Educação Matemática: a transposição do Ensino Fundamental para o Médio dos estudantes do campo
Isadora Morgana Medeiros Braga
Licencianda em Matemática (IFMG - câmpus São João Evangelista)
Milene Luzia Barroso
Licencianda em Matemática (IFMG - câmpus São João Evangelista)
Sandra Regina do Amaral
Doutora em Educação (UFU), professora do IFMG - câmpus São João Evangelista
A educação do campo necessita de uma prática educativa flexível que favoreça a aproximação entre os saberes escolares e as vivências dos estudantes. Apesar de já amparado por diretrizes oficiais, que reconhecem que o campo é um território de possibilidades e que cabe à Educação favorecer a ligação com as condições de existência social, o modo de ver e fazer educação, na maioria das vezes não valoriza a cultura local.
Percebe-se que mesmo no campo algumas escolas abrem mão de constituir-se do campo, porque não se refere apenas ao espaço físico e sim à construção de identidade por meio de prática educativa que estabeleça uma relação respeitosa com os saberes dos estudantes, considerando assim a realidade concreta e a experiência social. Não se trata de limitar o fazer educativo às condições de existência, mas de, a partir dela, de forma respeitosa, problematizar e tornar possível a decodificação crítica da realidade.
O interesse pela temática surgiu da vivência e observação das dificuldades dos estudantes advindos de zonas rurais, principalmente no curso técnico em Manutenção e Suporte em Informática, diante da adaptação e uso de equipamentos até então não familiares, que trouxeram o indicativo de que, ao cursar Ensino Médio no Instituto Federal de Minas Gerais - câmpus São João Evangelista (IFMG/SJE), a cultura do campo trazia desvantagens na aquisição de alguns conhecimentos, por dificuldades técnicas com os novos equipamentos, pela necessidade de residir no alojamento e manter-se distante da família, pelo distanciamento pedagógico das atividades propostas com a realidade do campo.
Defende-se então que uma prática dialógica que garanta a relação entre conteúdo e vivência aproxima os saberes escolares das particularidades de cada grupo social e favorece a escuta e o acolhimento, que faz com que o estudante se sinta mais seguro, capaz e certo de suas potencialidades; favorece assim o aprendizado, principalmente daqueles conhecimentos que, ao se mostrarem globalizados, tornam-se desinteressantes e inúteis, como acontece com alguns conceitos matemáticos. Entende-se, em conformidade com a Etnomatemática, que é preciso reconhecer que cada cultura tem sua maneira de lidar com os problemas do cotidiano.
Definiu-se então como questão norteadora do estudo: como tem sido a trajetória dos estudantes advindos do campo na disciplina de Matemática? Apresenta-se como hipótese que eles possuem bom desempenho nas áreas de Exatas durante o Ensino Fundamental, pela proximidade geográfica (com a família), afetiva (com colegas e professores) e pedagógica (com a metodologia e recursos), mas que, ao ingressarem no IFMG/SJE, encontram dificuldades no aprendizado diante das mudanças nos diferentes aspectos.
Estabeleceu-se como objetivo geral analisar a trajetória dos estudantes do Ensino Médio do IFMG/SJE advindos do campo na disciplina de Matemática. Para tanto, foram objetivos específicos:
1) Estabelecer critérios de análise para conhecer a trajetória dos estudantes no Ensino Fundamental II e 1º ano do Ensino Médio, na disciplina de Matemática;
2) Identificar entre os estudantes do Ensino Médio quais são advindos da zona rural;
3) Correlacionar as dificuldades e facilidades de aprendizagem de conceitos matemáticos, a partir da percepção dos estudantes.
Referencial teórico
O termo educação do campo passou a ser utilizado nos últimos 20 anos para delimitar “um território de conhecimentos que está sendo construído para que se possa compreender o mundo desde suas raízes” (Souza, 2012, p. 15), em prol de uma educação flexível e contextualizada, permeando assim uma discussão que perpassa os movimentos camponeses, mas também as universidades, secretarias municipais, estaduais e Ministério da Educação, responsáveis pela regulamentação e/ou implementação de políticas que favoreçam uma educação que aproxima o estudante de sua cultura e vivência.
De acordo com as Diretrizes para a Educação Básica nas Escolas do Campo (Brasil, 2001, p. 7), na legislação brasileira a educação do campo é tratada como educação rural e “incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas”. Nessa perspectiva, o campo, mais que um espaço não urbano, é um território de possibilidades, podendo dinamizar a ligação dos humanos com suas condições de existência social.
Como explica Fernandes (1999, p. 65), cabe à escola do campo defender “os interesses, a política, a cultura e a economia da agricultura camponesa, que construa conhecimentos e tecnologias na direção do desenvolvimento social e econômico dessa população”, o que torna sua localização secundária. O fundamental é a garantia de uma educação voltada às necessidades dos indivíduos advindos de determinada área, porque ela está muito mais relacionada ao tratamento da informação, com questões contextualizadas que abrangem a realidade do campo e o cotidiano desses cidadãos, do que com o espaço, com o fato de a instituição formadora estar localizada ou não no campo.
Nesse sentido, vale evidenciar que há diferença entre escola do campo e no campo, sendo a grande diferença entre elas o reconhecimento dos indivíduos não apenas com o espaço físico (no campo), mas com a identidade (do campo). Apesar de muitas escolas terem suas estruturas físicas no espaço rural, desenvolvem uma metodologia urbana (Justina; David; Folmer, 2008), perdendo o potencial interdisciplinar, caracterizado pela diversidade cultural, social e econômica do campo (Souza, 2012). Em outras palavras, há escolas que, mesmo no campo, abrem mão de se constituir do campo em sua forma de ver e fazer educação.
Freire (1996) nos convida a pensar e assumir não só o dever de respeitar os saberes dos educandos (principalmente das classes populares) como também dialogar sobre a realidade concreta e a razão de ser desses saberes, evidenciando a necessidade de certa intimidade entre os saberes escolares e a experiência social. Nesse sentido, o autor destaca a importância do papel do educador, que nunca passa despercebido pelos educandos, para que estes se sintam seguros, capazes, confiantes, certos de suas possibilidades e possam tentar superar a maneira ingênua de inteligir o mundo, tornando-se mais curioso, crítico e criativo.
Sem perder de vista a necessidade da dignidade da prática docente, Freire (1996, p. 38) reforça a necessidade da escuta e do acolhimento por parte do educador, que muitas vezes desconhece o valor de seus gestos; Freire defende então que “o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente lido, interpretado, escrito e reescrito”, de modo a garantir entre educador e educandos uma relação solidária, ampliando possibilidades de aprendizagem democrática na escola. Mas se, ao contrário, esse professor desrespeitar a leitura de mundo do educando (que revela a inteligência de sua cultura) e se mantiver elitista e antidemocrático, golpeia, mesmo sem contato físico, seu aluno e acaba prejudicando seu aprendizado.
Entende-se assim, como necessário o diálogo entre conteúdos e vivências, no intuito de promover uma aproximação com as especificidades de determinado grupo social. “A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados” (Freire, 2002, p. 69); por meio dela é possível (re)descobrir-se como “sujeito instaurador desse mundo de sua experiência” (Freire, 1987, p. 15), mas para isso é preciso problematizar e decodificar criticamente tal realidade.
Trata-se de um processo no qual os conhecimentos matemáticos têm relevante significado, afinal os instrumentos materiais e intelectuais essenciais para elaboração de representações dessa realidade que constitui a cultura “incluem, dentre outros, sistemas de quantificação, comparação, classificação, ordenação e linguagem” (D’Ambrosio, 2012, p. 343). Evidencia-se então a necessidade de reconhecer a importância das contribuições da cultura local, bem como de incorporá-las às perspectivas atuais de educação, instaurando uma nova era, que abre possibilidades para um conhecimento planetário e não fragmentado, diferente daquele imposto pela globalização, que trouxe distanciamento e desvalorização da cultura local.
D’Ambrosio (2012, p. 342) instituiu, na busca de “entender o fazer e o saber matemático de culturas marginalizadas”, o Programa Etnomatemática. Sua ideia central é o “reconhecimento de que diferentes culturas têm maneiras diferentes de lidar com situações e problemas do cotidiano e de dar explicações sobre fatos e fenômenos naturais e sociais” (D’Ambrosio, 2018, p. 189), o que levou ao entendimento de que a Matemática escolar que foi globalizada originou-se da Etnomatemática da ampla região do Mediterrâneo e seu entorno e acabou por instituir um currículo obsoleto, desinteressante e inútil a outras culturas, revelando assim o perverso processo de aculturação (D’Ambrosio, 2019).
A Etnomatemática, assim como a modelagem matemática e o uso de tecnologias digitais são citadas por Forner, Oechsler e Honorato (2017) como tendências que surgiram na Educação Matemática brasileira na tentativa de discutir e analisar o processo de ensino-aprendizagem de conceitos matemáticos. Os autores, apoiados na perspectiva freiriana, destacam que através da educação é preciso instituir uma formação na qual o educando “seja capaz de se transformar e transformar o mundo que o rodeia, sendo a Matemática uma ferramenta a qual contribui para esse processo de construção do cidadão” (Forner; Oechsler; Honorato, 2017, p. 10).
D’Ambrosio (2018) discute a implementação de um currículo mais adequado às realidades e destaca ainda a necessidade de transpor a formação deficiente de professores para uma mudança nos rendimentos escolares, favorecendo assim que a escola se constitua como espaço de socialização e crítica do que é observado, ampliando o sentido da vida cotidiana, favorecendo o pensamento autêntico e a criatividade em lugar da instrução. O autor destaca ainda que os problemas matemáticos deveriam ser contextualizados a partir do cotidiano, mas que muitos professores elaboram questões artificiais e descontextualizadas que privilegiam o ato mecânico da repetição.
Recomenda-se então a recuperação de valores culturais locais para redução da ansiedade matemática, reconhecida por D’Ambrosio (2018) como um dos responsáveis pelo mau desempenho de alguns estudantes. Propõe-se, então, a efetivação de um processo de escolarização que valorize a criatividade e as raízes culturais do estudante que compõem sua identidade; caso contrário, se tornará uma farsa e produzirá exclusão (D’Ambrosio, 2019).
Para Santana (2020), a exclusão também é produzida quando a educação se mostra anacrônica frente às transformações sociais e conduz processos pedagógicos conteudistas, mecânicos e transmissivos. O autor faz alusão ao advento da internet, que ressignificou a interação social e favoreceu novas experiências e vivências, que por anos foram negligenciadas pela educação, mas que em 2020, diante de um cenário pandêmico, no qual as escolas foram fechadas, passou a ser o principal meio de comunicação, instaurando um novo processo de ensino e novas presencialidades.
Nesse sentido, pode-se dizer que a pandemia da covid-19 e a necessidade de isolamento físico revelaram novas possibilidades, mostrando o potencial de adaptação das sociedades a novos modos de viver; mas, por outro lado, também evidenciaram um processo discriminatório por tornar explícito que tal cenário é “mais difícil para uns grupos sociais do que para outros” (Santos, 2020, p. 15), expondo as fragilidades sociais e educativas da humanidade e ao mesmo tempo tornando o momento propício para resgatar “a compreensão freiriana de que a prática pedagógica não pode ser mera transferência de conhecimento, mas deve permitir a construção de contextos para a sua própria produção ou construção” (Santana, 2020, p. 59).
Nesse sentido, não haveria lugar para uma Matemática complexa e distante da realidade, focada em aspectos meramente conteudistas. Preconiza-se então, como apontam Forner, Oechsler e Honorato (2017, p. 12), “o diálogo e o uso da Matemática para ler o mundo que cerca o indivíduo, podendo, a partir de reflexões, modificar a sociedade à sua volta”; é preciso entender que a Matemática está vinculada às situações vividas em contextos escolares e não escolares e que, ao tomar como ponto de partida os conhecimentos prévios e as experiências vividas fora da escola, para a partir dela dar sentido ao que é vivenciado na escola, a aprendizagem ganha significado, mas alguns professores preocupam-se mais com a estrutura física e os recursos de que dispõe do que em ressignificar sua prática com vistas a efetivar um ensino contextualizado a partir da realidade dos estudantes.
Campos (2012), em seu artigo “Saberes matemáticos produzidos pelos produtores rurais da comunidade camponesa em suas práticas cotidianas”, tem dentre as principais referências a Etnomatemática, a partir da qual o autor traz reflexões sobre a Matemática presente no contexto cotidiano de um grupo de produtores rurais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na tentativa de compreender os saberes produzidos e sua incorporação ou não no currículo escolar.
Para destacar os saberes matemáticos presentes nas práticas diárias no contexto da vida social, profissional ou doméstica, Campos (2012) apresenta a fala dos entrevistados na linguagem própria de cada um, por meio da qual é possível identificar conceitos relacionados a medição de terra, negociação de compra e venda de produtos agropecuários, cálculos de valor e de troco presentes em situações diversas, uso de cálculo mental e escrito, estimativa, arredondamento, decomposição e, quando necessário, uso da calculadora. Mas o autor conclui que tais saberes são menosprezados por não serem incorporados pelo currículo escolar e chama a atenção para a necessidade de valorização das diferenças culturais e seus saberes matemáticos.
O artigo de Auarek e Viseu (2017), intitulado “Formação inicial do professor de Matemática para escolas do campo: ‘olhares’ da comunidade campesina” teve por objetivo identificar, a partir dos trabalhos de conclusão de curso, as percepções de duas licenciandas do curso de Educação do Campo (LeCampo) sobre os saberes produzidos na comunidade campesina na busca de explicação e significado para os fenômenos relacionados ao dia a dia, a cultura e os saberes matemáticos presentes nas comunidades.
Os resultados foram organizados por Auarek e Viseu (2017) em três categorias; a primeira delas é o contato com a comunidade e a valorização da cultura, que favoreceua crítica da realidade e o ensino de Matemática. A segunda compreende as culturas matemáticas presentes nas práticas cotidianas, na qual identificam conceitos que não foram incorporados no currículo escolar, como proporções, estratégias de contagem e de comparação, medidas de áreas e sua correspondência com volume. A terceira refere-se ao reconhecimento e à afirmação das identidades de professoras do campo que lutam por direitos e pelo reconhecimento da Matemática na cultura e na escola do campo.
O artigo de Formigosa, Silva e Oliveira (2020), “O ensino de Matemática com jovens e adultos em uma escola do campo na Amazônia”, explora o relato oral de discentes ainda não alfabetizados. Um desdobramento interessante apresentado pelo estudo é o motivo do acesso tardio à Educação Básica, sendo o principal a ausência de escolas próximas a suas residências ou em cidades vizinhas. Por consequência, os autores apontam que os estudantes da educação do campo, em loco EJA, têm sobrevivido por iniciativa própria, pois dentre as várias problemáticas tem-se que o campo acaba por não receber a devida atenção dos governos e suas políticas públicas.
Formigosa, Silva e Oliveira (2020) destacam como fator positivo o fato de os estudantes da EJA conseguirem relacionar os conteúdos de forma direta às vivências e necessidades cotidianas, o que torna a Matemática um conteúdo útil e indispensável, mas concluem que há um pequeno percentual de estudantes da educação do campo na escola, existindo assim uma demanda específica não atendida de acesso e destaca a necessidade de maior flexibilização para a continuidade dos estudos.
Por fim, o artigo de Vargas e Bisognin (2020), intitulado “Aspectos curriculares da educação do campo e a modelagem matemática: relações possíveis”, vem lembrar que essa modalidade de educação depende de leis específicas que variam de um estado para o outro, mostrando-se mutável diante da diversidade cultural encontrada no território brasileiro, que abriga cerca de 74 mil escolas do campo. Os autores chamam a atenção para o fato de apenas 1% das pesquisas realizadas no Brasil ser acerca de educação do campo, o que não condiz com a dedicação e necessária reflexão de um fazer docente que não conta com livros didáticos específicos e deve ser construído a partir das vivências.
Vargas e Bisognin (2020) propõem, assim, métodos de modelagem, por montar toda uma cronologia dos conteúdos em interlocução com o cotidiano dos discentes, favorecendo a transformação dos saberes em modelo matemático, uma construção interdisciplinar que se faz no diálogo, com autonomia e flexibilidade na aprendizagem. A resolução de problemas entra nessa discussão justamente com esse viés de trazer problemas do cotidiano para a construção do conhecimento. Os autores concluem que a educação do campo possui um currículo limitado, o que exige dos professores compromisso, uso da criatividade e certo grau de otimismo na escolha da metodologia, na organização didática e na adequação à realidade do campo.
Procedimentos metodológicos
Trata-se de um estudo do tipo exploratório e de natureza quantiqualitativa, que, por ter como foco a trajetória dos estudantes, explora aspectos subjetivos do processo de investigação científica em prol do entendimento de algumas particularidades dos participantes, permitindo tanto a compreensão quanto a classificação de alguns processos dinâmicos (Diehl, 2004), favorecendo também a produção de interpretações sobre a situação sob estudo por parte dos próprios participantes (Cassell; Symon, 1994). Por outro lado, para facilitar a compreensão de algumas situações comparativas, também opera com dados percentuais.
Definiu-se como participantes 32 estudantes (dos quais 12 se autodeclararam da zona rural) regularmente matriculados no 2° ano do Ensino Médio Técnico do IFMG/SJE em 2021, nos cursos de Manutenção e Suporte em Informática; Nutrição e Dietética; e Agropecuária, que colaboraram ao responder via Google Forms ao questionário estruturado com perguntas em sua maioria objetivas, fornecendo os dados necessários à análise de suas trajetórias a partir de suas percepções a respeito da Educação Matemática e sua transposição do Ensino Fundamental II para o Médio. Para elaboração do instrumento, estabeleceram-se critérios a partir do que os autores que compõem a fundamentação teórica consideram essenciais a uma Educação Matemática de qualidade e os fatores que impactam positiva e negativamente tal processo.
Apresentação e discussão dos resultados
Os participantes tiveram uma transposição do Ensino Fundamental para o Ensino Médio um pouco mais atribulada que o normal; afinal, vivenciaram mudanças na forma de fazer educação decorrente da pandemia da covid-19. As três primeiras perguntas foram destinadas a identificar o local de origem, se era considerado zona rural e nome da escola na qual fez o 9º ano do Ensino Fundamental. Identificaram-se, entre os 32 estudantes participantes do 2º ano do Ensino Médio, doze advindos da zona rural, conforme cidades e escolas representadas na Figura 1.
Figura 1: Representação das cidades e escolas dos estudantes oriundos do campo
Na questão seguinte, “Como foi a decisão de estudar no IFMG?”, de modo geral os participantes apresentaram mais de uma motivação para estudar no IFMG/SJE; além da iniciativa própria, foi possível identificar nas respostas de nove deles, o incentivo de pais/responsáveis (seis participantes) e influência da escola anterior (cinco), superando o total porque alguns assinalaram ambos os motivos. Isso nos leva a afirmar que, assim como a família, as experiências escolares influenciam significativamente a escolha dos estudantes quanto ao avanço dos estudos numa instituição federal.
Quanto aos cursos, há predominância de escolha pelo Técnico em Agropecuária e Técnico em Nutrição e Dietética, o que se justifica, em parte, por maior proximidade com a realidade do campo e seus equipamentos e, consequentemente, evitamento ou falta de interesse pela área da informática, pouco vivenciada nas escolas do campo.
Quando perguntado se em suas trajetórias haviam tido reprovação na disciplina de Matemática, nenhum dos 32 respondentes informou ter acontecido; no entanto, três foram reprovados no 1º ano do Ensino Médio, dentre eles dois autodeclarados do campo, revelando um percentual de reprovação de 5% dentre os estudantes advindos da zona urbana e aproximadamente 17% dos advindos da zona rural.
Na questão seguinte, foi pedido para levarem em consideração os resultados nas avaliações e perguntado se o desempenho na disciplina de Matemática no Ensino Médio havia diminuído, aumentado ou se mantido. Em média, 64% dos participantes tanto da zona urbana quanto rural declararam baixa no desempenho, o que evidencia que ambos os grupos tiveram dificuldade de aprendizagem dos conceitos matemáticos; todavia, o impacto mais negativo, chegando à reprovação, foi maior entre os estudantes advindos do campo.
Quando perguntados sobre o aprendizado dos conceitos matemáticos no Ensino Fundamental, os doze participantes advindos do campo elencaram como principais aspectos positivos o fato de se sentirem seguros, capazes e confiantes no desenvolvimento das atividades (67%) e a relação professor-aluno, que favorecia o diálogo e o sentimento de acolhimento (50%). Mas quando os participantes refletem sobre esses mesmos aspectos em relação ao Ensino Médio, na questão seguinte, o percentual cai, respectivamente, para 33% e 17%. Isso nos leva a afirmar que, à medida que avançam nos estudos, esses estudantes se sentem menos seguros, capazes, confiantes e acolhidos, estabelecendo uma relação de menor diálogo com o professor, indo assim na contramão do que seria uma educação de qualidade na perspectiva de Freire (1996; 2002).
Apesar disso, na questão “Considerando seu aprendizado dos conceitos matemáticos no IFMG/SJE, quais aspectos considera positivos?", o principal aspecto apontado por 67% dos participantes foi “Tenho uma educação de qualidade”, ao considerarem o aprendizado dos conceitos matemáticos no Ensino Médio. Uma contradição que se entende em parte justificada pelo contexto da instituição federal que, segundo os estudantes, ofereceu projeto de reforço com monitorias (50%) e possui equipamentos adequados (33%); aspectos avaliados como existentes nas escolas do Ensino Fundamental por apenas 17% dos participantes.
Vale destacar que nessa mesma questão havia também as opções “Questões problema contextualizadas à realidade do campo” e “Valorizar a curiosidade, criticidade e criatividade em lugar da instrução”. Apenas 8% dos participantes oriundos do campo assinalaram como importante que as questões dos problemas matemáticos sejam contextualizadas à realidade do campo e 17%, de valorizar a curiosidade, criticidade e criatividade em lugar da instrução, indo inicialmente na contramão do que propõe D’Ambrosio (2018; 2019) ao defender o programa Etnomatemática.
Acredita-se que tais resultados revelam dificuldade com o entendimento dos termos utilizados, que se aproximam de um discurso pedagógico, já que mais adiante, quando pedido para assinalar os aspectos que impactam negativamente seu processo de aprendizagem, em consonância com o respondido, as opções “ensino elitista com atividades distantes da realidade do campo” e “questões matemáticas descontextualizadas, que privilegiam o ato mecânico da repetição” estão entre as menos citadas (8%), seguidos por “distanciamento e desvalorização da cultura do campo” e “Matemática complexa e distante da realidade cotidiana”, que de certa forma reforçam a mesma problemática (25%). Entretanto, “conceitos matemáticos sem aplicação em problemas da realidade” foi apontado como prejudicial por 50% dos participantes, o que confirma o aspecto abstrato da Matemática.
Quando perguntados sobre os impactos negativos, foram orientados a desconsiderar o processo atual de Educação (tempos de pandemia) na busca por uma comparação mais igualitária entre a realidade na qual cursou o Ensino Fundamental com a experiência inicial do Ensino Médio. Mas os dados da pesquisa nos levam a crer que o processo educativo em desenvolvimento no cenário pandêmico interferiu nas respostas, considerando que “manter-se distante da família” foi assinalado por apenas um dos participantes e “falta de organização da minha parte para estudar” por oito, revelando características de um ensino no qual a autonomia do estudante e sua capacidade de organização têm papel primordial para o sucesso da aprendizagem.
Em destaque, como aspecto de maior impacto negativo no processo de aprendizagem, a falta de diálogo e o acolhimento por parte do professor foram elencados por aproximadamente 67% dos participantes. Fazendo uma reflexão a partir dos princípios freirianos, a educação que não se faz dialógica (a bancária) entende o aluno como mero depositário, receptor passivo; por outro lado, a educação problematizadora potencializa o respeito aos saberes dos educandos, aproxima os saberes escolares da experiência social, reconhece a necessidade da escuta e do acolhimento. Os estudantes ainda não percebem que há relação entre o professor antidemocrático e a educação elitista, apesar de apontarem que algo está errado quando não entendem a utilidade do que se aprende em Matemática.
Por fim, fechou-se o questionário com a pergunta: “Em que você considera que a pandemia veio facilitar e/ou dificultar seu aprendizado?”. Dos doze participantes, dois não se manifestaram e os outros dez falaram de suas dificuldades; dentre elas, as mais citadas foram dificuldade de concentração e pouco contato com o professor, revelando prejuízos de uma educação desenvolvida durante a pandemia.
Considerações finais
Discutir sobre educação do campo ainda é um grande desafio; como futuros professores de Matemática, necessitamos compreender a realidade escolar dos estudantes oriundos dos diferentes contextos. Ao buscar relacionar as dificuldades e as facilidades de aprendizagem de conceitos matemáticos, com base na percepção dos estudantes, chamou-nos a atenção a defasagem no desempenho de todos, levando alguns à reprovação, mas principalmente os estudantes advindos do campo.
Como sugerem os dados, essa queda nos resultados está vinculada à redução em quesitos como sentimento de segurança e confiança ao desenvolver as atividades, assim como menor acolhimento e diálogo quando se pensa na proximidade entre professor e aluno, o que nos leva à defesa de que é necessário evoluir em diferentes aspectos e que um dos possíveis caminhos seja uma Educação Matemática na perspectiva da Etnomatemática, de modo a acolher o estudante e suas vivências e acabar com a predominância de atividades descontextualizadas, que valorizam o ato da repetição.
O mais interessante foi perceber que, apesar dos sentimentos e dificuldades, os estudantes avaliam o ensino vivenciado por eles no Ensino Médio como de qualidade, o que se acredita ser justificado pela qualificação dos professores, pelos recursos e pela estrutura física que a instituição federal tem a oferecer. Enfim, entende-se que esses estudantes têm muitas expectativas quanto à qualidade do ensino e às oportunidades que ela tem a oferecer.
Outro indicativo importante foi a percepção de que a falta de organização para estudar influenciou diretamente e impactou negativamente o desempenho, evidenciando características do ensino remoto emergencial, que acabou por ampliar os desafios e as dificuldades na educação como um todo e na compreensão dos conceitos matemáticos em particular.
Por fim, conclui-se que foi alcançado o objetivo de analisar a trajetória dos estudantes do Ensino Médio do IFMG/SJE advindos do campo na disciplina de Matemática, tomando por base suas percepções a respeito da transposição da Educação Matemática do Ensino Fundamental para a do Ensino Médio. Os participantes mostraram bom desempenho no Ensino Fundamental, escolheram cursos que se aproximam da realidade campesina, mudaram de instituição, estudaram um pouco mais de um mês na instituição e já foram, assim como todos os estudantes e professores, afetados com a pandemia e a educação desenvolvida a partir dela.
Mesmo assim, esses estudantes, apesar da redução nos sentimentos de segurança e confiança, bem como menor acolhimento e diálogo entre professor e aluno e o reconhecimento de que a falta de organização para estudar impactou negativamente no desempenho escolar, mantiveram firmes suas expectativas quanto à qualidade do ensino oferecido e destacaram as oportunidades que a nova instituição tem a oferecer, evidenciando uma nova realidade que trouxe novos desafios e dificuldades para todos e da qual ainda não é possível avaliar os prejuízos.
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Publicado em 01 de novembro de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
BRAGA, Isadora Morgana Medeiros; BARROSO, Milene Luzia; AMARAL, Sandra Regina do. Educação Matemática: a transposição do Ensino Fundamental para o Médio dos estudantes do campo. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 41, 1 de novembro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/41/educacao-matematica-a-transposicao-do-ensino-fundamental-para-o-medio-dos-estudantes-do-campo
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