A escola e a distante formação de docentes: o que necessita (auto)conhecer para entender suas realidades?
Antônio Eustáquio de Oliveira Fam
Mestrando em Educação (UFTM)
A escola é um espaço de múltiplas individualidades, composta por diferenças e diversidades. Não é um local estranho à realidade social, como se fosse uma pequena ínsula isenta de acontecimentos do dia a dia. É um local onde uma comunidade está inserida e é composta por realidades sociais e culturais, compostas por contextos históricos.
No entanto, a escola é trabalhada como um aparelho alheio às discrepâncias sociais, os problemas e as lutas advindas de contextos segregadores, movimentos e coletivos que cada comunidade produz como resistência. Mais grave ainda é o desconhecimento de si, do outro e da função social do docente dentro do espaço escolar, assim como na sociedade. Em que ponto, da formação inicial ou continuada, perdeu-se o caminho do diálogo com os contextos escolares? Como podemos lecionar para as diversidades se não nos autoconhecermos nem conhecemos o outro, sabendo do nosso destino dentro da essência da natureza humana? São mistérios, como estes, que são reais e pouco trabalhados dentro dos cursos de formação de docentes, distanciando a existência ímpar humana da profissão coletiva do professorado.
A ganância por cumprir demandas e objetivos legais faz com que o compromisso do docente se desvincule dos propósitos da formação natural do ser humano. Estes compromissos fazem com que a escola se destine a formar pessoas para a competitividade, uma realidade na maioria das instituições sociais. No entanto, cada ser humano tem sua caminhada individual, que é intrínseca e composta por períodos, como Rudolf Steiner enfatiza. Não são lineares, mas em ciclos de sete anos, denominados de septênios (Lanz, 2016).
Conhecer os períodos evolutivos do ser humano deveria ser a base formativa e contínua dos professores e das professoras em processo de aprendizagem, dentro das universidades e dos cursos de formação. Pensando nesse descompasso entre universidade e escola, o presente estudo traz consigo alguns pontos primordiais que deveriam ser repensados nos cursos de formação.
Este estudo tem como objetivo discutir a real necessidade do autoconhecimento de si, educador e educadora, e do conhecimento do outro. O que faz da pessoa um docente em compromisso com a autoeducação de cada aluno, respeitando cada individualidade? A discussão tem como viés a corrente antroposófica que enfatiza a importância do autoconhecimento de si no processo de autoeducação, superando determinismos paradigmáticos na concepção da formação para a liberdade (Bach Júnior, 2021b).
Método
O estudo tem como proposta uma análise exploratória da bibliografia referente a pesquisas dentro da temática da Antroposofia, em especial sobre a formação dos professores. Foi utilizado, também, textos da professora Selma Garrido Pimenta, referência sobre a formação docente, e algumas contribuições de estudiosos na área. Segundo Gil (2002), a pesquisa bibliográfica permite ao pesquisador uma gama, mais ampla, de assuntos, ideologias e fenômenos discutidos anteriormente, por outros estudiosos. Segundo ele, o estudo bibliográfico pode ser extraído de fontes já publicadas, como livros, artigos, resumos etc.
Vale ressaltar que a escolha dos textos condiz com os objetivos elencados para a discussão sobre a construção pessoal e profissional do docente, a partir do autoconhecimento de si, do outro e da realidade social na qual estamos inseridos.
Foi realizado um levantamento bibliográfico sobre o tema “formação de professores e professoras”, interligado com a “Antroposofia”, utilizando as plataformas Periódicos Capes, SciELO, Google Acadêmico e a Base Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), do Catálogo de Teses e Dissertações da Capes e os periódicos da Faculdade Rudolf Steiner.
Foram encontrados diversos estudos com pouquíssimas fontes que traziam a formação de professores na perspectiva da Antroposofia. Os estudos encontrados são de pesquisadores renomados que dedicaram anos de estudos ao tema, tais como Jonas Bach Junior, Tania Stoltz, Ulrich Weger e Marcelo Veiga. Esses estudos serão utilizados para promover uma discussão com pesquisas da professora Selma Garrido Pimenta, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e outros autores que trazem questões relevantes sobre a formação de docentes.
O objetivo é levantar uma discussão sobre as áreas que podem dialogar com a finalidade humanística e individual do docente, trazendo a responsabilidade de conhecimento do trabalho peculiar de mediação da autoeducação de cada pessoa inserida nas escolas.
Resultados e discussão
Pensar a educação sob a perspectiva da formação docente equivale a uma proposta muito desafiadora para as universidades. São desafios que nascem e se multiplicam dentro do contexto social, ao qual a sociedade vem herdando cotidianamente dos seus antepassados (Steiner, 2012). Desafios que se transformam em problemas, que vão trazendo desconforto e perturbação ao homem e à mulher, colocando-os em constante experimentação das possibilidades de respostas. Essas respostas são obtidas e trabalhadas sobre a apreciação sensorial e materialista, trazendo respostas conservadoras e pouco exigentes das possibilidades que o ser humano pode conceber a partir do conhecimento real das coisas em si e suas inter-relações (Goethe, 2012).
Essas questões trazem infinitas discussões sobre quais métodos e formas são necessários para respostas efetivas aos problemas que afligem a sociedade. Isso reflete diretamente nas escolas e na sua contribuição para a formação de pessoas autônomas. Dentro dessa perspectiva, indaga-se sobre quais docentes necessitamos para as diversas realidades que estão presentes nas escolas. São indagações como esta que estão presentes nas diversas pesquisas que são realizadas na área da formação de docentes. Pergunta-se muito sobre os tipos de saberes (Pimenta, 1999) necessários para um docente em processo de formação nas universidades. No entanto, não se indaga sobre o autoconhecimento de si, intrínseco em cada futuro educador e educadora. O que precisamos saber sobre nós mesmos a fim de nos formarmos docentes? Quem somos nós, docentes? Segundo Lanz (1999), questões como essas movimentaram e ainda movimentam a ciência materialista à procura de respostas que extrapolam a perspectiva sensorial dos estudiosos. Para o conhecimento de si é necessário que o homem e a mulher despertem as faculdades necessárias para essa finalidade, que equivale conceber, também, o mundo a partir do aspecto suprassensível. Há um entendimento de entender a natureza humana a partir de outros ângulos que não se restringe ao sensorial, descobrindo a tríplice formação do ser humano, formado por corpo, alma e espírito. Entender a natureza do ser humano é uma necessidade e deveria ser praticada dentro das universidades, trazendo para a discussão aspectos como o autoconhecimento e o conhecimento do outro.
Conhecimento de si e do outro pode construir elos que diminuem a distância entre o que se ensina nas universidades e o que está, de fato, configurado nas realidades escolares. Segundo Stoltz e Weger (2015), o conhecimento requer envolvimento a partir de um pensar vivenciado, realizando constantemente uma investigação de si. No entanto, se os conhecimentos não forem compreendidos a partir do indivíduo, eles perdem o sentido. Bach Junior (2019) complementa, enfatizando que quando o docente realiza a interpretação do contexto vivido (por meio do autoconhecimento e do conhecimento do outro e das realidades existentes), ele se liberta de fórmulas prontas, de determinismos e de paradigmas que padronizam um ensino e um pensar. Para Bach Junior (2019), sob a perspectiva da formação de professores e professoras, é necessário o ser humano conhecer a si mesmo e conhecer com quem ele irá desenvolver a atividade educativa.
É importante o docente exercitar a autoconsciência sobre o seu fazer educativo. Não há como o professor se isentar do conhecimento e dos aspectos intrínsecos das individualidades e das coletividades que estão inseridas no contexto das escolas, porque essas realidades estão arraigadas nas pessoas. Stoltz e Weger (2015) sinalizam que a educação tem encarado a Ciência a partir de uma racionalidade distante e descomprometida com as individualidades e com a coletividade. É necessário ter esse conhecimento, buscando, veementemente, dentro dos cursos de formação, a construção de identidades pessoais e profissionais de docentes comprometidos com o contexto escolar no qual está inserido. A professora Pimenta (1999), em seus estudos sobre o tema, salienta que os cursos de formação docente têm demonstrado proximidade dos currículos formais e burocráticos que não captam as realidades existentes nas escolas. Torna-se, então, um grande vazio científico o falar acadêmico engessado, destoando das contradições que são inerentes à sociedade e, principalmente, às escolas.
Corrêa (2019) complementa a discussão sinalizando que as universidades, atualmente, são encaradas como espaços destinados à formação de técnicos especialistas, formando professores para a transmissão paulatina de conteúdo. O docente vai tornando-se um mero transmissor de conteúdo pronto, sem criticidade e autonomia, por isso, na maioria dos casos, o aluno se vê impedido de ter uma formação de matriz investigativa, de olhar para si e para o outro. Nóvoa (1995) complementa o pensamento de Corrêa (2019) afirmando que a formação do docente precisa estimular uma perspectiva crítico-reflexiva que alimente, constantemente, práticas de (re)construção de uma identidade pessoal articulada com a identidade profissional. Segundo ele, o docente, como pessoa, deve integrar o seu pessoal com a sua formação profissional.
Sob a perspectiva da Pedagogia Waldorf, faz-se necessário que o docente saiba, primeiramente, qual é a sua função social dentro do espaço escolar. O docente tem que ter conhecimento da sua responsabilidade nessa relação recíproca com o discente, pois a sua figura representa um “exemplo” para a autoeducação de cada pessoa. Bach Junior (2019) enfatiza que a Antroposofia prioriza, na formação docente, o conhecimento de quem somos nós, perguntando o que é esse ser humano complexo. Steiner (2004), no seu livro Teosofia, discute a sabedoria que transcende os sentidos, ao falar da natureza do ser humano. Segundo Steiner (2004), a natureza humana tem a sua formação física, anímica e espiritual. O corpo físico é composto pelos sentidos que fazem contato com o mundo material e sensorial. A partir dessa relação dos sentidos com o mundo, o ser humano pode perceber e relacionar todas as coisas que o rodeiam. Com relação aos sentidos com o mundo físico, o homem e a mulher podem ter o sentimento de agrado e desagrado, unindo a impressão sensorial com o sentimento construído no mundo interior de cada pessoa. Este sentimento é possível por meio da natureza anímica que cada ser humano constrói em si. Na natureza espiritual, o ser humano busca o conhecimento das coisas em si e suas inter-relações com o meio no qual se encontra. Não basta entender o crescimento e a reprodução de cada ser vivo, mas descobrir as suas relações com o meio ambiente. O espírito está no resultado do envolvimento da percepção sensorial com os seus sentimentos, resultando no pensamento. Essa natureza espiritual do ser humano atua nos corpos inferiores, modificando-os para que se humanizem. A percepção da constituição do ser humano eleva, no docente em formação, o seu autoconhecimento.
Um aspecto importante sobre essa percepção é o conhecimento de habilidades que extrapolam o conhecimento sensorial e materialista das coisas, não restringindo, somente, à ciência atual que reconhece somente o que é palpável e observável (Oliveira, 2019). É necessário que o docente conheça o ser humano em sua constituição tríplice, orientando-se por cada individualidade, entendendo que cada pessoa se manifesta e se comporta de forma peculiar, o que questiona a formação unilateral na educação tradicional, priorizando o aspecto conteudista.
Os mistérios da existência do ser humano são pouco ou quase nunca explorados nos cursos de formação docente, pois desconhecem o aspecto mais importante no processo de autoeducação: o ser humano. Autoconhecer e conhecer o outro torna-se uma busca pessoal, quase intangível das realidades escolares, que muitas vezes esbarram na falta de tempo, devido ao acúmulo de aulas e à burocratização do ensino que distancia o aspecto pessoal (do ser) da instituição escolar. Pela falta do autoconhecimento de si e do conhecimento do outro cria-se um abismo entre a escola e a formação docente, reiterando as práticas tecnicistas adotadas nas universidades. Não conhecer a sua natureza, o seu local de fala e de identificação significa não estabelecer um ponto de diálogo com o outro, tornando a prática educativa pouco ou quase nada dialógica.
Conclusão
Há saberes que extrapolam os ensinamentos teóricos das universidades, mas que deveriam ser praticados nos cursos de formação docente, como o exercício do autoconhecimento e do conhecimento do outro. É um engano isentar-se desta perspectiva formativa, pois a escola é o local que deve trabalhar com as individualidades e com cada tempo de autoeducação, não se dissociando do compromisso social de formar pessoas autônomas e críticas para a sociedade. Vale salientar que a pedagogia Waldorf preza para formação de pessoas que integrem as realidades sociais, trazendo suas contribuições. É importante a prática desses saberes, pois eles são autônomos e dependem do momento de análise do professor, criando vínculos com a sua existência e com o interesse por seu destino.
Dentro dessa perspectiva de análise, entende-se que, além dos saberes propostos pela professora Selma Garrido Pimenta, incluem-se os saberes de si e do outro como início da construção da identidade docente. Não podemos saber o que vamos propor dentro do processo educativo se não soubermos o que somos e nem o que estamos medindo dentro da sala de aula (nosso local de fala). O conhecimento da natureza de si e do outro ressaltam as faculdades adequadas para o entendimento do ser docente e do seu compromisso com o processo de autoeducação de cada pessoa em sala de aula. Conhecer o outro é entender as diferenças e as diversidades que formam o ser humano. A escola precisa compreender que cada pessoa tem a sua individualidade e, com ela, contribuirá de forma peculiar no processo de ensino-aprendizagem.
Referências
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Publicado em 01 de novembro de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
FAM, Antônio Eustáquio de Oliveira. A escola e a distante formação de docentes: o que necessita (auto)conhecer para entender suas realidades? Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 41, 1 de novembro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/41/a-escola-e-a-distante-formacao-de-docentes-o-que-necessita-autoconhecer-para-entender-suas-realidades
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