Atuação de profissionais do AEE em tempos de pandemia: desafios e perspectivas
Pollyanna Mendes Alcântara Neri
Graduada em Pedagogia (UEMG), especialista em Psicopedagogia (UEMG) e pós-graduanda em Docência (IFMG)
Eneida Maria Silva Garcia
Graduada em Pedagogia (Unifran) e Geografia (FASF), especialista em Teorias e Práticas da Educação (Unifal) e pós-graduanda em docência (IFMG)
Gabriel de Oliveira Soares
Licenciado em Matemática (Iffar), especialista em Matemática (FURG), mestre em Ensino de Ciências e Matemática (UFN) e doutorando em Ensino de Ciências e Matemática (UFN)
Faz-se necessário, diante do contexto atual da educação, compreender as características e os serviços oferecidos pelo sistema público brasileiro para que a garantia dos direitos individuais e coletivos, citados na Constituição Federal, seja efetivada. Um aspecto importante a ser destacado está relacionado ao acesso à Educação Inclusiva, garantindo que todo indivíduo seja atendido.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, mais especificamente seu Art. 58, estabelece a Educação Especial como modalidade de ensino que deve ser oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência (Brasil, 1996). Além disso, garante:
§ 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender as peculiaridades da clientela de educação especial.
§ 2º O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns do ensino regular (Brasil, 1996, p. 19).
Nessa perspectiva, a escola deve repensar suas práticas para acolher as demandas do público a ser atendido, buscando a progressiva diminuição da exclusão, beneficiando não somente os alunos especiais, mas a escola e a sociedade, como um todo.
Para isso, o professor de AEE, em consonância com a lei, deve, por meio da criação e da execução de um plano de atendimento, articular escola, professores e família, buscando atender às necessidades específicas do educando, contribuindo para a promoção do acesso à tecnologia assistiva e desenvolvendo a participação do estudante nas atividades escolares, considerando as suas possibilidades (Brasil, 2009). Além disso, deve orientar os outros professores quanto à utilização de recursos no processo de ensino-aprendizagem em turmas comuns do Ensino Regular (Mamedes et al., 2021).
Entretanto, no início do ano de 2020, com a suspensão das atividades nas escolas em decorrência da pandemia da covid-19, estratégias foram criadas para possibilitar o acesso à educação.
A Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE-MG) criou um plano de estudo tutorado (PET), uma ferramenta de regime de estudo não presencial ofertado aos estudantes da rede pública por período indeterminado. Diante dessa realidade, os profissionais da rede de ensino mineira se viram frente a um novo desafio: proporcionar o acesso à aprendizagem com a tecnologia.
Todavia, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 20,9% dos domicílios brasileiros não possuem acesso à internet; além disso, o celular é o equipamento mais utilizado e encontrado em 99,2% dos lares, em forma compartilhada.
Assim, surgiu a ideia desse trabalho, cujo objetivo é investigar desafios relacionados à atuação de profissionais do AEE no contexto remoto, observando-se as perspectivas deste trabalho no contexto pós-pandemia.
Da educação a distância ao ensino remoto: modelo de ensino
O ensino remoto no Brasil foi adotado como medida para que a aprendizagem dos estudantes continuasse, mesmo diante do fechamento físico das escolas. Para entender o que é o ensino remoto torna-se necessário compreender o que é Educação a Distância (EaD).
A EaD se apresenta como uma alternativa na formação do cidadão, permitindo a democratização do conhecimento. É uma proposta baseada em um modelo no qual professores e estudantes não precisam estar em um local em comum. Para que funcione, a tecnologia da informação é uma ferramenta de mediação nesta relação de ensino-aprendizagem. Conforme Moore e Kearsley (2008) explicam, a EaD
é o aprendizado planejado que ocorre, normalmente, em um lugar diferente do local do ensino, exigindo técnicas especiais de criação do curso e de instrução, comunicação por meio de várias tecnologias e disposições organizacionais e administrativas especiais (p. 2).
Nessa modalidade, os papéis desempenhados, tanto pelo professor quanto pelo estudante, se diferem do que ocorre no presencial. Cabe ao estudante, de acordo com a sua autonomia, criar uma rotina de estudos, evidenciando assim o protagonismo do estudante como construtor de seu próprio conhecimento. Já o professor precisa entender que esse redimensionamento do espaço altera a sua prática e exige uma metodologia própria na relação docente-conhecimento-aluno (Mill, 2013).
Um ponto importante a ser compreendido se refere ao uso da tecnologia, pois sem as ferramentas tecnologias não é possível a existência desta relação professor/aluno a distância. Nesse sentido, a escola é a principal instituição de letramento e deve repensar suas práticas pedagógicas, a fim de atender às demandas da sociedade contemporânea, porém é necessário compreender que inovações tecnológicas não possuem o mesmo significado que inovações pedagógicas.
De maneira geral, tanto as práticas educativas quanto a política de educação têm sido reformuladas a partir dessas novas relações na sociedade. Sendo assim, Castells (2003, p. 211) afirma que “se há um consenso acerca das consequências sociais do maior acesso à informação é que a educação e o aprendizado permanente tornam-se recursos essenciais para o bom desempenho no trabalho e o desenvolvimento pessoal”.
Logo, ensinar utilizando a internet exige uma nova mentalidade sobre o que é educação e sobre quais habilidades devem ser desenvolvidas para que o estudante seja capaz de selecionar as informações, usufruindo, de maneira adequada, de tudo o que está disponível, mas com adequação e a favor do seu próprio letramento.
O uso de tecnologias como instrumentos mediadores do conhecimento sempre foi um desafio, principalmente para a Educação Básica. Dentre os desafios, podemos mencionar, entre outros, o acesso, a infraestrutura das escolas e a falta de profissionais capacitados.
Contudo, desde a suspensão das aulas, em março de 2020, o Ministério da Educação e a Secretária Estadual de Educação emitiram portarias indicando, em caráter emergencial, a utilização do ensino remoto. No caso de Minas Gerais, o Regime Especial de Atividades Não Presenciais (Reanp) contou com a disponibilização de um plano de estudo tutorado (PET) e a transmissão, em TV, do conteúdo contido no PET. Posteriormente, a SEE também disponibilizou a plataforma do Google, fornecendo e-mail institucional para todos os estudantes. Além disso, muitas escolas adotaram o WhatsApp como meio de comunicação, por se tratar de um recurso mais próximo da realidade da comunidade atendida.
Apesar de a tecnologia estar presente em nosso cotidiano, a sua utilização na aprendizagem pode ser considerada como inovadora e um desafio ainda maior aos profissionais da educação. Podemos destacar alguns elementos significativos, tais como, o espaço físico, a tecnologia utilizada, o acesso precário à internet, a formação para planejar e executar as atividades remotas síncronas ou assíncronas e o material tecnológico adequado e à disposição.
Durante a pandemia, o trabalho do AEE precisou ser modificado, pois para alcançar o aluno atendido foi necessária uma adaptação de metodologias em uma tentativa de minimizar os impactos da pandemia para este público, em específico.
Aspectos metodológicos
Esta pesquisa tem como objetivo analisar a atuação dos profissionais de AEE durante a pandemia e compreender quais os desafios encontrados durante este período. Desenvolveu-se, portanto, um estudo do tipo qualitativo, com estudo de caso, que “visa descrever e a decodificar um sistema complexo de significados” (Maanen, 1979, p. 520).
Participaram das pesquisas oito professores de um centro de atendimento educacional especializado (AEE), divididos em: quatro professores da cidade de Belo Horizonte e quatro professores da cidade de Bambuí, ambas em Minas Gerais. Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, seguindo uma abordagem qualitativa exploratória, na qual os entrevistados respondem a um questionário (remoto). O Quadro 1 apresenta as questões feitas aos participantes.
Quadro 1: Questões feitas aos participantes
Formação e atuação profissional |
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Atuação antes da pandemia |
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Atuação na pandemia |
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As respostas foram coletadas pelo aplicativo WhatsApp, tanto por áudio quanto por meio escrito. Após a coleta dos dados, realizou-se uma análise interpretativo-descritiva, da qual criou-se um metatexto com trechos das falas dos professores para elucidar as reflexões feitas.
Resultados
De acordo com as respostas do bloco 1, a maioria dos professores entrevistados têm graduação em Pedagogia ou Normal Superior com especialização em Educação Especial e vasta experiência para trabalhar com alunos deficientes, principalmente na rede pública de ensino.
No bloco 2, que diz respeito à atuação antes da pandemia, grande parte dos entrevistados afirmou que a formação contribuiu de maneira significativa para sua prática com o atendimento educacional especializado (AEE). Contudo, evidenciou-se que é necessária uma atualização constante dos docentes, como podemos perceber nos seguintes trechos das entrevistas com P4 e E3.
Apesar dos muitos desafios que encontro na educação inclusiva, sinto que minha formação me propiciou o suficiente para começar esse tipo de atendimento, mas entendo que a formação deve ser contínua (P4).
Sim, ajudou muito, a atuar nestes diferentes segmentos, me trouxe uma bagagem grande, e uma forma de percepção mais apurada das necessidades dos alunos em todo os sentidos como pedagógico, emocional, cultural, motor, sensorial (E3).
Em relação às dificuldades e às facilidades encontradas antes da pandemia, os professores responderam que a maior dificuldade diz respeito ao excesso de alunos, pois a diversidade de alunos deficientes atendidos não favorece o atendimento. Destacamos, ainda, a falta de apoio de especialistas médicos e de multidisciplinar, tais como, neurologistas, psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos, além da falta de materiais pedagógicos, de investimentos na formação dos professores, nas salas de recursos e a precária infraestrutura, sem o apoio da família do educando.
Sobre as facilidades encontradas, todas dizem respeito ao auxílio pessoal conferido dos professores aos alunos. A percepção é de que ao transmitirem segurança aos discentes, conseguem contribuir para a sua efetiva inclusão, em um trabalho coletivo e colaborativo entre professor regente, professor de apoio e família, parceria de suma importância para o aprendizado do educando com deficiência.
Quanto à percepção dos entrevistados da trajetória profissional no AEE e sua contribuição na vida dos estudantes, podemos perceber que todos se veem como mediadores e facilitadores da aprendizagem, transmitindo segurança aos alunos, como já mencionado, a fim de possibilitar uma educação realmente inclusiva. Outro ponto importante diz respeito à busca de estratégias que minimizem as dificuldades daqueles alunos que precisam de mais tempo para consolidar o aprendizado, sendo fundamental o desenvolvimento da aprendizagem intermediada pela socialização e o desenvolvimento da autonomia da criança, respeitando as suas especificidades.
Passando para o bloco 3, observamos questões sobre a atuação do docente na pandemia. Muitos afirmaram que o trabalho foi desafiador e que aconteceu de forma remota, por aulas online e grupos de WhatsApp, com atividades propostas pelos planos de estudos tutorados (PET). De forma adaptada, o AEE auxiliava os estudantes com deficiência a partir de jogos pedagógicos, contando com o envolvimento das famílias. O contato ocorria por mensagens de texto e áudio e, outras vezes, por videochamada.
Outro aspecto importante de ser sinalizado refere-se à cobrança sentida pelos profissionais e a necessidade de adequação às exigências de atendimento, com o objetivo de encontrar uma forma de auxiliar os alunos remotamente.
Difícil, um grande desafio! Dificuldades de entendimento e comunicação (tem família que não tem estrutura para auxiliar os filhos na realização das atividades), tem dificuldades de comunicação, não tem paciência, dificuldade com a internet, tecnologia (E2).
Na fala em destaque é perceptível a dificuldade enfrentada pelos sujeitos envolvidos no processo, pois foram pegos de surpresa ao terem de aprender a lidar com as novas tecnologias. Também, observa-se, no decorrer das entrevistas, a angústia sentida pelos docentes ao perceber suas próprias dificuldades e as dificuldades das famílias dos alunos, além da resistência e aceitarem o aprendizado pela via virtual, a falta de recursos ideais para as aulas. Com isso, os professores procuram estabelecer estratégias inovadoras que atendam aos alunos. Este atendimento, muitas vezes, ocorria fora do horário de trabalho do profissional, já que era o momento que o educando estava acompanhado por alguém que pudesse auxiliar na execução das atividades, em casa.
Mesmo diante das dificuldades, muitos profissionais se sentiram motivados em aprender sobre as ferramentas digitais. Também, puderam usar, com mais liberdade, a sua criatividade, assim como acessar o conhecimento adquirido previamente, ao longo de sua atuação docente.
A participação dos estudantes com deficiências não foi expressiva. A partir das suas falas identificamos um total de 20% dos alunos e familiares que participaram e acessaram, de fato, as atividades propostas pelos profissionais do AEE. Vários obstáculos foram ultrapassados para alcançar este número, dentre eles, o acesso às tecnologias utilizadas, a baixa escolarização da família ou a ausência de paciência para auxiliar no processo de aprendizagem dos filhos, além da questão relacionada ao tempo para cada proposta lançada, tendo em vista a necessidade dos alunos atendidos requerem momentos mais extensos para a execução das tarefas. Diante destes entraves, evidenciou-se que a interação aluno-família-escola sempre será primordial para o desenvolvimento da criança e para a sua aprendizagem. No momento da pandemia, esta parceria se tornou fundamental.
Considerações finais
Este trabalho buscou analisar a atuação dos professores do AEE junto aos estudantes da Educação Básica durante o período de isolamento social imposto pela pandemia da covid-19.
Ao longo da leitura das respostas aos questionários, pode-se notar a preocupação dos docentes em ofertar o conteúdo programático escolar de maneira clara ao estudante e à família. Além disso, os professores buscaram novas metodologias e recursos que os auxiliassem na aprendizagem dos alunos e na orientação às famílias.
Desse modo, com a utilização das novas ferramentas, observou-se a dificuldade de acesso ao conteúdo, tanto do professor como do estudante, pois nem todas as famílias possuíam uma internet de qualidade ou um equipamento à disposição do estudante no horário do seu estudo.
Apesar de a maioria dos professores possuir pós-graduação, eles relataram a importância da formação continuada, da prática e da parceria com a família na construção das relações afetivas. Com o surgimento do coronavírus e a manutenção do distanciamento social para evitar a contaminação, esta parceria se tornou essencial e, ao mesmo tempo, um desafio. O professor foi levado a criar diferentes estratégias, contudo se o educando não tivesse com um responsável ao seu lado para mediar a aprendizagem, o efeito não era o mesmo.
Por fim, destacamos que estudos como este buscam apresentar a realidade encontrada por diversos profissionais em nosso país, mas que precisam ser desveladas para que possibilite reflexões sobre as políticas públicas e sobre a garantia aos direitos individuais do cidadão.
Referências
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Ministério da Educação, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 05 fev. 2022.
BRASIL. Resolução nº 4, de 2 de outubro de 2009. Institui diretrizes operacionais para o atendimento educacional especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial. Brasília, 2009.
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MILL, D. Educação a Distância contemporânea: noções introdutórias. In: OTSUKA, J. L.; MILL, D.; OLIVEIRA, M. R. (orgs.). Educação a Distância: formação do estudante virtual. São Carlos: EdUFSCar, 2013.
MOORE, M. G.; KEARSLEY, G. Educação a distância: uma visão integrada. São Paulo: Thompson, 2008.
Publicado em 11 de outubro de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
NERI, Pollyanna Mendes Alcântara; GARCIA, Eneida Maria Silva; SOARES, Gabriel de Oliveira. Atuação de profissionais do AEE em tempos de pandemia: desafios e perspectivas. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 38, 11 de outubro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/38/atuacao-de-profissionais-do-aee-em-tempos-de-pandemia-desafios-e-perspectivas
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