A gamificação como ferramenta de motivação e engajamento para o ensino das angiospermas

Maria Braulina Baiense de Souza Correa

Mestranda (ProfBio/UERJ), professora na Seeduc/RJ

Débora de Aguiar Lage

Professora adjunta da UERJ, docente do ProfBio/UERJ

Ensinar Botânica tem sido desafiante, pois os estudantes consideram o assunto pouco atrativo pelo excesso de nomenclaturas e a simples memorização de conceitos que ainda caracterizam muitas condutas educativas (Ferreira, 2019). Dessa forma, o ensino restrito à realização de aulas expositivas e descontextualizadas gera distanciamento dos alunos que não veem significado nos conteúdos abordados em sala de aula (Duré et al., 2018). Além disso, a problemática relacionada ao ensino de Botânica envolve a escassez de recursos didáticos diversificados (Amadeu; Maciel, 2014), a dificuldade em conduzir aulas em espaços não formais (Nascimento et al., 2017), além da deficiência na formação acadêmica (Salatino; Buckeridge, 2016), aspectos negativos vivenciados pela maioria dos professores no cotidiano educacional.

Na busca por metodologias de ensino que despertem no estudante maior interesse pelos temas apresentados em Biologia, encontramos na gamificação estratégias inovadoras, criativas e engajadoras para o trabalho em equipe. Segundo Galvão, Santos e Leite (2018), o termo gamificação leva-nos a pensar em usar um jogo pronto para desenvolver atividades no contexto de sala de aula. Entretanto, Alves (2015) explica que a gamificação consiste em se apropriar dos elementos utilizados nos games e instrumentalizá-los, a fim de alcançar objetivos educacionais, promovendo aprendizagem e engajamento de forma lúdica e bem estruturada, porém sem desprezar o mundo real.

De acordo com Silva (2019), é necessário seguir alguns critérios que caracterizam uma estratégia gamificada:

  • Missão bem definida;
  • Sistema de pontuação eficiente com recompensas e feedbacks;
  • Narrativa com conexão e estratégias que façam sentido;
  • Tarefas claras, evidentes e organizadas;
  • Criatividade;
  • Reações emocionais;
  • Criação de um sistema de pontuação;
  • Inclusão de níveis ou fases;
  • Possibilidade de personificação (criação de avatar).

Segundo Alves (2015), pensava-se que somente crianças e jovens se interessariam pelos games. Entretanto, estudos apontados por McGonical (2011) revelaram que 69% dos chefes de família jogam videogames, 97% dos jovens jogam no computador e videogames, 40% de todos os jogadores são mulheres e 1 em cada 4 jogadores tem mais de 50 anos. Sendo assim, podemos concluir que o interesse pelos games permeia uma faixa etária muito mais abrangente do que se pensava.

Dessa forma, usar os elementos dos games pode ser uma estratégia educacional atraente e diversificada, pois o prazer proporcionado pelos jogos torna o ato de aprender divertido e desejado, independentemente da faixa etária, sexo ou tipo de personalidade (Alves, 2015). Assim, apesar de emergente, o uso da gamificação poderá favorecer a aquisição de conceitos com base no envolvimento dos estudantes em atividades reais, revelando-se uma proposta para o aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem (Fardo, 2013).

Usando a gamificação como proposta educacional, Silva (2019) demonstrou em seu trabalho o estímulo à criatividade e ao engajamento das equipes para cumprir as metas propostas. Segundo Sasseron e Carvalho (2011), o trabalho colaborativo visando à solução de questões propostas pelo professor constitui uma importante estratégia de interação entre os estudantes, possibilitando uma abordagem investigativa sobre determinado conteúdo. Sendo assim, um dos pontos fundamentais da gamificação é a resolução de problemas por meio de equipes, em que os sujeitos aplicam a criatividade, o dinamismo e a competição.

Diante do exposto, elaborou-se uma estratégia didática gamificada para o estudo das angiospermas, a fim de motivar os estudantes e contribuir para o processo de ensino-aprendizagem de Botânica, um conteúdo bastante negligenciado na Educação Básica. Nesse caso, o estudo das angiospermas será realizado a partir de uma abordagem evolutiva, com destaque para as características morfológicas das estruturas reprodutivas e para os aspectos ecológicos relacionados à polinização e à dispersão de sementes.

Sujeitos da pesquisa

O presente estudo foi desenvolvido com estudantes do Nova EJA de uma escola pública estadual localizada na cidade Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Estado do Rio de Janeiro. Para a realização da estratégia gamificada, a turma foi dividida em equipes contendo de quatro a cinco alunos.

O uso da gamificação para o ensino das angiospermas teve como objetivo a abordagem sobre os aspectos evolutivos do grupo, como a diversidade morfológica das flores e as questões ecológicas relacionadas à polinização e à dispersão de sementes. Esses conteúdos integram a segunda competência específica de Ciências da Natureza e suas tecnologias, presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Médio, que possui como uma das habilidades a ser alcançada pelos estudantes “Analisar as diversas formas de manifestação da vida em seus diferentes níveis de organização, bem como as condições ambientais favoráveis e os fatores limitantes a elas, com ou sem o uso de dispositivos e aplicativos digitais” (Brasil, 2018, p. 557).

Desenvolvendo a gamificação

O trabalho foi conduzido utilizando metodologia com abordagem qualitativa, a qual “tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento” (Lüdke; André, 1986, p. 11).

A proposta de gamificação foi delineada a partir das seguintes etapas:

(a) elaboração de uma narrativa;

(b) três missões com metas bem definidas;

(c) determinação de um sistema de pontos e regras, além da disponibilização de feedback para que as equipes possam acompanhar o seu progresso na atividade. Todas as ações propostas foram desenvolvidas remotamente utilizando as plataformas Google Classroom e Google Meet para as atividades assíncronas e síncronas, respectivamente.

Narrativa da gamificação

Com o intuito de envolver e orientar os estudantes na estratégia gamificada, foi elaborada uma narrativa para fundamentar o desenvolvimento das atividades. Dessa forma, após a apresentação da proposta, a gamificação teve início a partir da exposição da narrativa aos estudantes em um edital de convocação (Figura 1).

Edital de convocação

            Uma equipe de exploradores foi enviada pelo governo de Angionópolis a uma “cidade perdida”, sepultada sob densa floresta tropical. Fotos de satélite indicavam a existência de árvores muito altas e de tronco espesso, que se destacavam entre as demais encontradas na região. Nada se sabe sobre essa cidade, o mistério paira no ar e lendas locais aterrorizam os moradores de Angionópolis.

            Ao chegar ao local, a equipe verificou a presença de estranhos vegetais que pareciam ter olhos nas extremidades dos galhos. Não observaram a presença de flores e de frutos atrativos, mas os insetos que visitavam essas flores eram extremamente coloridos e pequenos. Havia também um tipo de fungo que se espalhava em torno das imensas árvores. Um cheiro de “carne podre” era trazido pelo vento, mas a equipe não encontrou nenhum tipo de animal em decomposição.

            Devido à dificuldade dos exploradores para identificar a vegetação presente na “cidade perdida”, convocamos jovens estudantes de unidades escolares públicas situadas em Angionópolis para participarem do processo seletivo destinado ao preenchimento de cinco vagas para o cargo de monitores de estudos em Botânica, com atuação no Centro de Pesquisas em Angiospermas.

            Para aprovação no processo seletivo, os estudantes deverão cumprir as metas presentes em quatro missões específicas. A equipe que alcançar a maior pontuação será selecionada.

Figura 1: Edital de convocação para seleção dos monitores de Botânica

Missões e metas

A seleção dos estudantes para a monitoria de Botânica foi condicionada ao cumprimento de três missões contendo, cada uma, duas metas a serem atingidas durante o período de atividades assíncronas. Todas as metas estabelecidas estavam relacionadas à diversidade da morfologia floral, à coevolução entre insetos e plantas e às diferentes estruturas para dispersão de sementes, fatores fundamentais para o sucesso adaptativo das angiospermas. As missões e suas respectivas metas estão no Quadro 1.

Quadro 1: Missões e metas a serem cumpridas pelos estudantes

Missões

Metas

Missão 1

“Conhecendo as equipes”

  • Os estudantes deverão escolher um nome para a sua equipe e fazer uma postagem no Google Classroom para apresentação da equipe, contendo uma breve descrição do perfil dos seus integrantes.

Missão 2

“Big brother das flores”

  • Com o uso de celulares, os alunos deverão fotografar diferentes tipos de flores e produzir um relatório ilustrado com as seguintes observações: as flores eram pequenas ou grandes? Eram coloridas? Você observou a presença de insetos próximo às flores?
  • Postar o relatório noGoogle Classroom.

Missão bônus

Ophrys insectifera: meu engano sexual”

  • Realizar uma pesquisa sobre o nome da missão bônus e sobre a adaptação das flores e dos insetos à polinização.
  • Postar o resultado da pesquisa no Google Classroom.

Missão 3

“Sendo eu manga ou carrapicho, quem me leva?”

  • Assistir a um vídeo indicado pelo professor, de cerca de 10 minutos, (https://www.youtube.com/watch?v=-jr43bgcXuQ) e elaborar um mapa mental ou conceitual sobre os diferentes tipos de sementes e seus respectivos dispersores.
  • Postar o resultado da pesquisa no Google Classroom.

Sistema de pontos e regras da gamificação

Cada missão deveria ser realizada dentro de prazo determinado e o sucesso da sua execução estava associado a uma pontuação específica. O sistema de pontuações incluiu a avaliação do professor em relação às atividades apresentadas pelas equipes no Google Classroome no momento dos encontros síncronos.

A conquista de pontos foi orientada por regras que tanto atuaram na definição das ações que garantem pontos como também limitaram possíveis excessos dos estudantes durante a gamificação. Dessa forma, o professor é o responsável por garantir o cumprimento das regras e manter uma tabela na forma de ranking ou mapa do progresso, mostrando a evolução das equipes durante o desenvolvimento da atividade. A pontuação referente a cada atividade e a regra associada a ela encontram-se no Quadro 2.

Quadro 2: Sistema de pontos e de regras da atividade gamificada

Atividade

Pontuação

Regra associada

Missões cumpridas no prazo determinado

20 pontos

Após a execução da primeira meta da Missão 1, cada missão só poderá ser finalizada após a realização da missão anterior.

Missões cumpridas fora do prazo determinado

10 pontos

Somente serão pontuadas as missões executadas com até dois dias de atraso.

Missão bônus

10 pontos

Só poderá ser realizada após a execução da Missão 2.

100% de presença nos encontros síncronos

até 20 pontos

Cada integrante ausente acarretará a perda de 20 pontos pela equipe.

Participação ativa nos momentos de discussão com a turma

até 20 pontos

O professor será responsável por decidir a relevância da participação dos estudantes.

Como sistema de recompensas, a pontuação final obtida pelas equipes na atividade gamificada será utilizada para compor a nota da avaliação sobre Botânica. Dessa forma, os alunos da equipe que alcançar o primeiro lugar ganharão três pontos, aqueles que ficarem em segundo lugar, dois pontos e, a partir do terceiro lugar, os estudantes levarão um ponto para a prova.

Resultados e discussão

A apresentação da atividade gamificada e a narrativa para o engajamento dos estudantes foram realizadas no primeiro momento da aula assíncrona. As equipes tiveram uma semana para o cumprimento das duas primeiras missões, que consistiram na apresentação das equipes e na realização do relatório sobre morfologia floral ilustrado com fotografias produzidas pelos próprios estudantes. Caso a equipe tivesse interesse em executar a missão bônus, esta também deveria ser realizada nesse mesmo período.

No primeiro momento síncrono, o professor iniciou a aula apresentando aos alunos os resultados obtidos pelas equipes no cumprimento das missões 1 e 2 e da missão bônus. Em seguida, o docente instigou os estudantes com as seguintes perguntas: qual a importância das flores para as angiospermas? Por que há tantos tipos de flores? Quais as principais diferenças observadas? Existe alguma relação entre as flores e os animais? Dessa forma, após a discussão das hipóteses levantadas pelas equipes, o professor, utilizando uma apresentação de slides, exibiu imagens de diferentes tipos de flores e agentes polinizadores, estimulando os alunos a fazer associações. Durante a atividade, o docente ressaltou a importância ecológica da relação inseto-planta e de que forma o uso indiscriminado de agrotóxicos pode prejudicar a produção agrícola no país. Ao final dessa etapa, foi ratificada a importância da aquisição de flores e frutos para o sucesso evolutivo e a irradiação adaptativa observada no grupo das angiospermas.

A última missão da estratégia gamificada foi realizada durante o segundo momento assíncrono, quando as equipes tiveram que elaborar um mapa mental ou conceitual sobre a diversidade de sementes e seus respectivos agentes dispersores. Após o prazo estabelecido para a execução da missão, os estudantes participaram de um segundo momento síncrono com toda a turma e o professor.

O início desse encontro foi marcado pela explicação do docente sobre as diferenças entre um mapa mental e um mapa conceitual. Dessa forma, utilizando uma apresentação de slides contendo diferentes exemplos, foi explicado aos discentes que o mapa conceitual consiste em uma ferramenta que busca representar relações significativas entre os conceitos (Novak, 2000), em que os conceitos mais gerais devem situar-se na parte superior e aqueles mais específicos e menos inclusivos, na parte inferior (Cervantes; Fujita, 2012). Os mapas mentais constituem representações das imagens mentais que buscam externalizar o processo cognitivo humano das conexões que ocorrem no cérebro (Lima; Manini, 2016).

Posteriormente, cada equipe apresentou seu mapa mental ou conceitual sobre a relação semente-agente dispersor, oportunizando ao professor discutir com os alunos a importância dessa relação para a adaptação e o predomínio das angiospermas em diferentes ambientes. Durante esse momento, o professor instigou os alunos com perguntas como: todos os frutos são saborosos? Qual a importância dos frutos? Dessa forma, a partir das hipóteses levantadas pelas equipes, foi realizada uma discussão com os alunos, em que o professor atuou como mediador, explicando a relevância dos frutos como importante aquisição evolutiva para as angiospermas.

A utilização de estratégias gamificadas apresenta-se como metodologia com grande potencial para favorecer o processo de ensino-aprendizagem de diversos conteúdos, especialmente no que tange ao ensino de Botânica, área da Biologia que provoca sentimento de repulsa em muitos alunos e em professores. Toda essa potencialidade está associada ao fato de a gamificação contribuir no aspecto cognitivo, promovendo a motivação e o interesse e estimulando a resolução de tarefas; no aspecto emocional, fomentando a curiosidade, a cooperação e a competição; e, no aspecto social, estimulando a interação dos estudantes no ambiente de ensino (Lee; Hammer, 2011).

Nesse contexto, a proposta de gamificação apresentada neste trabalho ressaltou o protagonismo dos estudantes a partir de uma abordagem investigativa. Durante a atividade, os alunos foram engajados na resolução das metas propostas em cada missão, na busca de informações, no planejamento dos relatórios, na proposição de respostas nas aulas síncronas e na explicação e descrição dos resultados obtidos nas pesquisas. Além disso, a estratégia possibilitou grande interação entre os estudantes em todas as etapas, contribuindo para aproximá-los do objeto de estudo e favorecendo uma competição saudável.

Apesar da sua relevância no processo de ensino-aprendizagem, ainda são poucos os trabalhos que abordam o uso da gamificação no ensino de Ciências, com destaque para a pesquisa desenvolvida por Silva (2019), em que a personificação dos grupos com a criação de avatares e a criação de um sistema de recompensas tornou o estudo dos vertebrados menos abstrato e mais atrativo, possibilitando o protagonismo dos estudantes do ensino médio.

Silva et al. (2017) foram ousados e aplicaram a estratégia no Ensino Superior, gamificando toda a disciplina de Bioquímica para os alunos do curso de Biotecnologia da Universidade Federal do Pará. No entanto, as publicações são ainda mais restritas para o ensino de Botânica. Nesse caso, embora alguns artigos apresentem em seus títulos o uso da gamificação como estratégia metodológica, muitos limitam-se à aplicação de jogos didáticos, o que não caracteriza a gamificação. Em pesquisa na literatura, foi encontrada apenas uma monografia de especialização que empregou com sucesso a gamificação para abordagem dos principais grupos vegetais com alunos no Ensino Médio (Santos, 2020).

Considerações finais

O ensino de Botânica a partir de estratégia gamificada apresenta-se como metodologia desafiadora por ser muito diferente das práticas pedagógicas tracionais utilizadas no cotidiano escolar. Diante de tantos problemas que cercam o processo de ensino-aprendizagem, a possibilidade de envolver os estudantes em atividades pedagógicas que estimulem a curiosidade, a investigação, a competição e, ao mesmo tempo, fomentem o protagonismo dos alunos e o trabalho em equipe não pode ser desperdiçada pelos docentes.

Atualmente, apesar de haver uma gama de metodologias ativas de aprendizagem com grande potencial pedagógico, infelizmente a utilização de muitas dessas práticas ainda é bastante limitada diante da realidade vivenciada pelas escolas públicas brasileiras. Nesse contexto, a gamificação surge como uma nova possibilidade de tornar o aluno protagonista do seu aprendizado, uma vez que a aplicação dessa metodologia não necessita de recursos ou tecnologias sofisticadas para que cumpram seu papel na motivação e no engajamento dos alunos no processo de ensino-aprendizagem de um conteúdo.

Por fim, reiteramos a potencialidade do uso de estratégias gamificadas para que possamos superar os diferentes obstáculos que dificultam o processo de ensino-aprendizagem de Botânica e despertar o interesse dos estudantes pelo conhecimento.

Referências

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Publicado em 08 de novembro de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

CORREA, Maria Braulina Baiense de Souza; LAGE, Débora de Aguiar. A gamificação como ferramenta de motivação e engajamento para o ensino das angiospermas. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 42, 8 de novembro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/42/a-gamificacao-como-ferramenta-de-motivacao-e-engajamento-para-o-ensino-das-angiospermas

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