando a entrada da criança na escola marca sua separação da família, especialmente da mãe. Assim, os longos choros, a tristeza e o isolamento dos pequenos na sala de aula marcam a escola como espaço de sociabilidade, por um lado, mas de isolamento, por outro, o que pode resultar em processos de violência simbólica.

Outras formas de violência podem ser percebidas na escola, mas nos chama a atenção a forma como essa questão ainda é tratada, pautada numa visão punitiva, que pune os agressores e acolhe as vítimas, ao invés de buscar trabalhá-la numa perspectiva formativa, levando os envolvidos (ambos) a refletir sobre o acontecido, indo para além da mesa de debates. Isso significa dizer que outras ações podem ser desenvolvidas em relação a essa temática, explorando as causas e as motivações dos casos de violência, transformando o caráter de denúncia, que privilegia a repressão e a punição, ou o silenciamento, em um espaço de debate sobre as questões que resultam em violência na escola, envolvendo a comunidade escolar na construção de um debate participativo.

É importante destacar que, ao chegar à escola, o aluno encontra um ambiente pronto, com leis e regulamentos alheios à sua realidade e a seus saberes, mas ele deve se enquadrar, caso contrário será punido. E o responsável por sua adaptação é o professor, que, dentro de toda arquitetura normativa da escola, responde pela implementação das suas regras e normas. Fugir do padrão logo se transforma em punição, graças à concepção homogeneizadora de educação que também atravessa o currículo. Marcada por grades, muros e horários, a escola ainda normatiza o trabalho do profissional da Educação, envolvendo-o nesse conjunto de arbitramentos físicos instituídos pelo sistema político que rege a escola. Isso significa dizer que o mesmo sistema que elege padrões de controle tende a negligenciar temas como: universalização de acesso, igualdade de oferta e oportunidades e garantias de direitos à educação para todos, o que, na nossa leitura, é uma forma de violência a estudantes das classes populares.

Desse modo, a formação do profissional da Educação, aliada à concepção política institucional e ao contexto formativo dos estudantes, contemplando toda a sua historicidade, poderia promover formação filosófica específica, sobretudo quando associada à sua prática pedagógica (ao findar o curso) ou a processos educacionais que preconizem a integralidade formativa do professor, quando a promoção da educação revela-se como possibilidade de apreensão não apenas de valores simbólicos, mas também como processo civilizatório.

Segundo Bourdieu (1988), a civilidade seria a finalidade da Educação no sentido de inculcar o habitus, isto é, um conjunto de valores que representariam o equilíbrio eficiente da sociedade. Nesse sentido, as classes dominantes teriam o controle sobre o sistema de valores simbólicos que, por sua vez, determinariam e sustentam a cultura dominante. Assim, a cultura passa a ser compreendida como algo distante e artificial, pois não representa a realidade da sociedade como um todo. Com isso, sem o pleno domínio do sistema de símbolos, as classes menos favorecidas apenas reproduzem valores, crenças e regras impostas, resultando numa certa institucionalidade da violência simbólica na educação.

Sobre esse assunto, em 2008 o Ministério da Educação, em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) lançou o documento Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. Dentre outros pontos, apresenta a seguinte justificativa:

Esta obra tem sua origem no curso Formação de Educadores: Subsídios para Atuar no Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes, que buscou agregar à formação de professores e demais profissionais de Educação subsídios que viabilizassem sua atuação como agentes fundamentais na missão de garantir os direitos de crianças e adolescentes por meio do enfrentamento de desafios e da implementação de ações práticas (Brasil, 2008, p. 99).

Como se vê, na literatura oficial há diretrizes que orientam práticas no sentido de minimizar ações de natureza violenta dentro da escola. Percebe-se, portanto, um cuidado para que a violência de fora não atravesse os muros da escola. No entanto, encerra-se tal preocupação do lado de dentro. Entretanto, considerando que a escola está situada em determinado contexto socio-histórico, é possível estabelecer esses limites? E as realidades e experiências do estudantes? Enfim, as práticas de violência discutidas no documento não levam em consideração a violência simbólica. Portanto, não se observa, muito vezes, o posicionamento oficial acerca de uma concepção mais ampla acerca da violência, seja na própria escola, seja no currículo. Com isso, a escola acaba reproduzindo, de modo velado, algumas formas de violência.

No entanto, é importante frisar que os diálogos envolvendo violências e escola intensificaram-se na década de 1990. Sastre (2009) afirma que o tema é tratado dentro de parâmetros disciplinares e não contempla a sua complexidade. Em estudo em que fez uma análise crítica de um conjunto de obras produzidas no Brasil entre os anos 1980 e 2009, envolvendo escola e violências, o autor destaca ocorrências diretas à questão da violência simbólica. Assim, diante de sua pesquisa, pode-se fazer inferências acerca desse tipo de violência. Segundo Sastre,

o que falta é construir as pontes entre esses pesquisadores, centros de pesquisa e instituições de maneira a enriquecer o diálogo e superar algumas deficiências da nossa produção intelectual. [...] Tende-se então a recair num reducionismo disciplinar que ora sociologiza, ora psicologiza o fenômeno, resultando assim em textos nos quais ou se faz abstração das características sociais, históricas e culturais ou se faz abstração dos elementos que dizem respeito às subjetividades e estruturas internas dos indivíduos envolvidos em tais experiências (Sastre, 2009, p. 4-5).

Partindo dessa premissa, seria como tratar a enfermidade sem investigar as suas origens, com procedimentos paliativos e protocolares. Essas abordagens compartimentadas podem derivar em compreensões reducionistas, sobretudo quando se trata de profissionais da Educação em formação. Por outro lado, suas palavras nos levam a refletir sobre os cursos de formação de professores discutirem pouco ou nada a respeito dessa temática. Dito isso, deve-se considerar a importância dessas discussões, visto que elas atravessam as realidades sociais e, por sua vez, a escola. Além disso, é preciso ter clareza de que há diferentes olhares e perspectivas sobre as políticas educacionais e que a ausência dessas discussões é reflexo do contexto político e ideológico e da sua incidência sobre a educação, que, consequentemente, impacta no modelo de escola, de currículo e na formação de professores.

Novos desafios do currículo

A Resolução CNE/CP nº 1, de 15 de maio de 2006, estabeleceu diretrizes curriculares formativas no sentido de possibilitar ao profissional de Educação, em especial da Pedagogia, a atuação em diversos campos em que se proponha o trabalho educacional. No entanto, esse pluralismo de funções firmado na resolução é criticado por Libâneo (2006), que considera que tal ordenamento acarretaria na descaracterização das funções do professor, pois o afastaria das reflexões sobre suas práticas, bem como daquele que é pedagogo alocado em cargo de gestão, porque causaria prejuízos à sua atividade-meio e aos objetivos da função.

Ressalte-se também que o advento das novas tecnologias e a instituição do que se convencionou chamar de sociedade da informação têm exigido uma nova postura do professor frente a essa realidade. Com isso, novos desafios vêm surgindo, tendo em vista as constantes interferências dos meios de comunicação de massa, dos avanços da tecnologia e das ferramentas midiáticas, propagando informação em quantidade e velocidade em níveis antes inimagináveis, o que acaba refletindo na escola. Daí a necessidade cada vez mais urgente de os currículos de formação de professores discutirem essas questões, de modo que os professores possam se preparar para lidar com esses desafios no decorrer da sua prática docente. É importante dizer que as inovações tecnológicas ainda têm sido rejeitadas por muitos profissionais da Educação, que criam certa rivalidade entra elas e lápis e papel, giz e quadro. Esta parece ser outra questão que atravessa o currículo, pois não significa negar uma forma em detrimento da outra, mas reconhecer que as práticas de ensino não são estáticas: elas mudam de acordo com o tempo, e essas novas tecnologias exigem que professores reflitam sobre suas práticas, visto que elas influenciam e alteram as práticas de comunicação, inaugurando novas linguagens.

Face ao avanço tecnológico, a formação de professores se vê diante do desafio de aderir às novas competências e habilidades a serem desenvolvidas em suas práticas. Competências e habilidades que, segundo Frigotto, se apresentam como exigências do mundo do trabalho, do mercado globalizado e das tendências produtivistas, interferindo desproporcionalmente nos currículos. O autor sugere, ainda, que o avanço científico tecnológico seria manipulado pelo capital e, portanto, excludente, impactando negativamente no plano ético-político, inviabilizando uma formação omnilateral.

Descoladas de um processo de construção efetiva do conhecimento, que pressupõe profissionais com base teórica e epistemológica, não vão além de uma perspectiva de educação compensatória e, o que é pior, podem constituir-se em simulacros ou bloqueadores do processo de conhecimento do próprio aluno. Aqui o problema não é a tecnologia em si, mas, a forma social e pedagógica de sua apropriação (Frigotto, 1996, p. 401).

Desse modo, acredita-se que a formação de professores se constitui em desafios múltiplos, complexos e de superação dos discursos dicotômicos da racionalidade técnica. Faz-se necessária a análise de diferentes correntes epistemológicas e políticas a partir de um debate transversal capaz de levar em consideração várias questões e diferentes dilemas que afetam o campo educacional, em especial do currículo. Por esse motivo, debruçar-se sobre a profissão, analisar a formação dos professores e discutir o seu currículo se torna cada vez mais necessário.

Pensando assim, atentamos para as seguintes questões: que tipo de professor desejamos formar? Que tipo de prática desejamos que ele desenvolva frente aos desafios apresentados no decorrer deste estudo, como a questão da violência na escola e das tecnologias como linguagens que podem contribuir para o diálogo com os estudantes? Por tudo isso, defende-se um olhar mais atento para o currículo, visto que ele é determinante quanto ao projeto de educação e à concepção de sujeito que deseja formar. Defende-se, ainda, que se valorizem as dimensões histórica, política, humana, social e cultural, de modo que elas orientem e contribuam para conferir sentido às práticas educacionais e formativas tanto do professor em formação como depois, na sua relação com os alunos, no chão da escola.

Considerações finais

No âmbito dos estágios curriculares, compreendemos ser fundamental romper com a dinâmica pautada na imagem do professor em formação (licenciando) sentado ao fundo da sala anotando informações aleatórias enquanto observa as ações do docente regente da turma. Devemos, assim, buscar um percurso formativo materializado na troca/interação, por ser o período em que o discente tem a oportunidade de vivenciar o cotidiano da sala de aula, isto é, a relação entre professor e aluno, aluno e aluno, escola e família, escola e aluno, aluno e escola, escola e comunidade – enfim, todo o dinamismo da sala de aula e da prática docente frente aos conflitos; entre eles trouxemos para este estudo a violência e o uso das tecnologias e as expectativas que em tese contribuem para ressignificar os conceitos de docência, escola, ensino-aprendizagem e avaliação, dentre outros que constituem a práxis curricular.

Desse modo, para romper com uma formação conformadora e reprodutora do poder hegemônico – poder que fomenta a prática subsumida da violência simbólica –, precisamos pensar o currículo como espaço de disputa, centrado numa perspectiva crítica (Silva, 1999), partindo do entendimento de uma concepção de escola como espaço transformador, dentro de um contexto de sociedade cada vez mais atomizada e que vivencia a dualidade opressor x oprimido, conforme sugeriu Freire. Agindo assim, estaríamos contribuindo para a construção do currículo (pensado e praticado) como instrumento vivo, que pulsa no chão da escola, capaz de oportunizar a compreensão da realidade histórico-cultural-social-política e das diferenças, de modo que cada sujeito e sua comunidade sejam parte do processo de formação, do projeto de educação, entendendo-se como construtor e transformador de sua própria realidade.

Referências

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Publicado em 04 de outubro de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

COSTA, Eduardo Soares da; FERNANDES, Marcos Vinicius Reis. Uma análise sobre o percurso no estágio curricular do curso de Pedagogia. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 35, 13 de setembro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/34/uma-analise-sobre-o-percurso-no-estagio-curricular-do-curso-de-pedagogia

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