Guia do Educador para o filme "Kiriku e a feiticeira"

Paixão Sessémeandê

Graduando em Pedagogia e membro do Programa de Educação Tutorial (FaE/UEMG)

Marcelo Diniz Monteiro de Barros

Professor da FaE/UEMG e da PUC-MG

Aline Choucair Vaz

Professora da FaE/UEMG

Há, aqui, uma produção do conhecimento que partilha da utopia vista como realismo desesperado, de uma espera que se permite lutar pelo conteúdo da espera; não em geral, mas no exato lugar e tempo em que se encontra. Uma espera que reside como possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos os tempos e lugares, exceto naqueles em que ocorram efetivamente. É este o realismo utópico que preside as iniciativas dos grupos oprimidos que, num mundo onde parece ter desaparecido a alternativa, vão construindo, um pouco por toda a parte, alternativas locais que tornam possível uma vida digna e decente (Gomes, 2002, p. 46).

A produção do Guia do Educador para o filme Kiriku e a Feiticeira nasce do estímulo da construção de uma reflexão crítica, no desenvolvimento de práticas reflexivas antirracistas, no ambiente educacional, de modo a estabelecer um diálogo com a lei 10.639/03 e a Base Nacional Curricular Comum, a BNCC, no Ensino Fundamental. Segundo Brasil (2003), a Lei nº 9.394/96 estipula as bases nacionais de educação, determinando a obrigatoriedade curricular do ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.

A proposta apresentada indica a utilização de dois instrumentos metodológicos, o filme: Kiriku e a feiticeira (1998) e a legislação, que embasa a Política de Educação para as Relações Étnico-Raciais como elementos que dialogam com o que está registrado na BNCC para o Ensino Fundamental nos anos iniciais.

O filme Kiriku e a feiticeira, de Michel Ocelot, é baseado em uma lenda africana sobre o nascimento de uma criança superdotada, ou seja, com altas habilidades. O pequeno Kiriku nasce predestinado a salvar a sua aldeia. A obra permite transitar por diversos níveis de conhecimentos, como a oralidade, as Ciências, a Geografia, a História, as Artes e a relação entre as Humanidades.

Kiriku, por meio de uma escuta ativa, participante e do seu olhar atento ao entorno, pode analisar e conhecer toda a sua história, assim como a do seu povo, sempre na busca por estratégias para sanar problemas que outrora não eram possíveis, devido ao temor da figura da feiticeira Karabá.

A obra de Michel Ocelot permite que se acesse a história, a oralidade e a cultura dos povos do continente africano, fortalecendo a construção da identidade, assim como a propagação da cultura oral pelo mundo.

A BNCC para o Ensino Fundamental nos anos iniciais e a Política de Educação para as Relações Étnico-Raciais

A Base Nacional Comum Curricular é um

documento relevante, pautado em altas expectativas de aprendizagem, que deve ser acompanhado pela sociedade para que, em regime de colaboração, faça o país avançar. Assim como aconteceu na etapa já homologada, a BNCC passa agora às redes de ensino, às escolas e aos educadores. Cabe ao MEC ser um grande parceiro neste processo, de modo que, em regime de colaboração, as mudanças esperadas alcancem cada sala de aula das escolas brasileiras. Somente aí teremos cumprido o compromisso da equidade que a sociedade brasileira espera daqueles que juntos atuam na educação (Brasil, 2018, p. 5).

Trata-se de um documento normativo que estabelece um agrupamento natural e contínuo de conhecimento e não um instrumento curricular, que serve de aparato de organização. É necessário atentar-se para a garantia de direitos para todos os estudantes, em diversos níveis de aprendizagem na educação brasileira nos anos iniciais do Ensino Fundamental, tendo como embasamento teórico a Constituição de 1988, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), dentre outros. Desse modo,

a BNCC do Ensino Fundamental – Anos Iniciais, ao valorizar as situações lúdicas de aprendizagem, aponta para a necessária articulação com as experiências vivenciadas na Educação Infantil. Tal articulação precisa prever tanto a progressiva sistematização dessas experiências quanto o desenvolvimento, pelos alunos, de novas formas de relação com o mundo, novas possibilidades de ler e formular hipóteses sobre os fenômenos, de testá-las, de refutá-las, de elaborar conclusões, em uma atitude ativa na construção de conhecimentos (Brasil, 2018, p. 57-58).

Na perspectiva de uma formação continuada, como abordado na citação anterior, é possível compreendermos as necessidades da valorização dos conhecimentos prévios adquiridos na passagem das crianças pela Educação Infantil a fim de preservar a construção realizada a partir dos campos de experiências, de forma a consolidar as aprendizagens adquiridas e o fortalecimento das que se consolidaram, a partir da imersão nas propostas a serem apresentadas com base nas competências e habilidades apontadas na BNCC para o Ensino Fundamental nos anos iniciais.

De acordo com Gomes (2012), a Política da Educação para as Relações Étnico-Raciais é

mais do que a efetivação política de uma antiga reivindicação do Movimento Negro para a educação, a Lei nº 10.639/03, o parecer CNE/CP 03/2004 e a resolução CNE/CP 01/2004 e os desdobramentos deles advindos nos processos de formação de professores/as, na pesquisa acadêmica, na produção de material didático, na literatura, entre outros, deverão ser considerados como mais um passo no processo de descolonização do currículo (Gomes, 2012, p. 107).

A Política de Educação para as Relações Étnico-raciais faz parte de uma construção realizada por diversas mãos geradoras de mecanismos legais e constitucionais, para assegurar direitos básicos em nossa sociedade. Parte da premissa em diversos países pelo mundo afora, na construção de políticas educacionais acessíveis e possíveis, ampliando-se para além da perspectiva educacional.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (Brasil, 2004) afirma a importância da reflexão e da construção de pedagogias que atuem diretamente contra o racismo e a favor de práticas antirracistas, de modo a apresentar, para a branquitude (pessoas brancas), a urgência e a necessidade de uma consciência negra, mostrando às pessoas negras, a urgência e a potência de suas existências, com base em seus ancestrais e suas ancestralidades, assim como as suas contribuições para a construção da sociedade.

Relação do Guia do Educador com a BNCC para os anos iniciais do Ensino Fundamental e a Educação das Relações Étnico-Raciais

O Guia do Educador é uma ferramenta metodológica de reflexão sobre práticas educacionais que aponta um olhar diferenciado para conectar, na construção de propostas didáticas e como estratégia de consolidação do conhecimento, as políticas educacionais às políticas acerca das relações étnico-raciais, como por exemplo, a aplicabilidade da Lei nº 10.639/03:

nos anos iniciais, pretende-se que, em continuidade às abordagens na Educação Infantil, as crianças ampliem os seus conhecimentos e apreço pelo seu corpo, identifiquem os cuidados necessários para a manutenção da saúde e integridade do organismo e desenvolvam atitudes de respeito e acolhimento pelas diferenças individuais, tanto no que diz respeito à diversidade étnico-cultural, quanto em relação à inclusão de alunos da educação especial (BNCC, 2018, p. 325).

Sendo essa prerrogativa uma responsabilidade que

cabe aos sistemas e redes de ensino, assim como às escolas, em suas respectivas esferas de autonomia e competência, incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e integradora. Entre esses temas, destacam-se: direitos da criança e do adolescente (Lei nº 8.069/90), Educação para o Trânsito (Lei nº 9.503/97), Educação Ambiental (Lei nº 9.795/99, Parecer CNE/CP nº 14/12 e Resolução CNE/CP nº 2/12), educação alimentar e nutricional (Lei nº 11.947/09), processo de envelhecimento, respeito e valorização do idoso (Lei nº 10.741/03), Educação em Direitos Humanos (Decreto nº 7.037/09, Parecer CNE/CP nº 8/12 e Resolução CNE/CP nº 1/12), Educação das Relações Étnico-Raciais e Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena (Lei nº 10.639/03 e 11.645/08, Parecer CNE/CP nº 3/04 e Resolução CNE/CP nº 1/04 (BNCC, 2018; p.19-20).

É pertinente destacar a importância da análise, da aplicação e do acompanhamento das legislações em torno da Educação, assim como as que tratam das relações étnico-raciais embasadas na Constituição de 1988 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que norteiam os fazeres na prática para a construção de uma sociedade menos segregadora. Esse material de consulta se caracteriza como uma estratégia metodológica a ser ampliada de modo a fazer com que novas propostas possam surgir a partir dessa temática.

O Guia do Educador na prática

O Guia sugere a aplicabilidade desta proposta durante um trimestre letivo em atividades de Português, Matemática, História, Geografia e Artes, de modo que os profissionais da educação possam mediar e acompanhar todo o processo de assimilação e de aprendizagem coletiva e individualmente de cada participante, desde o seu primeiro contato com o filme Kiriku e a feiticeira.

Para essa atividade é necessário que a escola ou instituição adquira o filme em DVD, para exibição em televisão. Outra possibilidade é a projeção do filme por meio de um projetor conectado a um computador, com acesso à internet, usando a plataforma YouTube.

Aplicação em ambiente educacional nos anos iniciais do Ensino Fundamental

A atividade apresentada dialoga com a BNCC e o Ensino de Educação e Relações Étnico-Raciais, com base no filme Kiriku. Destaca-se seu uso em algumas disciplinas e atividades transdisciplinares em:

  • Língua Portuguesa - utilizar linguagem oral; assimilar segmentos escritos e falados; capacidade de escuta; intervenção e tomada de decisões; exposição oral com auxílio de texto escrito; narração de fatos; contação de histórias e descrição de fatos ou outro; relato de experiências; escuta ativa.
  • Ciências Naturais - identificar a presença de características específicas do ambiente em seu entorno; valorização da diversidade de vidas existentes; registo de informações de diversas formas; identificar causas e consequências.
  • Ciências Naturais e Geografia - observar a comunidade, assim como as manifestações da natureza; conhecer e comparar a natureza; reconhecer semelhanças e diferenças; adquirir atitudes responsáveis para com a natureza; descrever e observar a natureza utilizando a oralidade e ou a ilustração; ter ciência dos impactos causados pelos homens na natureza; respeitar modos diversos de vida na sociedade.
  • Ciências Naturais e Meio Ambiente - conhecer e compreender noções básicas relacionadas ao meio ambiente; adotar posturas sustentáveis; apreciar e valorizar as diversidades naturais e socioculturais; ter uma relação respeitosa com o ambiente.
  • Ciências Naturais e Ética - identificar-se como parte integrante da natureza; ter respeito pelas diferenças entre as pessoas, prezando pelo diálogo; assumir suas responsabilidades, conforme as suas atitudes.
  • História - reconhecer semelhanças e diferenças na história da sociedade; reconhecer transformações e a permanência de contextos históricos; assimilação sobre passado e presente, identificando descendência e ascendência; identificar relações de poder no contexto em que vive; valorização de ações coletivas.
  • Arte - comunicar-se em diferentes tipos de linguagens artísticas; compreender e saber identificar a arte; relacionar o ser humano com as realidades que vive; saber organizar materiais diversos de modo a identificá-los posteriormente.
  • Pluralidade cultural - conhecer as diversidades do patrimônio étnico cultural brasileiro; valorizar as diversas culturas; identificar qualidades da própria cultura; ter empatia e solidariedade com aqueles que sofrem discriminação; compreender a desigualdade social; identificar vínculos geracionais no âmbito social e familiar.

Atividades

1 - Construa, em conjunto com seus/suas estudantes, um cronograma de atividades embasado nas habilidades e competências a serem fortalecidas e ou adquiridas por eles/elas. Faça previamente um levantamento e recorte de possíveis filmes, textos, desenhos e situações que possam servir de suporte para comparação com o filme e a realidade dos participantes de modo a consolidar o conhecimento. Recomenda-se a consulta à BNCC e mais especificamente aos códigos alfanuméricos.

2 - Faça um roteiro inicial para analisar o grau de envolvimento e interesse dos alunos. Segue exemplo: O que acharam do filme Kiriku e a feiticeira? Do que mais gostaram no filme?  E do que não gostaram? Quem aparece no filme? De qual personagem vocês mais gostaram? Por quê? Como acha que o filme foi construído? Onde foi construído o filme? Vocês se identificam com o filme? Por quê?

Considerações finais

Parafraseando Gomes (2012), quando aborda, em seu artigo Relações Étnico-Raciais Educação e Descolonização dos Currículos, a temática do musical Besouro Cordão-de-Ouro, utilizamos a mesma metodologia para analisar o filme Kiriku e a Feiticeira. Quando analisamos a existência do filme, é nítida a abordagem da temática para o trabalho com a Educação para as Relações Étnico-Raciais, sobre as quais traçamos um roteiro em torno de costumes, danças, músicas, crenças e a corporeidade de matriz africana que nos faz despertar para as mudanças que vêm ocorrendo, apesar de ser um alerta sobre a não estereotipização de corpos negros africanos e ou de origem, tendo em vista que o olhar apresentado no filme parte das vivências de uma pessoa branca em África. Contudo, Gomes (2012) nos convida a refletir:

Será que tal mudança vem acontecendo – mesmo que de maneira lenta – na escola brasileira, no campo do currículo e na formação de professores/as? Será que tal mudança vem ocorrendo com mais força após a alteração da LDB, mediante a sanção da Lei nº 10.639/03 e sua regulamentação pelo Parecer CNE/CP nº 03/04 e pela Resolução CNE/CP nº 01/04? E será que esse momento pode ser compreendido como parte de um processo de descolonização dos currículos? Esse ainda é um campo em aberto a investigar e um desafio para as pesquisas que articulem diversidade étnico-racial, currículo e formação de professores.

Este guia, portanto, é um dos exemplos de estratégias didáticas que traça possibilidades diversas para a construção de uma prática educacional mais inclusiva e que trabalhe com base nas legislações, assim como as abordagens sobre relações étnico-raciais com profissionais da área da educação em seus múltiplos espaços de atuação. Tem como premissa o alcance de competências e habilidades acerca das atividades propostas e construídas conforme projetado na BNCC, e em outros marcos legais para a consolidação da educação para as relações étnico-raciais, no processo de formação dos estudantes e dos profissionais atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Conselho Nacional de Educação, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 28 jul. 2021.

______. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular - Introdução. Brasília: Conselho Nacional de Educação, 2018. p. 7. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 10 mar. 2022.

______. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. Brasília: MEC/Secad, 2004. Disponível em: https://download.inep.gov.br/publicacoes/diversas/temas_interdisciplinares/diretrizes_curriculares_nacionais_para_a_educacao_das_relacoes_etnico_raciais_e_para_o_ensino_de_historia_e_cultura_afro_brasileira_e_africana.pdf. Acesso em: 11 mar. 2022.

______. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, p. 1, 10 jan. 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm. Acesso em: 08 ago. 2021.

CARTH, John Land. A Base Nacional Comum Curricular e a aplicação da política de Educação para Educação das Relações Étnico-Raciais (afro-brasileira, quilombola, cigana). Brasília, 2018. Disponível em: http://etnicoracial.mec.gov.br/images/pdf/artigos/A-BNCC2018-e-a-ERER.pdf. Acesso em: 16 jul. 2021.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.

______. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, v. 12, nº 1, p. 98-109, 2012. Disponível em https://www.curriculosemfronteiras.org/vol12iss1articles/gomes.pdf. Acesso em: 11 mar. 2022.

OCELOT, Michel (direção e roteiro). Kiriku e a feiticeira (Kirikou et la sorcière). 1998. França/Bélgica/Luxemburgo. Duração: 74 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q4IuNCxQ-gs. Acesso em: 19 jul. 2021.

Publicado em 22 de novembro de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

SESSÉMEANDÊ, Paixão; BARROS, Marcelo Diniz Monteiro de; VAZ, Aline Choucair. Guia do Educador para o filme "Kiriku e a feiticeira". Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 43, 22 de novembro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/43/guia-do-educador-para-o-filme-kiriku-e-a-feiticeira

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.