A Zoologia Cultural como abordagem em potencial para a Educação Básica

Hugo José C. C. de Azevedo

Doutorando em Ensino de Biociências e Saúde (IOC/Fiocruz)

Fernanda Campello Nogueira Ramos

Doutoranda em Ensino de Biociências e Saúde (IOC/Fiocruz)

Sílvia Arcanjo Carlos Ribeiro

Mestra em Educação em Ciências (Unifei)

Gabriela Louzada Ramos

Mestranda em Ensino de Biociências e Saúde (IOC/Fiocruz)

O ensino de Zoologia, assim como das demais áreas da ciência, sofreu muitas modificações em seu escopo teórico durante as últimas décadas. Viviani (2007) demonstra que, desde a década de 1920, a Zoologia, no Ensino Básico, passou por diversas interpretações e pressões sociais e culturais.

De acordo com Almeida et al., (2019),

embora o desempenho na aprendizagem seja de responsabilidade do estudante, o envolvimento do professor e o contexto do ambiente acadêmico são condições necessárias para o processo de ensino (Formiga, 2006). É no engajamento didático do professor, colocando o estudante como centro da ação educativa, que muitos exemplos de práticas exitosas têm sido desenvolvidos na sala de aula. Estas práticas educativas como vistas em Suárez (2008), ao serem refletidas, interpretadas, relatadas e tornadas públicas, correspondem a documentos narrativos de grande significado na pesquisa-ação-formação. De acordo com Suárez e Flores (2017), todo relato narrativo que cada sujeito faz de sua realidade representa seu conhecimento de mundo e de sua intervenção nesse mundo. Os relatos produzidos a partir da sala de aula, de acordo com os autores, também podem ser utilizados para o professor continuar se reconstruindo e aprimorando o exercício da docência (Almeida et al., 2019, p. 1).

Sendo a Zoologia uma ciência cuja abordagem refere-se à diversidade animal e às suas definições, ela se torna fundamental para o aluno que tenha o interesse em conhecer animais, não apenas na escola, mas também no meio em que vive, como cidadão. Estamos cercados por animais em nosso cotidiano, mas há pouco conhecimento formal a respeito (Santos; Bonotto, 2012). Para muitos brasileiros, o único contato científico com os animais se dá somente na escola.

Diante dos desafios vivenciados na educação, é necessário que o ensino propicie aos estudantes ferramentas para a aplicação dos conhecimentos em seu cotidiano, sobretudo quando se considera o ensino de Ciências e Biologia, área primordial para a formação cidadã. Assim, é necessário que os professores criem espaços para que a alfabetização científica e tecnológica seja desenvolvida, o que visa impactar positivamente a vida dos educandos, o que só será possível através de uma melhor preparação docente (Silveira; Fabri, 2020). Nesse sentido enfatizam que “a formação permanente de professores é condição de possibilidade de reconhecimento dos docentes nas diferentes instâncias do saber, uma vez que carrega um sentido pedagógico, prático e transformador (Silva et al., 2021, p. 284).

É importante, portanto, o levantamento de questões reflexivas acerca de como é ensinada a Zoologia no Ensino Básico. Além, também, de estudos qualitativos acerca dessa abordagem. Sendo assim, as abordagens presentes nos livros didáticos mostram-se importantes para o processo de ensino-aprendizagem, junto às suas influências na constituição de valores relacionados aos animais e, até mesmo, em relação à compreensão sobre a Natureza (Bonotto, 2008).

No Ensino Básico, as abordagens presentes em Zoologia são as mais diversas. Podem ser caracterizadas como um sistema de premissas teóricas que representam a forma como são embasadas as questões presentes no currículo, caracterizando tanto as práticas pedagógicas quanto as interações entre o professor e o aluno com o seu objeto de estudo (Peres et al., 2014).

Algumas destas abordagens, porém, são consideradas nocivas para a interação do aluno com o seu objeto de estudo. A abordagem utilitarista é uma delas, pois nela os animais são estudados por preceitos econômicos (criação de corte, pragas agrícolas etc.). Assim, quanto mais importante o animal for (economicamente falando), mais ele será estudado, construindo conceitos segregacionistas acerca dos fundamentos da Zoologia que são fundamentos relativos à biodiversidade animal. Rocha et al. (2013) relatam em seus estudos que o uso da abordagem utilitarista está presente no ensino de Zoologia para não construir conceitos acerca da diversidade de formas, comportamentos e evolução dos animais, mas para atestar sobre o quanto eles são “úteis” ou “inúteis” para nós, seres humanos. Essa forma de concepção está mais próxima de um ensino de Zootecnia do que propriamente de Zoologia. Sendo assim, ele deve ser evitado (Oliveira; Souza, 2014).

Referentes aos aspectos didáticos utilizados para a facilitação da aprendizagem de zoologia, tem-se os trabalhos de Lenz et al. (2017) ao tratarem sobre concepções de ensino e currículo de zoologia no Brasil, e Richter et al. (2017) que abordam sobre concepções e metodologias na prática de professores de Zoologia. Em ambos são investigados os trabalhos da seção de Ensino de Zoologia dos Anais do Congresso Brasileiro de Zoologia, abrangendo o período de 2004 a 2014. Além dessas duas publicações, muitos outros estudos envolvendo diversos autores foram produzidos no que diz respeito ao ensino de zoologia no Brasil (Almeida et al., 2019).

Azevedo (2016) aponta alto teor utilitarista nos livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD, 2015). Magalhães (2013) faz um recorte em sua pesquisa analisando o conteúdo de “insetos” (Arthropoda; Insecta) e assume que se trata de um conteúdo puramente utilitarista.

Diante desse quadro no ensino de Zoologia, torna-se importante levantar reflexões sobre possíveis abordagens substitutas, não nocivas, que auxiliem no processo de construção do conhecimento do aluno sobre os animais.

Desenvolvimento

A Zoologia Cultural é o estudo das manifestações de animais em meio sociocultural, interagindo indiretamente por meio de HQs, filmes, desenhos etc. (Silva et al., 2014). Esse tema atualmente vem sendo estudado por zoólogos e educadores, ganhando certo destaque (Coelho, 2004). Silva et al. (2014) levantaram estudos de como tal abordagem metodológica alternativa pode ser inserida no ensino de Zoologia e chegaram à conclusão que ela pode ser abordada das mais diversas formas, inclusive na sistemática filogenética, para o auxílio da construção do conhecimento acerca da área (Nemésio et al., 2013). A abordagem possui uma alta potencialidade positiva ao ser usada no ensino, pois aumenta o interesse do aluno sobre os animais (Rama; Vergueiro, 2004), além de trazer questões sociais importantes envolvendo cidadãos e animais, o que aproxima o aluno da Zoologia.

Para Silva et al., (2020),

os estudos no campo da Zoologia Cultural (Silva; Coelho, 2016) apresentam diversas possibilidades de aplicação prática, especialmente no ensino, na divulgação científica e na   preservação da biodiversidade. Sampaio (2018), por exemplo, aplicou os preceitos da Zoologia Cultural em sala de aula, testando os conhecimentos de uma turma do 7º ano (ensino fundamental) quanto aos grupos taxonômicos animais, a partir de personagens fictícios.  Rodrigues; Silva (2018) propuseram a utilização do clipe da música Do the Evolution, da banda Pearl Jam, em aulas de Evolução no Ensino Superior. Dumas (2018) mencionou que símbolos esportivos inspirados em animais, se bem trabalhados, poderiam se tornar ótimos instrumentos   para   se   popularizar   a   fauna   local, com   vistas   a   campanhas   de preservação, além da utilização em sala de aula. Silva (2019) abordou uma revista em quadrinhos com potencial para utilização na popularização dos répteis. Coelho e Silva (2020) defenderam a utilização de narrativas impressas ou orais no ensino e para a popularização da Ciência. Rangel; Silva; Costa (2020) apontaram para a possível utilização da franquia Pokémon como ferramenta de educação e conservação, visando a popularização das aves marinhas. Silva e Coelho (2020) chamaram a atenção à crescente presença de animais selvagens nas cidades humanas, esvaziadas pela redução das atividades devido à pandemia da Covid-19; as relações entre humanos e outros animais terão que ser repensadas e remodeladas (Silva et al., 2020, p. 354).

Logo, pode-se observar o cunho interacionista que a Zoologia Cultural apresenta, justamente o que Mizukami (2010) detectou faltar ao seu ensino, além dela conseguir demonstrar a biodiversidade animal, pois este é um dos seus focos no Ensino Básico conforme os PCN (Brasil, 2006). Por fim, é importante ressaltar a Base Nacional Comum Curricular, que defende:

Em um mundo repleto de informações de diferentes naturezas e origens, facilmente difundidas e acessadas, sobretudo por meios digitais, é premente que os jovens desenvolvam capacidades de seleção e discernimento de informações que os permitam, com base em conhecimentos científicos confiáveis, analisar situações-problema e avaliar as aplicações do conhecimento científico e tecnológico nas diversas esferas da vida humana com ética e responsabilidade (Brasil, 2018, p. 544).

Dessa forma, tanto a Pedagogia quanto a política curricular defendem uma formação crítica e abrangente do cidadão.

Conclusão

Concluímos esta reflexão entendendo que existem abordagens que podem funcionar como substitutas no ensino da Zoologia para a Educação Básica. É importante assinalar a necessidade da sua difusão no meio docente, a fim de que o professor conheça e saiba utilizar a Zoologia Cultural em sua práxis pedagógica. Do mesmo modo, acreditamos ser significativo que os editores de livros didáticos tenham ciência sobre ela, para que avaliem como podem introduzi-la no ensino público brasileiro com uma abordagem formal.

Nesse ponto, é necessário imaginar qual seria o melhor segmento de ensino para a aplicação da Zoologia Cultural. O Ensino Fundamental se torna grande candidato, dadas as idades dos alunos e as suas ligações com os desenhos animados e as HQs. Entretanto, pode-se, ainda, adaptá-la ao Ensino Médio, com o uso de representações destes animais que estão presentes no meio cultural. Por exemplo, no Fundamental I e II seria interessante a articulação destes animais e da sua diversidade, pedindo para que os alunos busquem representantes culturais de um determinado animal e suas ligações com um desenho/HQs e até filmes. Esta seria uma boa forma de mostrar para o aluno, de forma contextualizada, que ele não está distante do animal representado. Também, assim, o docente pode inserir o conteúdo de forma mais fluida.

Para o Ensino Médio, pode-se ainda seguir no estudo do conteúdo a partir de representações de animais que estão sob “licença poética”, como objetos de estudo. A licença poética é a inspiração da qual o ilustrador se utiliza para a criação cultural de uma determinada personagem. Neste caso, seria inspirada em um animal. Logo, o ilustrador acrescenta estruturas à personagem, não fiéis ao animal representado (e.g. chifres, olhos, asas ou pernas quando o animal real não possui). No ensino formal, para este segmento, pode-se usar as licenças poéticas com a finalidade de se estudar o animal real, promovendo discussões e reflexões junto aos alunos a respeito das estruturas da personagem e do animal inspirado nela, assim, insere-se o conteúdo da Zoologia dentro deste contexto. Podemos citar uma personagem inspirada em uma borboleta, mas que possui quatro pernas e um par de asas, sendo que o animal real possui seis pernas e dois pares de asas. Neste momento, voltamo-nos ao conteúdo sobre a divisão do corpo dos insetos, com a participação dos alunos na análise crítica e zoológica da personagem representada.  

Observamos, desse modo, que não só a morfologia do animal pode ser explorada com o uso da Zoologia Cultural, mas todo o contexto em que este animal vive na sociedade. Dessa forma, teremos boa fonte para possíveis ressignificações de alguns conceitos que podem estar equivocados, como comportamentos, alimentação, habitat e reprodução deste animal, enriquecendo os debates em sala de aula. 

Referências

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AZEVEDO, H. J. C. C. O ensino de Zoologia no ensino médio: uma análise das principais abordagens presentes em livros didáticos de escolas públicas da cidade de Itajubá. Trabalho de Conclusão de Curso - Universidade Federal de Itajubá, Itajubá, 2016.

BONOTTO, D. M. B. Contribuições para o trabalho com valores em Educação Ambiental. Ciência & Educação, Bauru, v.14, n° 2, 2008.

BRASIL. Ministério da Educação. Orientações curriculares para o Ensino Médio. Brasília: MEC, 2006.

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MAGALHÃES, A. P. F. Como os insetos são levados às escolas: uma análise de livros didáticos de Ciências. Trabalho de Conclusão de Curso - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.

MIZUKAMI, M.G.N. Ensino: as abordagens do processo. Temas básicos de Educação e Ensino, São Paulo, 2010.

NEMÉSIO, A.; SEIXAS, D. P.; VASCONCELOS, H. L. The public perception of animal diversity: what do postage stamps tell us? Frontiers in Ecology and the Environment, v. 11, 2013.

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PERES, C. M. et al. Abordagens pedagógicas e sua relação com as teorias de aprendizagem. Medicina (Online), Ribeirão Preto, v. 47, nº 3, p. 249-255, 2014.

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VIVIANI, L. M. A Biologia necessária. Formação de professoras e Escola Normal. São Paulo: Fapesp, 2007.

Publicado em 25 de outubro de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

AZEVEDO, Hugo José C. C. de; RAMOS, Fernanda Campello Nogueira; RIBEIRO, Sílvia Arcanjo Carlos; RAMOS, Gabriela Louzada. A Zoologia Cultural como abordagem em potencial para a Educação Básica. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 40, 25 de outubro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/40/a-zoologia-cultural-como-abordagem-em-potencial-para-a-educacao-basica

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